sexta-feira, dezembro 19, 2025

Homem-animal – O evangelho do Coiote

 


Quando escreveu as primeiras histórias do Homem-animal, Grant Morrison imaginava que estava produzindo uma minissérie em quatro capítulos, o que de fato tinha sido a encomenda. Mas quando os editores da DC viram o resultado dessas primeiras histórias, gostaram tanto que resolveram transformar o título numa série mensal e convidaram Morrison para continuar escrevendo.

Ocorre que o roteirista não tinha a menor ideia do que fazer a seguir. Ele resolveu então, produzir uma história metalinguística focada no Coiote do desenho do Papa-Léguas. “Enquanto escrevia, eu estava convencido que aquilo era uma porcaria sem tamanho, impenetrável, e que seria o último prego no caixão da minha carreira em ascensão nos gibis de super-heróis dos Estados Unidos”.

A sequência de regeneração é impressionante. 


Surpreendentemente, essa história foi um sucesso estrondoso, tornando-se a mais lembrada pelos fãs da fase de Morrison com o personagem.

Na trama, um caminhoneiro dá carona para uma garota que pretende ir para Los Angeles com o sonho de ser atriz. Ele explica que passou três anos nas ruas daquela cidade e ainda seria um viciado em heroína ou um moribundo da ala de aidéticos, não fosse o amigo Billy. “Foi ele que me deu essa cruz de prata maciça. Pendurei aqui e nunca mais tirei. Billy e o bom Deus salvaram minha vida”.

Uma sequência de desenho animado mostrada de forma realista. 


À certa altura, os dois atropelam um lobo ou coiote. E aqui temos uma impressioante sequência em que o desenho de Chas Truog e Doug Hazlewood e o texto de Grant Morrison se encaixam perfeitamente. O coiote começa a se regenerar em seis quadros horizontais. “Dor. Dor imensa. O recém-ativado sistema nervoso subitamente congestionado de sinais frenéticos parecer rede de telefone congestionada. A criatura se convulsiona gemendo”.

A história pula para um ano depois. O Homem-animal está brigando com a mulher porque nesse meio tempo ele se tornou vegetariano e decidiu simplesmente jogar no lixo toda a carne da geladeira, sem consultar a esposa. Para espraiar, ele decide sair voando.

A sequência muda de novo para o deserto. O caminhoneiro do início está colocando uma armadilha. O texto conta que duas semanas depois do atropelamento, o amigo Billy morreu num acidente, a mãe morreu de câncer, ele perdeu o emprego e um recorte de jornal mostra o que aconteceu com a garota do início da história, a que sonhava ser atriz. O título diz: “Prostituta trucidada”.

O desenho muda para o estilo de animação. 


Ele se convece de que tudo isso é culpa do ser que ele atropelou na estrada e resolve matá-lo. O que vemos a seguir é uma daquelas famosas cenas de desenho animado, mas numa versão realista, com o personagem levando um tiro, caindo no penhasco (“Por um momento, os pés pedalam no ar. Então ele cai”). Já caído, quando ele começa a se regenerar, sombras crescem no solo e uma pedra enorme cai sobre ele.

Quando o Homem-animal chega ao local, o coiote lhe entrega uma folha de papel que conta sua história e aqui o traço muda para algo no estilo desenho animado.   O que é mostrado é um mundo em que animal ataca animal, num eterno ciclo de violência. Um dia Ardiloso disse chega e foi à presença de Deus... e Deus é mostrado como um desenhista de desenho animado. Ele pede o fim do eterno ciclo de violência. O deus-desenhista decide mandar o coiote para o inferno acima (o nosso mundo): “Enquanto você viver e carregar o sofrimento do mundo, manterei a paz entre os animais. Tal é meu julgamento”.

Há um leve toque de humor triste quando o Homem-animal diz: “Mas eu... não sei ler isso”.

O evangelho do Coiote conseguia misturar metalinguagem com uma história tocante, sensível e uma leve crítica social a respeito da violência dos desenhos animados, ao mesmo tempo em que era uma grande homenagem às animações da Warner (dona da DC Comics).

Essa história mostrou que Morrison era um dos grandes roteiristas da geração de britânicos que invadiram os comics americanos e transformou a revista de um personagem desconhecido, do time C da DC, numa das mais badaladas do mercado americano. 

