terça-feira, novembro 04, 2025

Parceria Gian Danton - Joe Bennett é destaque em entrevista na revista The Imortal Hulk

 

O número mais recente da revista The Imortal Hulk trouxe uma entrevista com o desenhista paraense Joe Bennett. O traço do Bené tem se destacado na revista, levando o gigante esmeralda a uma popularidade poucas vezes vista - com tiragens esgotando completamente. Aliás, um sucesso de público e de crítica, com jornalistas especializados se derretendo em elogios para o traço do Bené e o roteiro do inglês Al Ewing. Na entrevista, Bené cita nossa parceria e diz que o que está fazendo é voltar ao traço de terror da época em que trabalhava em parceria comigo em editoras brasileiras.

A porta no muro, de HG Wells

 


A fantasia é um gênero que pode gerar desde história do mais puro escapismo até profundas reflexões filosóficas. Nesse último caso se encaixa a noveleta A porta no muro, escrito em 1906 por HG Wells.

Na trama o narrador ouve a história da boca Lionel Wallace, um importante político britânico.

Quando era apenas uma criança, ele se deparara com uma porta verde num muro, entrou e se deparou com um mundo mágico, um jardim que o assombrou pelo resto da vida: "No momento em que entrou, o sentimento foi de uma felicidade intensa… como só acontece em raros momentos e quando se é jovem e cheio de vida e se pode ficar feliz neste mundo. E tudo era lindo lá…".

Nesse mundo de cores espetaculares, de onças inofensivas, o garoto se sente como se estivesse finalmente em casa: “Havia uma sensação clara de volta para o lar na minha mente, e, quando uma garota alta e loura apareceu no caminho e veio falar comigo, sorrindo, e disse ‘E então?’, me pegou no colo, me beijou, me pôs no chão e me pegou pela mão, não houve surpresa, mas só uma impressão de certeza prazerosa, de ser lembrado de coisas felizes que tinham sido, estranhamente, deixadas de lado".

Até aí o texto não traz nada diferente do que estamos acostumados em outros textos de fantasia. O mais interessante é o que vem depois. Wallace passa o resto da vida procurando a porta verde, mas sempre que a encontra há um compromisso, um encontro com um ministro, uma garota, uma lei a ser aprovada.... E ele nunca entra.

Wells traz uma reflexão sobre o perdemos ao sair da infância e sobre como os compromisso da vida adulta podem nos desviar do que é realmente importante.

O texto foi lançado em 2020 como ebook pela editora wish e está disponível na Amazon.

Hulk – O terror dos homens sapos

 


Nas primeiras histórias, o Hulk era muito diferente do personagem que todos nós conhecemos. Para começar, na primeira história, o personagem era cinza. Só na segunda edição é que apareceu o verde, mas um verde tímido, muito diferente do golias esmeralda que conhecemos hoje.

Mas o tom das histórias e a personalidade do verdão também eram muito diferentes.

Para começar, havia um clima das histórias de terror da Marvel da década de 50. A segunda edição começa com o Hulk saindo do pântano, como um monstro ameaçador e invadindo uma cidade com um... pedaço de pau! O texto dizia: “Tal qual um monstro selvagem e devastador saído de algum insano mundo abissal, a aterrorizante figura do Hulk emerge repentinamente das lamacentas águas do pântano”. Parecia uma história de terror.

As primeiras histórias tinham clima de terror. 


Só a aparição de Rick Jones impede que o “monstro” destrua a cidade.

Como na época não havia enrolação, tudo acontecia muito rápido. Logo uma raça de homens-sapos resolve invadir a terra e para isso sequestram o maior cientista do planeta... justamente Bruce Banner. Quando anoitece, este se transforma no Hulk e bota o terror na nave (naquela época, Banner se transformava durante as noites).

