Gian Danton: Quando você percebeu que era possível fazer
poesia em quadrinhos?
Ciberpajé: Foi algo fluido e natural para mim, eu comecei a
escrever poesia na mesma época em que me interessei pelo desenho e por criar
minhas primeiras narrativas quadrinhísticas. Foi por volta dos 10 anos de
idade. É curioso perceber como de forma natural o texto de minhas primeiras HQs
já era contaminado pela verve poética, já com poucos balões e diálogos e
narrações poéticas conduzindo a história. Penso que a gênese de meus quadrinhos
nasceu impregnada pela minha paixão pela poesia, então, já nos primeiros anos
em que comecei a publicar minhas HQs nos zines brasileiros sempre haviam
comentários de que o que eu fazia não era quadrinhos, era “poesia ilustrada”,
algo de que discordo veementemente, sempre foi quadrinhos, só que estava
nascendo ali – comigo e outros pioneiros nessa mistura singular - o gênero
poético-filosófico de quadrinhos, batizado posteriormente por mim em 1997.
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Página da HQ Litania Transumanimal, de Ciberpajé e Oscar Suyama |
Você, o Gazy Andraus e outros artistas criaram o gênero
poético-filosófico, batizado por você. O nome deixa a entender que o texto
poético é parte essencial desse gênero. Concorda?
Sim, eu e Gazy somos 2 dos pioneiros desse gênero de
quadrinhos que é genuinamente brasileiro como destacou o pesquisador Elydio dos
Santos Neto em seu Pós-Doutorado realizado na Unesp em 2010 e dedicado a
analisar e investigar o quadrinho poético-filosófico. A partir dessa pesquisa
singular de Elydio foram inclusive publicados pela editora Marca de Fantasia os
livros “Os Quadrinhos Poético-Filosóficos de Edgar Franco” e “Os Quadrinhos
Poético-Filosóficos de Gazy Andraus”, apresentando as singularidades de nossos
processos criativos, mas também as conexões entre eles que nos enquadram no
contexto do poético-filosófico. Ainda na década de 1980, numa tentativa inicial
de classificar esses trabalhos, eles foram chamados por muitos editores de
fanzines de “quadrinhos poéticos”, fazendo um paralelo com a literatura, ou
seja, os quadrinhos tradicionais estariam para a prosa assim como os
“quadrinhos poéticos" estariam para a poesia. Posteriormente a
insuficiência conceitual do rótulo “quadrinhos poéticos” para conceituar o que
eu e alguns outros quadrinhistas estávamos fazendo levou-me a criar o termo
“quadrinhos poético-filosóficos” (FRANCO, 1997, p.54), anexando a palavra
“filosóficos” à denominação por verificar que a maioria dos quadrinhistas desse
gênero também apresentavam trabalhos com a pretensão filosófica de levar o
leitor a refletir sobre alguma questão existencial. Assim o termo foi adotado
pelo Dr. Elydio dos Santos Neto em sua pesquisa de pós-doutorado em artes na
UNESP, Santos Neto (2009, p.90) resume as características principais dessas
HQs:
São, portanto, três as características que principalmente
definem uma história em quadrinhos poético-filosófica: 1. A intencionalidade
poética e filosófica; 2. Histórias curtas que exigem uma leitura diferente da
convencional; 3. Inovação na linguagem quadrinhística em relação aos padrões de
narrativas tradicionais nas histórias em quadrinhos.
Então, a intencionalidade poética é certamente uma das bases
fundamentais do chamado quadrinho poético-filosófico, destacando o texto
poético como parte essencial dele. Essa verve poética sempre colocou o gênero
em uma posição de vanguarda e de legítima expressão artística, tratando a
criação quadrinhística como um espaço expressivo para os autores trazerem à
tona suas percepções imanentes e transcendentes do mundo e da experiência do
viver, distanciando-os enormemente da produção comercial de quadrinhos destinada
ao entretenimento e lazer. Por isso esses quadrinhos nasceram no meio
paratópico dos fanzines e até hoje encontram pouco respaldo em editoras
comerciais, nesse contexto é fundamental destacar a revista/prozine Mandala,
editada por 13 números pela editora Marca de Fantasia em fins da década de 90 e
início dos anos 2000, sendo a primeira revista brasileira a dedicar-se
exclusivamente aos quadrinhos poéticos, com destaque para a HQ
poético-filosófica.
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Página de abertura da HQ Vortex Pós-Humano, de Ciberpajé, publicada no álbum Intempol:Agora |
Você lê poesia? Quais poetas?
