Talvez poucos, ou realmente ninguém se lembre de uma velha funcionária da repartição de... chamada Elvira. De fato, mesmo que você tivesse ido à repartição, ainda assim, dificilmente teria reparado nela.
Durante oito horas diárias, ela ficava enfiada numa mesa empoeirada,
carimbando centenas de papéis. Ao que parece, essa era sua única função importante.
Passaram-se os tempos, mudaram os governos, os gerentes, os diretores, mas Elvira permaneceu imutável em sua mesa escondida, carimbando papéis e ajeitando, de tempos em tempos, os óculos no nariz.
A origem de seu emprego se perdera no limbo. Não se sabia se era concursada ou se tivera, algum dia, um pistolão. A verdade é que era uma criatura tão esquecível e seu salário tão insignificante que não se importavam de deixá-la lá.
Certo chefe, há muitos anos, reparara em Elvira. Perguntou-lhe o que fazia, quando tinha entrado ali - ao que ela não soube responder - e ficou indignado ao saber que sua única função era carimbar documentos. Decidiu, então, promovê-la a operadora da máquina de xerox.
Nada mais fácil. Bastava apertar alguns botões e pronto! Saiam cópias
perfeitíssimas, como se fossem originais.
Teria sido muito, muito fácil, não fosse por um pequeno detalhe: Elvira era absolutamente incapaz para o trato humano. Ela não dizia uma única palavra a quem quer que fosse e chorava copiosamente
quando alguém apontava qualquer defeito no xerox, ou pedia uma segunda cópia.Por fim, os funcionários deixavam os documentos ali e saiam sem dar um pio.
Elvira, ainda assim, atrapalhava-se: reduzia o que não era para ser
reduzido, tirava 30/30 cópias de coisas absolutamente desnecessárias...
Diante do trabalho acumulado, o gerente desistiu. Devolveu Elvira para sua mesinha empoeirada e nunca mais se falou no assunto.
Não se sabe, ao certo, como recebera esse nome de Elvira. Sabe-se que fora criada por um tio depois que os pais morreram, ou a abandonaram. Antes que nascesse, haviam elaborado uma lista de 20 belíssimos nomes... todos masculinos! Como nascesse mulher e resmungasse muito, resolveram por-lhe o nome da avó, que se chamava Elvira. É bom que o leitor saiba que o tio era um tipo esquisito, que bebia muito e se escondia das visitas. Aceitara cuidar da menina porque não havia outro jeito e porque calculara mentalmente a economia que faria usando-a como empregada doméstica.
Assim, Elvira cresceu sem nunca ter experimentado uma palavra de carinho ou de afeto. Acostumara-se a ser repreendida tanto por falar quanto por calar. E como calar era mais fácil, calava-se.
Nos últimos tempos, além da função de carimbar documentos, ganhara uma outra. Viera um novo gerente, que tinha uma esquisitice muito singular. Ele descobrira no porão um velho cofre e decidira que todos os documentos carimbados deveriam ser guardados nele antes de serem assinados.
Era de se ver o gosto com que examinava o cofre toda manhã. Esfregava as mãos e então punha-se a girar a tranca, soletrando mentalmente os números.
Finalmente, pegava os documentos, levava até sua mesa e os assinava, com um sorriso nos lábios.
Repetia esse ritual todos os dias e se sentia o mais importante dos homens quando o fazia. Costumava dizer que aqueles eram documentos importantíssimos e que era mesmo uma temeridade deixá-los assim, espalhados sobre a mesa, quando ladrões estavam por toda a parte...
Como não tinha qualquer outra função, além de carimbar, Elvira ficara
responsável pelo cofre. Tinha que carimbar os documentos e, depois, ao fim do dia, trancá-los no cofre. Essa foi sua desgraça.
Certo dia, quando voltava para casa, depois de quase duas horas de ônibus lotado, ela retirou a bolsa da chave ficou petrificada.
A revelação abateu seus pensamentos como um tiro: esquecera o cofre aberto!
Como pudera ser tão imbecil?
