Francisco de Assis é um dos santos mais populares do
catolicismo. Difícil uma cidade grande que não tenha uma igreja em sua
homenagem. No Nordeste, por exemplo, ele batizou o principal rio da região e
pintores de rua o reproduzem em telas, na frente dos turistas, da mesma forma
que artesãos fazem versões em madeira ou barro para vender, sempre na posição
famosa, com ele envolto por passarinhos. No entanto, apesar da popularidade,
sua história real é pouco conhecida. Mesmo católicos mais fervorosos
desconhecem sua biografia e, quando conhecem, ela está envolta em mitos.
Foi com o objetivo de remediar essa situação que Donald
Spoto escreveu Francisco de Assis, o santo relutante, recentemente lançado em
uma edição popular da coleção Ponto de Leitura. É uma grande chance de conhecer
o lado humano de um homem cuja vida se mistura com lendas baseadas em “idéias
românticas sobre a era dos castelos, cavaleiros andantes, damas medievais e
honra cavalheiresca, elementos mais adequados às páginas dos manuscritos com
iluminuras ou a filmes de Hollywood, mas que não correspondem à vida real”,
escreve o autor.
Donald Spoto é PHD em teologia pela Universidade de Fordham
e foi professor universitário de estudos religiosos, literatura bíblica e
misticismo cristão. Escreveu 18 obras, entre elas as biografias de Alfred
Hitchcock, Laurence Olivier e Ingrid Bergman.
Ou seja, é alguém que transita entre dois pontos: o estudo
da religiosidade e a tradição das biografias jornalísticas. Embora o livro
penda mais para as modernas biografias, é a veia teológica do autor que cria os
momentos mais díspares. Suas tentativas de explicar sob uma ótica católica
fatos da vida de São Francisco são os momentos menos interessantes do livro e
parecem não encaixar direito na proposta que o próprio autor faz desde as
primeiras páginas da biografia.
Felizmente, esses momentos são exceção e na grande maioria
das páginas, Spoto consegue aproximar Francisco daquilo que ele mesmo escreve
na introdução do livro: o playboy de Assis que resolveu se tornar mendigo não é
uma propriedade da Igreja Católica. Afinal, sua primeira grande biografia moderna
foi escrita por um protestante Francês. Um dos mais importantes pesquisadores
franciscanos foi um bispo anglicano. E, por último, o Dalai Lama, ao visitar
Assis, fez questão de ser fotografado no lugar que Francisco mais amava.
Francisco, aliás, não era Francisco. Seu pai estava ausente,
em viagem de negócios para a França quando o garoto nasceu e a mãe lhe deu o
nome de João, em homenagem a São João Batista, o profeta que pregava no deserto
vestido com pele de camelo e se alimentava de mel e gafanhotos. Quando chegou,
o rico comerciante de tecidos Pedro Bernardone, ficou furioso. Não convinha que
seu filho tivesse o nome de um ermitão pobre e, como não era possível anular o
nome, o pai fez questão de que ele fosse conhecido como Francisco, palavra que significava
francês e que conotava elegância, já que a França na época ditava moda para o
mundo.
Esses dois extremos: a elegância dos ricos e a humildade dos
pobres vão ser o pêndulo sobre o qual o jovem Franc isco irá se equilibrar por
grande parte de sua vida.
A cidade em que o rapaz vivia era conhecida na Itália como
Nova Babilônia, por ser um local de franca libertinagem, onde o sexo se
misturava à violência. Garotos de famílias ricas vagavam pelas ruas criando
desordem e Francisco foi um deles. A atividade sexual desregrada era regra para
os meninos e a maioria das meninas não permanecia casta e monogâmica. O
casamento era abençoado pela Igreja, mas o adultério era esperado pela
sociedade. Com seus maridos viajando a negócios ou para as guerras, as esposas
ficavam acessíveis a amigos e estranhos. A maioria o fazia de bom grado, mas as
que se recusavam eram constantemente estupradas.
Embora não haja provas de que Francisco tenha vivido essa
dissolução sexual, o autor explica que também não há provas de que ele tenha
resistido a ela. Afinal, ele era um líder entre os playboys de Assis, sempre
envolvido com ceias tardias nas praças da cidade e piqueniques que reuniam os
elementos menos recomendados da cidade. Além de serenatas para moças
casadoiras.
Seria importante para a vida de São Francisco o fato de que
a Igreja Católica vivia uma crise moral. Muitos padres tinham amantes. Outros só pensavam em dinheiro e poder.
Na festa de São Nicolau, que acontecia todo ano em Assis, uma
criança era vestida como bispo, levada
para uma igreja e participava de uma cerimônia sacrílega. Padres lascivos e
mulheres seminuas se juntava à orgia.
Algumas delas eram coroadas com guirlandas e vendidas por uma noite para quem
pagasse mais. A cerimônia simbolizava bem o nível de decadência da imagem da igreja
católica. E Francisco chegou a ser líder de algumas dessas festas.
Sua vida de alegria, mas vazia, mudou num dia em que voltava de uma propriedade do
pai e parou na pequena e decadente igreja de São Damião para descansar. Um
crucifixo sobrevivera ao tempo e lá ainda estava Jesus, que falou com o futuro
santo: “Francisco, não vês que minha casa está sendo destruída? Vai, então, e
conserta-a para mim”.
O santo, que a partir dali tomaria tudo ao pé da letra (ao
ler na Bíblia a passagem em que Jesus dizia que quem o seguisse deveria se
livrar das sandálias, ele decidiu andar apenas descalço) se colocou a consertar
a igreja. Mas logo ficaria claro que sua verdadeira função seria restaurar a
igreja como um todo, não por palavras de reprovação (ele jamais repreendia os
padres, por mais corruptos e lascivos que fossem), mas pelo exemplo.
Sua vida de dedicação total a Jesus e aos pobres e
excluídos (entre eles os leprosos) seria
o modelo que faria muitos se converterem. Embora posteriormente o movimento
franciscano lhe fosse tirado das mãos e muitas vezes se tornasse um meio para
conseguir poder, sua herança positiva permanece até hoje.
Da mesma forma que na época de Francisco, hoje vivemos uma
crise moral em que dinheiro e poder são mais os valores mais importantes da
sociedade. E assim como naquela época , sua biografia pode apontar para um novo
tipo de vida. O livrode Spoto é uma boa introdução ao assunto.
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