Homem-formiga, o filme

 

Homem-formiga é um filme de 2015 dirigido por Peyton Reed baseado no herói da Marvel.
Após um breve período em que protagonizou sua própria revista, o Homem-formiga nunca foi uma estrela da Marvel. Ele se segurava, essencialmente, com sua participação nos Vingadores, junto com sua esposa Vespa. O personagem era tão instável que chegou a adotar mais duas outras identidades: Jaqueta Amarela e Gigante. E, além do criador da fórmula de encolhimento, Hank Pym, mais duas pessoas vestiram v o traje do Homem-formiga, um deles, Scott Lang, um ladrão que rouba o traje, mas é perdoado por Pyn. Era como se os roteiristas da Marvel estivessem tentando acertar no herói.
O filme de Reed brinca com essa mitologia, transformando, por exemplo, o Jaqueta Amarela em vilão. Na história, Pyn descobre que o novo presidente de sua empresa está desenvolvendo a tecnologia de encolhimento e que pretende usá-la em guerras e assassinatos políticos. Para evitar que isso aconteça, ele usa um ladrão, Scott Lang, para roubar a tecnologia. É uma trama simples, mas divertida. Aliás, o treinamento do herói é uma das melhores partes do filme. Enquanto os heróis da DC parecem já nascer sabendo usar seus poderes, Lang apanha muito antes de dominar suas habilidades (a sequência inicial, em que ele usa pela primeira vez o traje é impagável e lembra muito a primeira HQ do personagem, quando ele ainda não era de fato um herói).
Vale destacar também o encontro com o Falcão Negro, que, claro, termina em briga.
Personagens que não precisam ralar muito para aprender a usar seus poderes, humor misturado com aventura e confronto entre heróis. Homem-formiga é um típico filme da Marvel.

Liga da Justiça por George Perez

 


George Perez hoje em dia é um nome totalmente associado à DC Comics, principalmente por seu trabalho na mega-saga Crise nas Infinitas Terras. Mas Perez começou sua carreria na Marvel e durante muito tempo teve seu traço associado à casa das ideias.

Ele só começou a trabalhar mesmo para a distinta concorrente na década de 1980 e seu primeiro trabalho foi na Liga da Justiça, mais especificamente na edição 184, continuando uma saga escrita por Gerry Conway e inicialmente desenhada por Dick Dillin e que se estenderia até o número 185.

Algumas páginas eram arte-finalizadas pelo próprio Perez...


Na história, Darkside está morto, mas pelo jeito é impossível matar um deus como ele, de modo que sua essência consegue convencer a Liga da Injustiça da Terra 2, composto por Violinista, Geada e Sombra a o trazerem de volta à vida. O violinista hipnotiza os deuses de Nova Gênese que montam uma máquina para trazer o vilão de volta. Perez assume exatamente no momento em que Darkside está voltando -  o que lhe permite fazer uma capa maravilhosa, com o vilão em primeiro plano e os heróis em volta, uma imagem tão impactante e detalhista que virou capa do encadernado dessas histórias.

O traço de George Perez é arte-finalizado em algumas sequências por Frank McLaughlin, que decididamente não entendeu nada. Sua arte-final parece grosseira na relação com o detalhismo de Perez, desmerecendo muito a arte. Em algumas páginas o próprio Perez fez a arte-final e a diferença é gritante.

... e outras eram arte-finalizadas pelo Frank McLaugulin.


Quanto à história de Gerry Conway, ele consegue fazer uma trama grandiosa usando os Novos Deuses (talvez aproveitando melhor os personagens do que o próprio Kirby). Entretanto, o final é pífio, um verdadeiro anti-clímax. O roteirista, aliás, deve ter percebido isso, pois colocou uma pequena auto-crítica numa fala do Nuclear: “Então é isso? Acabou tudo?”.

Um detalhe interessante é que Perez só assumiu o título porque Dick Dillin, até então desenhista do título, havia morrido. 

Quarteto Fantástico – Prisioneiros do Mestre dos bonecos

 


No começo o Quarteto Fantástico enfrentava alguns vilões muito bizarros. Exemplo disso é o Mestre dos Bonecos, que apareceu no número 8 da revista.

Esse personagem provavelmente foi baseado na história dos bonecos de marionete. Ao fazer um boneco de uma pessoa, o vilão é capaz de controlá-la (sabe-se lá como). A interação entre boneco e pessoa é tão grande que, quando o Tocha Humana salva um homem que vai pular da ponte, o vilão sente uma queimadura no dedo (sabe-se lá como).