O golias esmeralda chega a usar uma das armas dos alienígenas contra eles mesmos, enquanto pensa: “Essas armas... perto delas, as nossas parecem estilingues!”. Quem poderia imaginar o Hulk que todos conhecemos usando uma arma e tendo pensamentos como esses? Mas à frente, ele afirma que vai pegar Betty Ross como... refém!

Hulk usando armas e dizendo frases inteligentes? Será que errei de revista? 


A razão disso é que nessa época o personagem era muito baseado na fera do livro O médico e o monstro, de Robert Louis Stevenson, sendo muito mais cruel do que embrutecido.

Uma curiosidade: O roteiro era de Stan Lee e os desenhos de Jack Kirby, a dupla de ouro da Marvel, mas a arte-final dessa história contava com três nomes, que dão aspectos completamente diferentes para a arte: Steve Ditko, Dick Ayers, Paul Reinman. Ditko, que tinha um estilo muito pessoal, é perfeitamente reconhecível.

Wolverine antes de se tornar Wolverine

 

O personagem Wolverine representou na Marvel o pior dos quadrinhos dos anos 1990, naquela que ficou conhecida como a Era Image. Houve uma história, por exemplo, que iniciava com três páginas duplas do Dentes de Sabre pulando sobre o carcaju. Seis página de pura enrolação e dentes rangendo. História, nenhuma.  
Mas antes de se tornar um personagem raso envolto em violência sem sentido, maus roteiros e páginas que eram pensadas como pôsteres para serem vendidas para colecionadores, antes disso, o Wolverine teve histórias memoráveis nas mãos de grandes mestres.
Um exemplo disso é a saga que estreou a revista do personagem na editora Abril. Publicada originalmente em 1988, na revista Marvel Comics Presents, a HQ em dez partes tinha roteiro de Chris Claremont, desenhos de John Buscema e arte-final de Klaus Jason.

Wolverine no traço de John Buscema e Klaus Jason.


À primeira vista, a arte de Buscema parece não se encaixar com o traço de Jason, famoso pela dupla com Frank Miller. Mas o arte-finalista dá uma força e um dinamismo para o traço do mestre Buscema que se encaixam perfeitamente no estilo da história, em especial nas splash pages que abrem cada parte da trama.
A história se passa na cidade fictícia de Madripoor, dominada por gangues e pela máfia e tem a ver com uma história anterior dos X-men. Mas é possível ler e gostar sem saber o que aconteceu antes na complicada cronologia mutante. 
A cidade está vivendo uma guerra de gangues. 


A cidade está vivendo uma guerra pelo controle da máfia. De um lado, o chefão O´Donnell e seu campanga Punho de Lâmina. Do outro, um misterioso personagem chamado Tigre. O Wolverine acaba sendo pego no meio dessa disputa e é preso ao se deparar com uma mutante vampira, que suga sua essência vital, deixando-o totalmente à mercê de seus inimigos.
Claremont sempre foi um bom roteirista, mas costuma abusar do tom novelesco, do excesso de texto e da cronologia mirabolante. A história não tem nenhum desses defeitos. Claremont estabelece bem a tipologia de fala do personagem, coloquial e cheia de gírais, que fica explícita na narrativa em off.
Wolverine acaba aprisionado. 


No final, tudo, desenhos, arte-final e texto, tudo se encaixa perfeitamente.  
A Abril ainda fez uma capa em alto relevo, com o personagem pulando na direção do leitor com suas garras em posição. Como diz a capa, edição de colecionador.

Faleceu o "Seu Zé", dono do mais tradicional sebo de rua de Belém


Recebo com profunda consternação a notícia do falecimento do José Boaventura Xavier, proprietário do mais tradicional sebo de rua de Belém. Sua banca foi responsável pela formação cultural de gerações de leitores paraenses. Quadrinhos, livros, revistas... seu acervo era vasto.