Pensou em voltar. Controlou-se. Abriu a porta, entrou e despencou no sofá. Estava frita!!! Ficava imaginando a colossal reprimenda que receberia do chefe.
Mais! Muito mais! Seria despedida! Perderia a aposentadoria, a casa. Viu a velhice tranquila de seus sonhos se desfazendo diante de seus olhos. Mas o que podia fazer? Nada! Agarrou-se à idéia de que chegaria antes do chefe para fechar o cofre... mas era impossível. O homem era o primeiro a chegar, e a primeira coisa que fazia era justamente examinar o seu querido cofre.
Levantou. Tomou um banho. Não tinha fome. Foi dormir sem comer. Já era tarde, então...
Sonhou com o tio. Ele lhe aparecia com os olhos vermelhos, um cheiro
terrível de cerveja, o punho cerrado, ameaçando espancá-la. Dizia coisas horríveis, a saliva escapando da boca...
Elvira acordou assustada. Tentou dormir novamente. Não conseguia. Olhou para o relógio. Eram 22:40. Ainda havia ônibus. Talvez pudesse se levantar e ir até a repartição. Arranjaria um jeito de entrar e fecharia o cofre...
Tudo daria certo, ela voltaria para casa e terminaria a noite dormindo
tranquilamente. Voltou a deitar. Fechou os olhos. Não conciliava o sono. A imagem do tio aparecia-lhe diante dos olhos, misturada com a do cofre.
Levantou.
Vestiu a primeira roupa que encontrou pela frente e saiu. Duas
horas depois estava em frente ao prédio da repartição.
Andou à volta. Passou por um lado e por outro. Pensou em escalar a grade. Depois mudou de idéia. Talvez o melhor fosse pular o muro lateral, usando o muro do vizinho, menor, como degrau.
Ia se aproximando quando enorme avançou das sombras.
Elvira caiu na calçada, assustada com os latidos terríveis do cão.
Lembrou-se do tio. Sentou-se no meio-fio, desesperada. Não havia um meio de entrar, não havia um meio de fechar o cofre... estava tudo acabado: a casa, a aposentadoria, tudo!
Voltou para a parada.
Ficou lá, inerte, por mais de meia-hora, relembrando sua vida.
Nunca fora amada por ninguém. Nunca tivera namorados, ou mesmo alguém que lhe fizesse galanteios.
Todos os seus sonhos se resumiam à aposentadoria. Queria uma velhice tranquila e uma morte decente... um caixão simples, mas ornado com muitas flores.
Já passava de uma hora e não passava nenhum ônibus. Elvira resolveu andar a esmo. Foi quando começou a chover. Andou, andou, andou por toda a noite, tiritando de frio e tossindo muito.
Foi encontrada na manhã seguinte, caída numa vala e encolhida de frio. Como não tivesse nenhum documento consigo, foi enterrada como indigente.
Na repartição, ninguém deu pela sua morte. Naquele dia havia uma agitação extraordinária. O gerente fora demitido e nem aparecera pela manhã. O novo chefe, a primeira coisa que fez foi mandar tirar todos os documentos do cofre e devolver o monstrengo ao porão. Ia comandando o trabalho, ao mesmo tempo em que dizia:
- Tirem essa coisa enferrujada daqui! Não quero trastes no meu escritório...
E, além disso, de que serve esse cofre? Nem mesmo o fecham...
4 comentários:
Muito bom o conto,Professor.
Lembrou-me o Capote, de N. Gogol. Só faltou o fantasma de Elvira surgir roubando cofres aleatórios em busca do cofre de sua desgraça...
Muito bom o conto, Professor.
Lembrou o Capote do Gógol
Sim, é uma releitura do Capote, um dos meus contos prediletos.
Quando conheci Gogol em Almas Mortas fiquei interessado em mais material do autor, sobretudo pela construção narrativa totalmente imprevisível.
Similar ao Capote gosto de A dócil, de Dostoievski, que parecido com a narrativa do Google em ter porgulho protagonista alguém ordinário, Dostoievis
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