O Mestre dos Bonecos transformava pessoas em marionetes. 


O vilão, como todos daquela época, queria se tornar o rei do mundo. E pretende fazer isso criando bonecos de autoridades. Nesse meio tempo, ele provoca uma revolta numa prisão, aparentemente só para testar seus poderes, o que na verdade é de uma inutilidade total. Mas essa situação cria belas imagens de ação dos heróis lutando contra os bandidos, nas quais Kirby deve ter se divertido muito.

Além disso, o vilão parecia mais engraçado do que perigoso: careca, baixinho, olhos grandes, boca rasgada, nenhum uniforme ou roupa que o diferenciasse de outros personagens. Parecia um personagem que foi colocado na trama sem muito planejamento.

A primeira aparição de Alícia Masters.


Mas essa história tem importância pela introdução de uma personagem que se tornaria fundamental nas histórias do quarteto: Alícia Masters, a escultora cega, sobrinha do vilão. Ela protagoniza um dos melhores momentos da revista, exemplo de como Stan Lee conseguia dar humanidade ao seu texto. O Coisa tinha se submetido a um dos experimentos de Reed Richards e tinha voltado a ser um humano comum. Alícia o acaricia e não o reconhece. Quando o efeito da fórmula acaba, ela diz: “Não... espere! Eu... eu estava enganada! É você... é o mesmo homem maravilhoso!”.

Para o complexado Coisa, alícia vai ser uma figura extremamente importante.

Perry Rhodan – O fim de Gêmeos

 


Grek-1 é um dos personagens mais interessantes da saga dos senhores da galáxia. Esse comandante maahk havia destruído sua nave no número 229 da série Perry Rhodan e permanecia como “prisioneiro-convidado” dos terranos. Mas, como fica óbvio desde o número anterior, ele tinha um plano. O número 230 gira todo em torno desse plano.

Na história, os acônidas descobrem a existência do transmissor que permitia teleportar naves para o sistema de Gêmeos, no meio do caminho para a galáxia de Andrômeda.   Eles exigem acesso ao mesmo. Caso não, irão declarar guerra à Terra.

A capa original alemã. 


Escrito por H.G. Ewers, o volume é lento, com ação apenas no final, mas bem construído. Focando no agente secreto terrano que atua como comandante de uma das naves, o escritor traz detalhes da cultura acônida, como o gesto de abrir os dedos que corresponde ao nosso dar de ombros, usando quando a pessoa não sabe ou não se importa com o que está acontecendo.

Quando finalmente começa a ação, ela é alucinante, com um plot twist que não chega a ser surpreendente para leitores mais atento: Grek-1 quer se vingar dos aconidas, que considera seus inimigos naturais, e vê os terranos como possíveis aliados.

Mas, terminado o livro, fica a dúvida: o fim de gêmeos poderia representar o ponto final na jornada dos humanos rumo à Andrômeda?

quinta-feira, dezembro 18, 2025

Monstro do Pântano - O parlamento das árvores

 


O número 47 da revista Swamp Thing parecia pouco relevante à época em que foi lançado. Para começar, era uma pausa no meio de uma das tramas mais marcantes do personagem, uma história em que não acontecia praticamente nada. Mas é, talvez a mais influente e revolucionária história do personagem depois de Lição de anatomia.

Na trama, John Constantine leva o Monstro do Pântano para o meio da floresta amazônica onde ele espera encontrar respostas que o ajudarão no combate a perigosa ameaça representada pelo grupo brujeria.

Lá, o personagem espanta-se ao encontrar diversos seres semelhantes a ele, mas todos imóveis, transformados em árvores. Apenas um ainda consegue falar.

Escondido, no meio dos monstros do pântano, temos uma homenagem ao Homem-coisa da Marvel. Seria ele também um elemental? 


Entrando em conexão com esses seres, o protagonista descobre que não foi o primeiro monstro do pântano. Diversas outras pessoas morreram de alguma forma queimadas num pântano e emergiram dele como seres vegetais. Moorre já tinha dado uma pista disso ao resgatar a primeira história do Monstro do Pântano, quando os autores Len Wein e Bernie Wrightson tinham colocado o personagem na era vitoriana. 