Mas, além do ótimo material, sempre oferecido a preços módicos, podíamos contar com a simpatia e o conhecimento do dono, que conhecia o gosto de cada um dos seus clientes e, graças a isso, conseguia fazer indicações sempre acertadas. Boa parte dos quadrinhos e dos livros que li na minha adolescência foram comprados em seu sebo.
O falecimento do "Seu Zé", como era carinhosamente chamado, deixará um vácuo imenso na cultura belenense.

Roteiro: Big Numbers, de Alan Moore

 

Big Numbers foi uma série inacabada com roteiro de Alan Moore e desenhos de Bill Sienkiewicz. Foram produzidos três números, mas só dois publicados. O terceiro foi disponibilizado na internet por um fã, que conseguiu uma cópia xerox do material. 
O roteiro a seguir é parte da primeira página desse terceiro número. É um ótimo exemplo do formato chamado pelo próprio Moore de "à prova de desenhistas", em que o roteirista descreve tudo nos mínimos detalhes. Em tempo: gostaria de agradecer à tradução do amigo Alan Noronha, roteirista de quadrinhos e tradutor juramentado (o Whatsapp dele para trabalhos de tradução é 51 981415046 e você pode também entrar em contato através da página dele).

Confira o roteiro e veja como ficou o resultado final. 


BIG NUMBERS
Três (quarenta páginas)
PÁGINA 1
QUADRO 1
“APENAS NO PAPEL A HUMANIDADE CONSEGUIU ATINGIR GLÓRIA, BELEZA, VERDADE, CONHECIMENTO, VIRTUDE E AMOR DURADOURO.” - GEORGE BERNARD SHAW.

Olá, Bill. O tema visual recorrente que permeia esta edição é o do papel se ferrando. Considerando isso, não tenho muita certeza sobre a relevância da citação do Shaw acima...foi apenas o único verbete com a palavra papel no meu dicionário de citações. Talvez seu significado fique menos opaco ao progredirmos com a narrativa. Assim esperamos.

Esta primeira página tem 12 quadros, nos quais nós basicamente estamos olhando a irmã de Christine, Janice, que está sentada em sua cadeira junto à parede da ala lateral do hospital durante sua vigília da ainda não vista forma de seu namorado em coma Keith. Quero que você imagine que estamos olhando a Janice de frente, ela sentada contra a parede nos encarando, e que ela está lendo um formulário de pesquisa ilustrado e fartamente impresso. O formulário consiste em uma única folha, impressa em ambos os lados, na qual imagens simples e brilhantes de vida de consumidor rodeiam uma lista de perguntas que são brilhantemente numeradas. Conforme a Janice vai lendo, a parte de cima do formulário se virou para trás, de modo que fica visível de cabeça para baixo quando olhamos para ela. Agora, para este primeiro quadro, quero que você imagine que nós demos um zoom bem nessa parte virada do formulário de pesquisa. Mais precisamente, demos um zoom na coluna dos grandes números anelados que marcam as perguntas, embora estejamos tão perto deles que não podemos ver as perguntas. Tudo o que vemos são dois ou três grandes números de cabeça pra baixo, provavelmente números entre um e quatro, já que estão relacionados às perguntas bem no início da enquete. Esses dígitos invertidos preenchem todo o primeiro quadro, levando-nos à questão do campo de números que preenche a página frontal interior. O balão de fala da Janice sai do quadro acima.

Janice (em off, acima): ...dei dois formulários extra pra mamãe, mas a Chris estava choramingando sobre o romance dela, então ela não queria FAZER aqui.

QUADRO 2
Agora nos afastamos um pouco do close intenso nos números virados. Nesta tomada, podemos ver as perguntas (também de cabeça para baixo) que estão anexadas aos números anelados, sendo elas coisas simples como nome, endereço, você é o dono da propriedade acima, etc, que não precisam ser legíveis aqui a menos que você queira que elas sejam. Também podemos ver agora, nos afastando, que estávamos olhando a parte de cima virada de um formulário de pesquisa, e podemos talvez vislumbrar um pouco da mão da Janice...o dedão ou algo assim...entrando no quadro de fora para um lado enquanto ela segura o pedaço de papel. Os balões dela ainda entram no quadro na parte de cima da imagem.