Sempre li muita poesia, a poesia é a expressão literária
mais pura, livre, explosiva, subjetiva e vibrante. Não é por acaso que em nosso
mundo contemporâneo marcado pelo hipernarcisismo das redes sociais, pela
hipercompetição, pelo pragmatismo da busca desenfreada pelo mostrar em
detrimento do ter ou do ser, pela necessidade da fama a qualquer custo, que a
poesia está morrendo. Tornou-se um nicho muito restrito cada vez com menos
visibilidade. Mesmo em grandes feiras literárias o número de lançamentos de livros
de poesia, ou mesmo o número de títulos disponíveis é muito pequeno. Vivemos em
um mundo de volatilidade da informação, onde impera uma obsessão pela
objetividade da comunicação, tudo tem que ser direto, curto e claro para
absorver a atenção das pessoas bombardeadas pela hiperinformação. Nesse
contexto, a poesia, que necessita do mergulho, da subjetividade, da entrega, de
uma experiência de leitura sutil e livre de obviedades, parece estar condenada
à morte. E nesse caso amplio a ideia de poética, recordando Aristóteles, para
além da expressão escrita, mas para todas as expressões artísticas que nascem
da subjetividade, do ruído, dos paradoxos, das zonas cinzas do ser que se
insurgem contra o binarismo anticósmico que reina na comunicação digital, onde tudo
é extremismo, sim ou não, preto ou branco, esquerda ou direita, deísta ou
satanista. Sobre minha leitura de poesia, tudo começou aos 10 anos com a paixão
precoce pelo mal do século de mestres como Baudelaire, Verlaine, Rimbaud, Poe,
Isidore Ducasse (Conde de Lautreamónt), Álvares de Azevedo, Augusto dos Anjos,
Cruz e Souza, e posteriomente fui me abrindo para outras expressões poéticas
encontrando grandes escritores como Ezra Pound, T.S. Eliot, Manoel Bandeira,
até o choque e maravilhamento com o encontro com o Rubaiyat, do persa Omar
Khayyam, um presente sagrado que ganhei de meu amado e saudoso pai Dimas
Franco. Daí avancei para a poesia e aforística oriental, encontrando obras
singulares como o Tao Te King, de Lao Tse, e o poema épico indiano Maabárata.
Aprendi também a amar a poesia feita por meus contemporâneos e amigos, lendo-a
em inúmeros zines e publicações independentes, estou sempre aberto a novos
poetas, no momento tenho lido obras instigantes do jovem poeta Breno Pitol.
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HQforismo de Edgar Franco (Ciberpajé) |
Fale um pouco do seu processo criativo nas HQs
poético-filosóficas.
Tenho investigado inúmeros processos criativos e
possibilidades inusitadas de criação de meus quadrinhos poético-filosóficos. A
revista em quadrinhos Artlectos & Pós-Humanos, com 14 números publicados
pela editora Marca de Fantasia, é um dos meus principais laboratórios de
experimentação artística, nela já publiquei HQs criadas a partir de
experiências com enteógenos como a Ayahusca e o Psilocybe cubensis e outras
técnicas de estados não ordinários de consciência como a Respiração
Holotrópica, técnicas mágickas como a magia de sigilos – criando de forma
pioneira no Brasil Sigilos-HQ, HQ inspirada na Postura da Morte de A.O.Spare; e
muitas HQs criadas a partir de meus “rituais mágickos de presença” - técnica desenvolvida
por mim na qual passo horas desenhando sem nenhum crivo da mente consciente,
produzindo inúmeras imagens que posteriormente eu utilizo para gerar narrativas
quadrinhísticas, dando coerência a elas com o texto poético que as amarra.
Também tenho criado centenas de HQforismos, um subgênero dos quadrinhos
poético-filosóficos – assim batizado por mim e pela pesquisadora de minha obra,
a artecientista Dra. Danielle Barros (UFSB) – que conecta um desenho a um texto
poético-aforístico que o complementa. Sendo que muitos desses HQforismos surgem
de insights de minhas experiências transcendentes. Já realizei quadrinhos em
parceria com um robô, em parceria com um saudoso coqueiro do meu jardim, e em
exercícios de criação em brainstorming em parceria com artistas como Gazy
Andraus, Elydio dos Santos Neto, Jorge Del Bianco, e até contigo, Gian Danton.
