Fernando Canto é um dos
grandes nomes da literatura amapaense. Mais conhecido por suas letras de música
– ele foi um dos fundadores do grupo Pilão, que marcou época na MPA, ele também
é um contista inspirado, como mostra o livro recém-lançado pela Paka-Tatu, Mama
Guga.
O livro traz contos
intimistas e emocionantes, como O retrato azul, narrado como um filho falando
ao pai: “Agora estou aqui, engolindo este silêncio, sem saber o que dizer para
você (...) Agora estamos nós dois sem saber o que fazer... Você aí sentando nesta
rede com os olhos brilhosos de lágrimas, olhando fixo o quadro que lhe demos de
presente de aniversário”. Além de criativa, a abordagem permite um aprofamento
no personagem que talvez não fosse possível de outra maneira.
Há contos que oscilam entre
o causo urbano, o humor e o drama, como em “A seringa contaminada de Bambo, o
zagueiro do futlama”, no qual um homem com HIV ameaça picar pessoas com uma
seringa.
Mas os melhores contos são
aqueles em que Fernando Canto se utiliza da mitologia local, entremeando-a
muitas vezes de fatos históricos e narrativas cotidianas. Exemplo disso é “As
mulheres-peixe do meu garimpo”, sobre um garimpeiro que se enamora de sereias
encontradas em uma gruta. Mas são sereais amazônicas, com cor local e
sexualidade aflorada: “Tinham a cor dourada e eram largas. Suas barbatanas eram
vermelhas, umas gracinhas. Nem de longe pareciam com as sereias que eu tinha
visto em revistas. Brincavam com as águas e sorriram quando me viram. Me
chamaram pra bem perto delas, e aí pude conhecer o verdadeiro sabor do prazer
sexual”.
Desses, o melhor é “A
cidade encantada sob a pedra”.
A história se passa em uma
cidade fictícia (meio que uma mistura de Macapá e Mazagão), mas mágica, em que
seres encantados saem do fundo do rio para defender os negros entre eles o
pretinho Chibante, que distribui para a criança bombons trazidos em seu chapéu
de casco de tartaruga.
Na história, dois irmãos
descem à cidade encantada em busca de um suposto tesouro. O interessante do
conto é a forma como o autor mescla fatos históricos, personagens mitológicos e
ladrões de marabaixo para construir sua narrativa.
Para quem não é da região,
os ladrões são músicas cantadas nas rodas de marabaixo, geralmente sobre fatos
ocorridos na comunidade.
Há duas versões sobre o
nome. Na primeira delas, os versos são chamados ladrões porque um “rouba” a
música do outro, continuando o verso. Na outra, porque a letra “rouba” fatos
das vida pessoal das pessoas, tornando-as públicas através da música. Fernando
Canto adota essa última explicação e constrói todo o conto a partir de ladrões,
entremeando-os à narrativa em prosa. A narrativa é fluída, quase como um causo
narrado a um visitante e fantasia, história e ladrões vão se misturando
naturalmente.
O conto é um delicioso
causo e, ao mesmo tempo, uma curiosa experiência estética.
É de se destacar o ótimo trabalho editorial da Pakatatu no livro, a
começar pela bela capa com ilustração de Maciste Costa. O papel polém e a
difamação simples, limpa, mas eficiente fazem com que a leitura do livro se
torne leve e agradável.
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