Janice (em off, acima): Então, este formulário extra, eu pensei “Oh, o Keith gostaria disso. Eu vou...”  
Janice (em off, acima): Keith? Está me ouvindo?

QUADRO 3
Afaste um pouco mais e podemos ver agora toda a folha com o verso virado e um pouco de Janice sentada logo após, segurando-a frente a si enquanto lê para Keith, que não aparece no quadro. Ela está provavelmente sentada com uma capa de chuva, e se podemos ver algo de seu rosto entrando no quadro pela parte de cima, deve ser a parte inferior do rosto, com os olhos ainda não visíveis.
Janice (de cima): Bom.
Janice (de cima): Bem, de qualquer modo, tem a ver com um shopping center novo e eu já preenchi as quatro primeiras...

QUADRO 4
Ok, neste quadro nos afastamos só um pouco mais e agora temos uma confortável tomada de meia figura de cabeça e ombros da Janice sentada de frente pra nós em sua cadeira de hospital, segurando o formulário de pesquisa em frente dela, seus olhos abaixados em direção a ele enquanto lê. Sua expressão, como de costume, é razoavelmente neutra. Também, baseados em seu ambiente imediato, não temos muita ideia de onde ela está, como nas ocasiões anteriores em que a vimos sentada com Keith no hospital.  Keith, como sempre, está fora do quadro, em algum lugar ao fundo. É quase como se olhássemos para Janice através dos olhos comatosos dele, embora só vamos perceber isso mais tarde nesta edição.
Janice: “Nome: Keith Peach
                Endereço: Hospital
                Você é dono da propriedade acima? Não.
                Emprego ou ocupação: encanador”

QUADRO 5
Ok, agora no resto desta página de doze quadros mantemos a mesma tomada da Janice, só sentada lá de frente pra nós em uma tomada de meia figura de cabeça e ombros. Apenas Janice se move nesta página, e apenas levemente. Aqui, ela ainda não está olhando para nós, mas ainda tem os olhos baixos fixos no formulário. Aqui, ela tem uma leve expressão de inquietação como se estivesse levemente perplexa com a elaboração da próxima pergunta.
Janice: Aí diz “Você está atualmente trabalhando no emprego acima?”
                       Quer dizer, “Você ainda trabalha como encanador?”

QUADRO 6
Mesma tomada. Aqui, porém Janice desvia o olhar do formulário e dirige um olhar frio e questionador diretamente para nós, nos olhando diretamente nos olhos. Oh, por falar nisso, eu deveria ter mencionado que a Janice está segurando uma caneta esferográfica na outra mão. Desculpe por isso. Aqui, a caneta está pausada sobre o formulário enquanto a Janice dirige seu olhar questionador ao Keith que está fora do quadro antes de continuar.
Sem diálogo.

Jornada nas Estrelas – Os herdeiros de Platão

 


A série clássica de Jornada sempre teve um pé na filosofia, permitindo discussões sobre os mais diversos assuntos – em especial sobre a natureza humana. Mas há um episódio que literalmente é todo baseado em um filósofo. Trata-se de “Os herdeiros de Platão”, da terceira temporada.

No episódio, escrito por Meyer Dolinski, a Entreprise recebe um chamado de socorro de um planeta desconhecido. Quando chegam ao local descobrem que o planeta é povoado por pessoas com dons telecinéticos.

Esse povo viveu na Grécia antiga e teve contato com o filósofo Platão. Influenciados por suas ideias, eles procuraram um planeta onde pudessem colocar em prática uma utopia platônica que se assemelharia ao mundo das ideias. É um mundo em que atividades físicas são consideradas inferiores e os habitantes com vida eterna vivem num mundo de contemplação e meditação.