Essa é a grande revelação do volume: o Monstro do Pântano não é um caso isolado, mas o herdeiro de uma longa geração de elementais da floresta.  O impacto que isso teria sobre o título seria incomensurável. 



Outro fator importante, que certamente escapou dos leitores à época, é o conselho do parlamento: Evitar o poder e evitar a raiva: “Pulgão come folha. Joaninha come pulgão. Solo absorve joaninha morta. Planta se nutre do solo. O pulgão é maligno? A joaninha é maligna? O solo é maligno? Onde está o mal na mata toda?”. Esse conselho misterioso e aparentemente inútil será fundamental quando a ameaça despertada pela brujeria finalmente surgir.

Essa edição também traz o gancho para a trama seguinte da série ao mostrar um fotógrafo que clicou o Monstro do Pântano com Abee e tenta vender as fotos para um jornal. Moore usa a situação para criar uma metáfora poderosa a ser explorada nos números seguintes.

Que horas ela volta?

 


A diretora brasileira Ana Muylaert parece ter uma predileção por histórias sobre pessoas com uma vida pacata que acaba sendo abalada e virada de ponta cabeça por um evento qualquer. Nós já vimos isso em Durval discos no qual o dono de uma loja de LPs tem o seu cotidiano impactado pelo surgimento de uma criança. 

O mesmo esquema pode ser observado em Que horas ela volta?, filme de 2015.

Na trama, Val é uma empregada doméstica que sai do nordeste em busca de melhores condições de vida. Depois de uma década inteira na casa de uma família de classe média alta, ela descobre que a filha está indo para São Paulo prestar vestibular. Como mora com os patrões, a única opção é abrigar a garota lá, o que gera toda a reviravolta da história. 

A chegada da garota abala a estrutura social da casa. Para começar, o patrão simpatiza com ela e permite que use o quarto de hóspedes. Esse pequeno fato vai provocando outros e outros, como uma bola de Neve. Um dos resultados é que Val começa a questionar sua condição social, demarcada por fatos simples, como não consumir o mesmo sorvete dos patrões ou não poder entrar na piscina. 

Que horas ela volta? é um filme que pode ser abordado sob os mais diversos aspectos: as relações de classe, o conflito de gerações, as crianças que são criadas por empregadas ou babás porque  suas mães estão muito ocupadas e até a invisibilidade social, a exemplo da cena em que Val serve canapés e é simplesmente ignorada por todos. 

A atuação de Regina Case tem sido muito elogiada e com razão. Ela incorpora a personagem com perfeição. Mas Camila Márdila tem uma atuação soberbada como a filha da empregada. As duas atrizes, inclusive, dividiram o prêmio Prêmio World Cinema Dramatic Especial Jury por sua atuação na película.

Um curiosidade para os fãs de quadrinhos: o personagem José Carlos, o pai de família, é interpretado por ninguém menos que Lourenço Mutarelli.

Conan - Asas demoníacas sobre Shadizar

 


Eu devia ter uns 14 anos e, na época, se você quisesse pagar um conta deveria enfrentar uma fila enorme no banco. E eu era responsável por pagar as contas da casa. Certa vez a fila era tão grande que saía do banco e serpetenteava por toda a quadra. Para se distrair, alguém levou um gibi, que acabou emprestando para a pessoa do lado, que emprestou para a outra, que emprestou para a outra, até que chegou em minhas mãos e só devolvi quando li tudo, incluindo a sessão de cartas. Era a Superaventuras Marvel número 4 e, entre todas as histórias, uma das que mais me chamaram atenção foi uma aventura de Conan escrita por Roy Thomas e desenhada por Barry Smith, Asas demoníacas sobre Shadizar, publicada originalmente na revista Conan The barbarian número 6.
Essa é uma história de quando a equipe já estava mais afinada e já tinha entendido o personagem, depois do tropeço das primeiras revistas.
Conan conhece Jena. 


Na HQ, conan está com um saco cheio de moedas de ouro quando entra numa taverna. Lá ele conhece uma prostituta, Jenna, que o convence a fundir o ouro no formato de coração (segundo ela, mais fácil de carregar) e o leva para o deserto, onde, no meio de um beijo, os dois são atacados por sacerdotes do deus noturno e a moça é levada por eles para servir de sacrifício.
Conan, depois de procurar o ferreiro que a moça dizia ser seu tio (era mentira), resolve resgatá-la sozinho, disfarçando-se com o manto vermelho dos adeptos do culto.
O deus noturno é, na verdade, um imenso morcego (é impressionante como na era hiboriana existiam muitos animais enormes e mais impressionante ainda como eles eram quase sempre confundidos com divindades!).
Na era hiboriana qualquer animal gigante era considerado um deus. 