Eventualmente crio narrativas mais tradicionais, mas mesmo assim com momentos
de extrema expressão poético-filosófica, como nos álbuns BioCyberDrama Saga,
parceria com Mozart Couto; Ecos Humanos, parceria com Eder Santos; Licanarquia,
parceria com Toninho Lima. Em 2020 fui o pioneiro brasileiro a utilizar
inteligências artificiais no auxílio para a criação de quadrinhos, criando a
primeira HQ a usar redes neurais NST (neural style transfer) chamada “Conversas
de Belzebu com seu Pai Morto”, publicada no número 1 da Atomic Magazine, e que
inclusive contou com um desdobramento criativo, o EP musical de mesmo nome
criado em parceria com o produtor e musicista Alan Flexa. Recentemente criei
minha primeira HQ poético-filosófica de super-herói, um experimento
desenvolvido com o quadrinhista Oscar Suyama e seu personagem Coruja Negra,
através do qual ele criou uma sequência de 5 páginas inspirada no meu universo
ficcional transmídia e mágicko da Aurora Pós-Humana e entregou-me para eu
escrever o texto poético-filosófico da narrativa gerando a HQ Litania
Transumanimal. Estamos inclusive criando uma HQ mais longa nesses moldes! Antes
de minha parceria com Suyama, já tinha criado uma HQ nos mesmos moldes com o
grande quadrinhista Bira Dantas, na qual ele partindo de um sonho que teve e
utilzando-se da cosmogonia da Aurora Pós-Humana e de referências à minhas artes
desenvolveu 5 belas páginas de uma narrativa chamada Planetae Post Humanus e eu
criei o texto aforístico para a obra. Também criei uma HQ de ficção científica
que uniu o meu universo ficcional da Aurora Pós-Humana, ao universo ficcional
de viagens no tempo – Intempol, de meu amigo Octávio Aragão, ela foi publicada
no álbum Intempol: Agora, que concorreu ao HQMIX 2022. Para fechar essa
resposta sobre processos criativos inusitados, cito o álbum em quadrinhos O
Sonho dos Deuses, ainda inédito, com uma narrativa poético-filosófica
desenvolvida com esculturas e cenários criados por mim exclusivamente para ela,
um dos frutos de minha segunda investigação de pós-doutorado realizada no
Instituto de Artes da Unesp, em São Paulo. E sigo sempre entusiasmado e
instigado a explorar novas possibilidades criativas para os quadrinhos!
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Página da HQ Planetae Post Humanus, de Bira Dantas e Ciberpajé |
Alan Moore diz que os quadrinhos são uma forma de devolver
às pessoas. Você concorda com essa afirmação?
No meu caso, a criação de quadrinhos é um processo de
autocura. Utilizo o processo criativo como uma forma mágicka de
autoconhecimento e autotransformação, transformando o exercício criativo em um
ato de total conexão com o agora, sem a preocupação com o resultado final, mas
sim em fruir completamente o processo, compreendendo como a criação daquela
narrativa permite-me perscrutar o meu ser cósmico e compreender minhas
idiossincrasias, possibilitando-me transformar-me interiormente. Nesse caso, a
principal motivação para criar é o ato criativo em si, o momento da criação que
é sempre transformador para mim. A recepção da minha obra tem um valor
secundário para mim, obviamente se ela tocar as pessoas, isso me deixará
alegre, mas não crio pensando nisso, pois tenho consciência de que a única
transformação possível que minha arte poderá realizar é a de mim mesmo. Talvez
ela sirva para incentivar pessoas que já estão em um caminho de transformação,
mas não será a deflagadora desses processos. Por isso digo a todos: CRIAR CURA!
A criação é o espaço mais profundo e certeiro para os processos de transmutação
interiores, é o método mais poderoso para a cura interior, praticamente
ignorado pelas terapias contemporâneas, mas fundamental em meu processo como
artista-magista. Entendo perfeitamente o ponto de vista de Moore, no entanto
discordo dele, não acredito em legados, tudo será varrido pelo inevitável fluxo
das eras, até nossa espécie perecerá. E ao contrário da visão de que criar para
mim mesmo seja algo egoísta e individualista, trata-se de um processo que busca
a individuação – na perspectiva de Jung – envolvendo a compreensão interior da
diversidade, da alteridade, da importância de conviver serenamente com outras
visões de mundo na contramão do binarismo anticósmico vigente na comunicação
digital, mesmo aquelas que parecem atacar nossas verdades. Ao transformar-me eu
transformo o cosmos inteiro, pois sou uma imagem holográfica do universo.
Referências:
FRANCO, Edgar. “Panorama dos Quadrinhos subterrâneos no
Brasil.” In. CALAZANS, F. M.A. (Org.) As histórias em Quadrinhos no Brasil:
Teoria e Prática. São Paulo: Intercom/Unesp/Proex, 1997, p. 51-65.
SANTOS NETO, Elydio dos. “O que são histórias em quadrinhos
poético-filosóficas? Um olhar brasileiro.” In Visualidades – Revista do
Programa de Mestrado em Cultura Visual da FAV/UFG, Vol. 7 n. 1, Jan/Jun 2009, -
Goiânia - GO:UFG, FAV, 2009, p.68-95.
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