Mas essa utopia tem um lado negativo, como percebemos logo no início: a falta de atividades físicas faz com que eles fiquem fisicamente enfraquecidos, de modo que um simples machucado pode infeccionar a ponto de matar alguém. Foi isso que aconteceu ao líder local e por isso chamaram a Enterprise. McCoy consegue curá-lo e os platonianos decidem que precisam que o médico fique com eles caso algo parecido ocorra novamente. Com a recusa de McCoy, o líder local usa seus poderes mentais para humilhar e a atormentar Kirk e Spock até que o doutor resolva ficar no planeta.

A cena da humilhação é um daqueles exemplos de como a série clássica conseguiu unir humor e temas sérios. Kirk e Spock cantam e dançam, Spock chora e ri, Kirk simula um cavalo.

Leonard Lynnoy era um ator fenomenal e conseguia dar um tom até mesmo shakespeariano à sequência. Já William Shatner é um canastrão carismático cujo exagero funciona perfeitamente na trama.

A história, que poderia descambar para o ridículo, funciona muito bem, especialmente graças aos ótimos diálogos e ao elenco, com destaque para Michael Dunn, que faz o papel de um platoniano anão que não tem poderes e é constantemente humilhado pelos outros.

Uma curiosidade é que esse episódio tem uma das cenas mas famosas da história da TV: o famoso beijo inter-racial entre Kirk e Uhura. Na cena eles são obrigados a se beijarem para diversão dos habitates de Platonius.

Em tempo: o episódio mostra de fato uma deturpação da filosofia platônica, o que não escapou ao roteirista. À certa altura Spock comenta que os platonianos havia deformado a utopia pensada pelo filósofo grego.

segunda-feira, novembro 03, 2025

Como comecei a escrever resenhas

 


 Quando era adolescente eu tinha uma necessidade imensa de ler, mas livros eram itens raros em casa (lembro quando era criança de ficar lendo os dizeres das caixas de sapato). Então, a descoberta da sessão circulante da Biblioteca Pública do Centur, em Belém, foi providencial. Para mim foi uma surpresa descobrir que lá eles emprestavam livros! Embora o acervo fosse pequeno comparado a bibliotecas maiores, para mim era um verdadeiro tesouro. 

Na primeira vez em que fui levei muito tempo procurando, até que acabei escolhendo um livro de contos de H.G. Wells (nunca mais encontrei esse livro, então não sei o título). Quando estava fazendo as tratativas para o empréstimo, a bibliotecária me perguntou se eu não queria fazer uma resenha da obra.

- Resenha? O que é isso?

Ela me levou até um quadro cheio de fichas. Eram as resenhas feitas pelos leitores, que entregavam manuscritos e eram datilografadas pelo pessoal da biblioteca.

- Ok, vou fazer.

Fiz a resenha daquele livro, depois de outro e depois outro. Chegou num ponto que todas as fichas daquele painel eram minhas.

Eu me acostumei a tal a ponto a escrever sobre o que lia, que logo o painel não era mais suficiente para as minhas resenhas (eu devorava religiosamente um livro por semana, às vezes mais). Então comprei um caderno e comecei a resenhar tudo: livros, filmes e até exposições que eu visitava. Sempre que possível, recortava em jornais capas de livros ou cartazes de filmes para colar junto das resenhas. Lembro de uma exposição sobre a expedição langsdorf em que inclui no caderno um recorte anunciando a exposição. Aliás, aquela exposição me marcou tanto que depois a usei num conto que posteriormente seria incluído numa antologia internacional de literatura de fantasia publicada pela editora Devir...

Eu me acostumei a tal ponto a resenhar que ler um livro e não resenhar era como se eu não tivesse lido. Assistir a um filme e não resenhar? Impensável!

Quando, tempos depois, surgiram os blogs, eles se tornaram a versão digital daqueles cadernos. Na época, blogs falavam de assuntos exclusivamente pessoais, que interessavam apenas à pessoas e seus amigos. Meu blog era de resenhas (e, ocasionalmente, um ou outro artigo sobre assuntos do momento).