Conan, claro, salta no morcego e salva a moça, mas acabam no deserto. Desgastado pela luta, é consolado pela moça, que lhe sugere e tenha sonhos dourados. Quando acorda, sozinho, em pleno deserto, Conan descobre que a moça fugiu levando o coração de ouro e concluí: “Eu fiquei com os sonhos.. e ela com o ouro”.
Estava ali todos os elementos de uma boa história de Conan, a começar pela filosofia de Robert E. Howard, segundo a qual a verdadeira honra só pode ser encontrada em um selvagem. Terminar com a adorável moça roubando o ouro daquele que a salvou representa muito bem isso. Junte a isso cultos estranhos, muita ação, o traço de Barry Smith, que já começava a se tornar aquele que todos conhecemos, um Conan que, apesar de seu gesto heroico, é pouco cavaleiro, e temos uma ótima aventura do barbáro. 

Lugar Nenhum, de Neil Gaiman

 



Na segunda metade da década de 1980, os comics americanos foram sacudidos por uma geração de quadrinistas britânicos. Vários artistas, entre desenhistas e roteiristas, invadiram a DC Comics e, embora trabalhassem com personagens menores, fizeram com que eles vendessem tão bem quanto as maiores estrelas da casa, como Batman e Superman. Entre esses artistas, dois se destacaram: Alan Moore e Neil Gaiman.
Alan Moore pegou o título do Monstro do Pântano em vias de ser cancelado e o transformou numa revista respeitada, ganhadora dos mais diversos prêmios. Depois escreveu Watchmen, uma das mais revolucionárias histórias de super-heróis de todos os tempos. O sucesso de seu trabalho fez com que ele retomasse a série V de Vingança, publicando-a pela DC Comics.
Neil Gaiman passou de fã a companheiro de Alan Moore. Inicialmente um jornalista especializado em quadrinhos, ele aproveitou a visita dos editores da DC à Inglaterra para mostrar seu trabalho em conjunto com o amigo Dave Mckean. Para isso, ele escolheu uma personagem obscura da década de 1970, que não interessava a nenhum artista famoso na época: a Orquídea Negra. A minissérie de luxo Orquídea Negra se tornaria um sucesso e revolucionaria o mercado com sua arte fotográfica e texto poético; mas, antes que fosse publicada, os editores sugeriram que Gaiman escrevesse um título mensal. Gaiman começou então sua carreira em Sandman, sendo Dave Mckean responsável pelas memoráveis capas. A primeira seqüência delas mostrava uma prateleira de madeira na qual o artista juntava cacarecos, desenhos e colagens. Ninguém nunca tinha visto aquilo numa história em quadrinhos e muitos certamente compraram Sandman pela primeira vez por causa das capas. Mas o que fez com que eles continuassem a comprar foi o texto excelente de Gaiman.
Em Orquídea Negra e Sandman, Neil Gaiman elevou os quadrinhos a um nível literário poucas vezes alcançado. Qualquer um que botasse os olhos naqueles gibis sabia que estava diante de um grande escritor. O autor trazia conceitos, técnicas e abordagem da literatura, fazendo com que intelectuais se tornassem fãs de Sandman. Até mesmo as mulheres, que normalmente são avessas aos comics americanos, acabaram se rendendo a Sandman. Nas filas de autógrafos, especialmente no Brasil, havia geralmente mais mulheres que homens.
Uma pergunta que todos faziam na época: como se sairiam esses artistas em um trabalho realmente literário? Alan Moore respondeu a essa questão com o romance A voz do fogo, um trabalho denso, pesado, até de difícil leitura, uma daquelas obras que permite várias e várias interpretações.
A resposta de Neil Gaiman foi Lugar Nenhum (Conrad, 2007, 336 págs.), romance escrito em 1996 e lançado recentemente pela editora Conrad.
Lugar Nenhum é adaptação de uma série de TV escrita por Gaiman para o canal britânico BBC. O personagem principal é Richard Mayhew, um jovem escocês que leva uma vida normal em Londres. Tem um bom emprego, mas meio chato, e namora uma garota ideal, embora meio chata.