Algum tempo depois eu recebi o convite de integrar a equipe do Digestivo Cultural, que já foi o maior e mais importante site de cultura do Brasil. O editor do digestivo me enviava um livro por mês para ser resenhado. Eram resenhas de cinco mil toques, textos muito mais longos dos que eu era acostumado a fazer no meu blog ou mesmo no meu caderno. Não era só fazer um resumo da história e um crítica da obra. Com cinco mil toques eu comecei a fazer também análises mais aprofundadas sobre, por exemplo, o estilo do autor. Infelizmente chegou num ponto em que o editor do digestivo começou a se interessar mais por política do que pela parte cultural, o que foi matando o site e os colaboradores foram saindo aos poucos, entre eles eu. 

Desde então, tenho continuado a publicar meus textos sobre livros, filmes e séries tanto no meu perfil quanto no blog.

Eu tenho aconselhado meus alunos de jornalismo a fazerem o que eu sempre fiz: resenhar principalmente livros. Fazer isso ajuda na compreensão e na retenção dos aspectos principais da obra. Além disso, resenhar é um ótimo exercício de escrita.

X-men – para salvar a terra selvagem

 


Em 1978, graças à parceria de Chris Claremont no roteiro e John Byrne no desenho, o título dos X-men estavam em plena ascenção em uma escalada constante de qualidade que faria com que a revista se tornasse uma das mais empolgantes do mercado de super-heróis.

Uma representação perfeita desse momento é a saga dos mutantes na Terra Selvagem, uma trama que veio logo depois de outro momento empolgante: o confronto com Magneto. Na história, a fortaleza de Magneto é destruída, Fênix e Fera conseguem escapar graças ao poder da primeira e o restante dos X-men escapam em decorrência da ação conjunta de Ororo e Banshee. Salvos, cada grupo acha que o outro morreu. Essa trama de enganos tornou-se tão emblemática que seria repetida diversas outras vezes no futuro.

Resumo da ópera: Cíclope, Banshee, Noturno, Colossus, Ororo e Wolverine vão parar na Terra selvagem, um ambiente tropical em plena Antártida, e a partir daí é ação pura. Para começar são atacados por um pterodátilo. Depois, Sauron suga o poder de Tempestade e se torna extremamente poderoso a ponto de controlar Wolverine, depois os mutantes precisam enfrentar um deus de pedra que está construindo uma cidade que irá destruir a terra selvagem.

Essa saga demonstrava os motivos pela qual a série era tão revolucionária na época. Para começar, o desenho de Byrne em perfeita sintonia com a arte-final de Terry Austin criava imagens grandiosas, como a primeira visão da terra selvagem ou a splash page em que os heróis estão escalando uma montanha gelada no número 116 ou a splash de Sauron, ameaçador, segurando Ororo pelos cabelos sob o olhar assustado de Cíclope. Além disso, Byrne era ótimo em retratar o grupo, com imagens vistas de baixo para cima dos personagens reagindo a situações chave.

Por outro lado, Chris Claremont conseguia desenvolver os personagens e aprofundar suas personalidades mesmo em plena ação. As motivações dos heróis são muito claras, assim como suas reações aos acontecimentos são totalmente verossímeis e de acordo com a personalidade de cada um. Se Wolverine simplesmente matava sem remorsos (algo totalmente inédito nos comics americanos – nessa época super-heróis não matavam nem morriam), Ororo se sentia depressiva quando não conseguia salvar alguém, mesmo que fosse um vilão.

Essa história foi publicada pela RGE no almanaque do Hulk 8 e pela panini no álbum Magneto triunfa. A RGE anunciou a história como a “maior aventura dos X-men”. Até aquele momento era mesmo.