Mas um dia ele encontra uma garota ferida na rua e, após socorrê-la, sua vida muda completamente. Seus colegas e até sua namorada o ignoram, como se ele não existisse, seu apartamento é alugado para estranhos. Ele não consegue nem mesmo pegar um táxi. É que ele passou a fazer parte da Londres de Baixo, onde vivem os tipos mais excêntricos: assassinos letrados, monges negros, nobres decandentes, falantes de ratês e muitos outros. Agora, para recuperar sua vida de volta, Richard precisa ajudar Door, a garota esfaqueada, a descobrir quem matou sua família.
Como se vê, Gaiman preferiu, em seu primeiro romance, seguir a mesma linha fantástica que o caracterizou em Sandman. Ele decidiu pisar em terreno conhecido e que domina como ninguém. Vale lembrar que muitos afirmam que Harry Potter é uma cópia de Os livros da magia, obra em quadrinhos escrita por Neil Gaiman.
Se em Sandman e Orquídea Negra, Gaiman trouxe para os quadrinhos técnicas e temas literários, em Lugar Nenhum ele faz o caminho inverso. Trouxe para a literatura os avanços alcançados por ele nos quadrinhos. As semelhanças narrativas são óbvias. Quando a namorada dá o fora em Richard, ele vai para casa e o texto narra: "ele tomou um demorado e quente banho de banheira, comeu alguns sanduíches e bebeu várias xícaras de chá. Viu um pouco de TV, à tarde, e ensaiou conversas com Jéssica em sua cabeça. Ao término de cada diálogo imaginário, eles se abraçavam e faziam sexo de um jeito selvagem, apaixonado, furioso, cheio de lágrimas, e tudo ficava bem". Em Sandman 17, na história "Calliope", Gaiman escreveu: "E Madoc levou Calliope para sua casa, e trancou-a no quarto mais alto, que havia preparado para ela. Seu primeiro ato foi violentá-la, na velha e mofada cama de armar. Ela nem mesmo é humana, ele disse a si mesmo. Ela tem milhares de anos de idade. Mas sua carne era quente, e seu hálito doce, e ela segurava as lágrimas como uma criança enquanto ele a feria".
Está ali, também, em Lugar Nenhum, os pequenos contos em meio às histórias maiores, que caracterizavam o roteiros de Gaiman. Em Lugar Nenhum acompanhamos, por exemplo, a história de Anaesthesia, uma garota que acompanha Richard pelo perigoso caminho até o Mercado Flutuante, onde ele deverá se encontrar com Door. A mãe de Anaesthesia ficou louca e ela foi mandada para morar com uma tia, que morava com um homem: "Ele me machucava. Fazia outras coisas também. No fim, eu contei pra minha tia e ela começou a me bater. Disse que eu estava mentindo. Disse que ia me entregar para a polícia. Mas eu não estava mentindo. Então eu fugi. Era meu aniversário". Com o tempo a menina foi se tornando invisível às pessoas, e um dia, quando acordou, fazia parte da Londres de Baixo.
A história da menina mostra a preocupação de Gaiman de construir um perfil até mesmo para os personagens menores. Cada um tem sua história de vida, sua personalidade e até seus cacoetes. As descrições detalhadas fazem com que, com o tempo, o leitor comece a ver essa outra Londres como um mundo ainda mais real do que aquele em que vivemos. São poucos os escritores que conseguem nos mergulhar assim em um mundo construído por eles.
Os que não iniciados no mundo das resenhas talvez não saibam, mas a maioria dos resenhistas lêem os livros com olhares críticos, analisando estilos, tramas e tudo o mais com um lupa racional. Confesso que houve um determinado ponto em Lugar Nenhum que foi impossível continuar fazendo isso, de tal forma a história era envolvente. O mesmo deve acontecer com um leitor comum desde os primeiros capítulos.
Se não bastassem os méritos literários, a Conrad (que publica os encadernados de Sandman) fez um ótimo trabalho editorial, ressaltado pela ótima capa de Dave Mckean (que os editores tiveram o bom-senso de preservar).

Antes de dormir

 


Alguns filmes se destacam por um roteiro inteligente, que consegue surpreender o espectador a cada momento. Um excelente exemplo disso é Antes de Dormir (título original: Before I Go to Sleep), escrito e dirigido por Rowan Joffé e baseado no romance de S. J. Watson.

A história acompanha Christine Lucas (interpretada por Nicole Kidman), que acorda em uma casa que não reconhece, ao lado de um homem desconhecido. Aturdida, ela é informada por ele de que são casados, e que ela sofreu um grave acidente que a deixou em uma condição de amnésia anterógrada. Devido a essa condição, ela se esquece de tudo o que aconteceu no dia anterior assim que adormece.

Quando o marido, Ben, sai para trabalhar, Christine recebe a ligação de um médico, Dr. Nasch, que está conduzindo uma experiência para ajudá-la a recuperar a memória. Essa terapia secreta inclui uma câmera, na qual ela deve gravar diariamente suas impressões, memórias e descobertas (daí a referência ao nome do filme: antes de dormir).

Essa premissa estabelece um intenso clima de suspense e engano. Christine, ao assistir aos vídeos no dia seguinte, confia no que gravou. Contudo, o vídeo pode ter sido feito momentos antes de uma descoberta crucial que mudaria completamente sua visão dos acontecimentos – um fato que a nova Christine, no dia seguinte, não teria como saber.

Ao longo de pouco mais de 90 minutos, somos levados a participar desse jogo mental junto com a protagonista. Desconfiamos do marido, do médico, e até mesmo das lembranças recuperadas pela própria Christine. A tensão cresce continuamente até atingir uma reviravolta final que, confesso, me surpreendeu.

Com poucos personagens e locações restritas (quase todas as cenas se passam dentro de uma casa), Antes de Dormir é um thriller de suspense que se sustenta principalmente na força de seu roteiro engenhoso e na atuação poderosa de Nicole Kidman.

Wolverine: procurado vivo ou morto!

 


A saga dos X-men no Canadá é um momento menor dos mutantes de John Byrne e Chris Claremont, especialmente levando-se em consideração que pouco depois viria a saga de Protheus e a saga da Fênix.

Entretanto, essa história em duas partes publicada em Uncanny X-men 120 e 121 é um bom exemplo de como a equipe criativa estava evoluindo e se tornando cada vez mais afinada.

Na trama, os X-men estão voltando para casa depois de terem ajudado a salvar o Japão. Mas esse retorno não seria nada fácil, já que o governo do Canadá quer de volta sua Arma X, o mutante Wolverine. Para isso, chamam Vindix e a Tropa Alfa. O personagem Shaman, usando sua magia indígena, cria uma tempestade de neve que força o avião com os mutantes a pousar na cidade de Alberta.

É interessante lembrar que John Byrne, embora seja britânico, é naturalizado canadense. Essa história mostra o quanto ele já estava interferindo nos roteiros com sugestões. A introdução da Tropa Alfa, um grupo de super-heróis canadenses, foi ideia dele. Da mesma forma, é óbvio que ele retrata locais que conhece, como pontos turísticos da cidade de Alberta.



Byrne também estava cada vez mais desenvolvendo um estilo próprio e muito característico, que bebia diretamente na fonte de Jack Kirby, com splash e efeitos visuais, imagens impactantes, mas atualizava o estilo kirbyano para os anos 80. A splash page em que os dois grupos finalmente se encontram é um exemplo do que viria a ser o estilo Byrne, com uma construção dinâmica, impressionante e limpa, com destaque apenas para os personagens. Embora os personagens estejam parados, cada um deles parece pronto para entrar em ação.

Por outro lado, Claremont tinha a preocupação de desenvolver até mesmo os personagens secundários, nesse caso a Tropa Alfa. Embora possam parecer enfadonhos os longos balões de pensamento não são descartáveis, pois sempre revelam algo sobre a história dos personagens.

Uma curiosidade sobre essa história é que Cíclope e Wolverine, dois personagens centrais dos conflitos internos, trocam de característica. À certa altura, o Cíclope perde a cabeça e é Wolverine que age de maneira racional. Momentos como esse monstravam que os X-men já não eram mais bidimensionais (como a maioria dos heróis da Marvel da era de prata), mas tridimensionais.

Feliz Natal!