Perry Rhodan – O mundo dos três planetas

 


No volume 38 da série Perry Rhodan, Crest e Thora tentam voltar para Árcon acompanhados dos terranos. Mas quando chegam lá, descobrem que não são bem-vindos e que o império agora é comandado por um robô. Na verdade, eles nem mesmo conseguem chegar à sede do império, ficando presos em um planeta periférico.

No número 39, “O mundo dos três planetas”, Rhodan resolve ir com os arcônidas para Árcon em uma gasela (uma nave menor).

O título é uma referência à característica única de Árcon, um mundo composto por três planetas que compartilham a mesma órbita ao redor do sol – uma demonstração do avanço da tecnologia arcônida. O primeiro mundo é reservado exclusivamente para áreas residenciais. O segundo, para o comércio, indústria e abastecimento alimentar. O terceiro é o planeta da guerra, onde fica a gigantesca frota arcônida.

A passagem do grupo pelo planeta residencial, no qual eles encontram o Imperador (e descobrem que ele não tem poder algum) é um dos momentos mais interessantes do livro ao mostrar a cultura e a arquitetura arcônida. Uma das características desse povo é fugir ao máximo de qualquer coisa que possa lembrar a uniformização. “Nenhum parque se parece com o outro e ninguém criará o mesmo animal doméstico que o vizinho”, explica Thora.

Também é explicado como funcionam as naves esféricas arcônidas, com os jatos montados no anel equatorial.

A capa alemã destacava a gigantesca nave Titã. 


O volume é escrito por K.H. Scheer, um dos melhores autores da franquia, que já demostra sua grande capacidade descritiva logo na primeira página: “Caíram dos céus como um bando de mosquitos gordos e repugnantes. Seus ferrões eram pesados canhões energéticos. As vísceras abrigadas atrás de blindagens resistentes pulsavam num ritmo tão preciso que jamais seria atingido por qualquer combinação orgânica de células vivas”.

O plano de Rhodan e os arcônidas Crest e Thora é temerário: roubar um supercouraçado arcônida, uma nave monstruosa de 1.500 metros. Para isso, eles se fazem passar por voluntários vindos de um dos mundos periféricos do império sob liderança de dois arcônidas da classe superior.  Mas como fazer isso em meio à vigilância do computador regente?

O resultado é uma trama extremamente tensa, repleta de ação militar, no melhor estilo K.H. Scheer.

Uma curiosidade é que o volume traz a atencipação da tecnologia Wi-fi. No caso não para sinal de internet, mas para energia usada pelo  computador que controla as naves arcônidas.

Roteiro de quadrinhos: a jornada do horror

 


Nos manuais de roteiro há, normalmente, uma visão sobre a estrutura da história chamada Jornada do herói. Nela, um persogem é retirado de sua zona de conforto e obrigado e enfrentar diversos desafios. No final, vemos sua redenção e sua volta para o mundo normal trazendo algum ensinamento.

Existe um gênero, no entanto, que rompe completamente com essa estrutura: o terror. No terror, o protagonista encontra não a redenção, mas a perdição.

Nesse sentido, o terror é herdeiro direto da tragédia. Aristóteles já tinha descrito a tragédia como um gênero protagonizado por um herói que tem uma falha trágica, a hamartia, que o faz enfrentar seu destino, seus companheiros e até os deuses. No final, essa falha o leva à destruição.

Na tragédia grega, o herói era sempre alguém com grandes poderes, mas maculados pela arrogância, fazendo com que eles se sintam melhores que os deuses.

No terror, a característica do protagonista geralmente se resume à sua falha de caráter, que pode ser não a arrogância, mas a falta de empatia, a ganância ou qualquer outro defeito que se sobrepõe às qualidades. A jornada do herói no terror, portanto, o leva a um caminho não de rendenção de seus defeitos, mas de perdição em decorrência desses mesmos defeitos.

Uma pequena amostra de histórias da EC Comics serve para demonstrar essa característica. 