 


quarta-feira, dezembro 17, 2025

Conan – a filha de Zukala

 


Quando começaram a produzir a revista de Conan, Roy Thomas e Barry Smith não tinham muita noção de como trabalhar o personagem – algo que só foi sendo apurado e desenvolvido com o tempo. Exemplo dessa abordagem equivocada é A filha de Zukala. A história deveria ter sido publicada no número 3 da revista, mas foi remanejada para o número cinco para que o desenhista tivesse tempo de fazer as alterações necessárias – mesmo assim é uma história muito inferior à média.
Na HQ, Conan está negociando uma espada numa feira de um vilarejo quando este é atacado por um tigre encantado – a filha do bruxo Zukala, que exige o pagamento de um tributo.
Barry Smith não sabia desenhar tigres. 


Para começar, um problema: o desenhista não sabia desenhar tigres. Em alguns momentos parece um felino deformado, em outros, um cachorro. Considerando-se que esse animal aparece na maior parte da história, esse é um problema grave.
Mais à frente aparece um demônio invocado pelo bruxo Zukala – e o demônio muda de tamanho sem explicação. Em alguns momentos é do tamanho de Conan, em outros grande como um elefante. Esse problema de proporção aparece até mesmo entre os aldeões – em alguns momentos eles parecem anões, em outros, de estatura normal.
Além disso, é óbvio demais que Barry-Smith está emulando Jack Kirby, algo que não combina com o estilo da história.
A filha do feiticeiro se apaixona por Conan. 


O texto também não ajuda. Conan fala como o Thor dos quadrinhos: “Nunca favoreci a noção de fugir como uma lebre... não quando estou empunhando uma espada... muito menos ao ver pessoas indefesas à mercê da morte! Não posso abandonar uma criança... e sua formosa guardiã!”. Alguém consegue imaginar o Conan que conhecemos dizendo palavras como mercê, noção, formosa guardiã?
Nessa história, não só Conan não fala como Conan, como também não age como Conan. Ele parece um benfeitor disposto a enfrentar um poderoso feiticeiro para ajudar uma comunidade. Da mesma forma, a paixão da filha de Zukala parece artificial e apressada. Ela mal o vê e já se apaixona.
E pensar que na versão original, antes das mudanças as coisas eram ainda piores: numa das sequências o demônio alado morrria caindo de ume torre!

Liga da Justiça – O caso do roubo dos superpoderes

 


Na terceira história da Liga da Justiça, publicada em The Brave and The Bold 30, os heróis perdem seus poderes por alguns instantes. Flash está subindo um prédio quando perde a supervelocidade e despenca. Lanterna Verde está salvando uma locomotiva de cair num penhasco quando o trilho de energia criado por ele simplesmente some. A Mulher Maravilha está laçando um míssil que irá cair numa área habitada quando de repente perde suas forças. E assim por diante.

Ao mesmo tempo, uma série de roubos chama a atenção de Flash, que nessas primeiras histórias parecer exercer a função de líder da equipe. Os objetos roubados são um bagre e uma cigarra, mas o mais curioso é que durante os roubos o ladrão parece usar os poderes dos membros da Liga da Justiça. Mas por que alguém roubaria uma cigarra e um bagre?

Os heróis perdem seus poderes por instantes. 


Snapper Caar, membro honorário da Liga, tem a explicação: o bagre e a cigarra são dois dos animais que vivem mais, o que significa que o ladrão está atrás de pessoas e animais que vivem muito, provavelmente para criar um soro de imortalidade. Ele descobriu isso porque está fazendo um trabalho para a escola.

Essa é uma das características mais irritantes das histórias desse período. Sempre alguém tem a resposta para qualquer enigma na ponta da língua, o que parece muito pouco verossímil.

A trama cria de novo a divisão em capítulos que era um padrão nesse período, com cada capítulo dedicado a um herói. A Mulher Maravilha tenta salvar o homem mais velho do mundo; Lanterna e Aquaman tentam salvar a tartaruga mais velha do mundo e assim por diante.

Alguém sempre tinha resposta na ponta da língua. 


A cada situação eles não só não conseguem seu objetivo como ainda são aprisionados. Aí descobrimos que o vilão Amazo na verdade é um robô que serve a um cientista chamado Professor Ivo (os vilões daquela época não se destacavam por bons nomes).

É uma situação que parece desesperadora, mas que na verdade é resolvida com certa facilidade. O roteiro também esquece completamente o Super-homem, que aparece logo no início e logo é esquecido.