Em “Papel principal”  três atores tentam entrar em uma peça teatral shakespeariana. Um deles se oferece e é aceito, mas é morto pelo outro. O mesmo ocorre até o terceiro. No final, o ator descobre que está num hospício e seu papel é ser a cabeça que Hamlet segura.

 


Em “Com um pé na cova”  um coveiro explora uma viúva, fazendo um funeral com materiais de terceira, mas vendendo-os com se fossem de luxo. Depois sofre um acidente e fica paralisado. Seu sócio cuida de seu funeral e usa todo o seu espólio numa farsa, um funeral pobre, que é orçado como rico.

 

Nos dois exemplos acima a falha que leva os protagonistas à ruína é a ganância.



Em “No raiar do dia’ um camponês encontra linda garota em casa. Apaixonam-se e transam. Enquanto ela dorme ele ouve que uma louca assassina ronda a região. Temendo que esteja com a assassina dentro de casa, e a coloca para fora e tranca a porta. Nisso aparece a verdadeira louca e mata a garota para ficar com sua roupa.

No exemplo acima, é a covardia que leva o protagonista a ser punido.

Se a covardia leva o protagonista à perdição, imagine o assassinato. Na mesma edição há duas histórias em que a falha moral dos protagonistas é serem assassinos. 

Em “Dia de praia” um rapaz mata a namorada jogando-a da montanha russa. Para se disfarçar, ele vai para a praia, esconde suas roupas e se mistura aos banhistas. Conhece algumas meninas, que, por brincadeira, o puxam para a água. Mas ele não sabe nadar e morre afogado.

Em “O assassino” , um assassino profissional é contratado para apagar um cara por 500 dólares. Ele o persegue pela cidade até encurralá-lo em um local escuro e vazio, sem testemunhas. Quando atira, descobre que está na verdade em um teatro, diante de toda uma plateia. 

Em Phobus o protagonista sucumbe moralmente


Essa estrutura narrativa pode ser observada em várias de minhas histórias produzidas em parceria com Bené Nascimento e publicadas na década de 90 em revistas como Calafrio e Mephisto.

Em Phobus, por exemplo, vemos um personagem que se alimentava do medo das pessoas. Uma vez preso em um hospício, o poder se desprendeu dele e passou a percorrer o mundo matando pessoas e se alimentando de seus medos. No final, o protagonista não morre, mas sucumbe moralmente ao aceitar de volta o poder, o que significa que ele voltará a matar.


Se Carrie fosse uma história de super-herói, terminaria com a redenção da protagonista


Saindo dos quadrinhos e entrando na seara da literatura do terror, um dos clássicos do gênero mais conhecidos é Carrie, a estranha. É a história de uma menina com poderes telecinéticos dominada por uma mãe fanática religiosa que, após ser vítima de uma brincadeira de mau gosto, praticamente destrói uma cidade, matando centenas de pessoas.

Como nas jornadas comuns, a protagonista tem um problema a ser resolvido, ou melhor, dois: a relação com a mãe e aprender a lidar com seus poderes. Numa narrativa super-heroiesca, que segue a jornada do herói, ela alcançaria a redenção ao conseguir controlar os seus poderes ao mesmo tempo em que controla seus problemas psicológicos. Isso aconteceria ao mesmo tempo em que ela se concilia com a mãe. Como é uma narrativa de horror, ela sucumbe ao seu lado mais sombrio, o que a leva à perdição.



O mesmo ocorre em uma história minha em parceria com Bené Nascimento. Aparentemente uma história de super-herói, a Família Titã é, na verdade, uma jornada do horror. O personagem principal, Tribuno, é dominado pelo sentimento de vingança, o que o leva a matar os dois outros heróis e se matar no final.

Nem todas as histórias são sobre heróis que empreendem uma jornada e saem dela renascidos. Algumas são sobre protagonistas que sucumbem durante a jornada, seja física ou moralmente. Se a jornada do herói nos aponta um caminho de evolução espiritual, a jornada do horror nos alerta para o que acontece quando somos dominados por nossas falhas.