Conhecido como Duas viagens ao Brasil, a obra Hans Staden
foi o primeiro livro escrito sobre o Brasil e povoou o imaginário europeu à época
com sua descrição dos índios antropófagos. Em 1927, Monteiro Lobato resolveu
trazer a obra para o público infantil. O interessante da versão de Lobato é que
ele recheia o livro de comentários, a maior parte deles na boca da Dona Benta,
que narra a história. Muitos desses comentários, aliás, vão de encontro à visão
do próprio Hans Staden.
Hans Staden era um alemão que se encantou pelo mar e
pretendia visitar a Índia. Uma série de acontecimentos fez com que ele viesse
parar no Brasil onde se tornou responsável pelo forte de Bertioga.
Num dos dias que estava caçando, foi capturado pelos
tupinambás, inimigos declarados dos tupiniquins, aliados dos portugueses. Os tupinambás
eram canibais e costumavam comer os adversários aprisionados, mas não fizeram
isso com Hans por o acharem curioso. Nunca tinham visto um loiro de olhos azuis
e resolveram levá-lo para que as mulheres da tribo pudessem se divertir com
ele. O alemão vai usando de diversos estratagemas para se manter vivo,
inclusive usando uma doença que assolou diversas pessoas da tribo para
convencer os indígenas de que seu deus queria se vingar deles por quererem
comê-lo.
Lobato era um narrador nato e usa essa qualidade para
tornar ainda mais interessante a história. Chega um ponto em que o leitor fica
preso na trama, tentando antecipar a forma como Hans conseguiu se libertar (que
ele conseguiu sobreviver é óbvio, não?).
Mas talvez o mais interessante da obra sejam os comentários
de Lobato, que vão de antropologia a história, passando pela ética. Quando Narizinho
diz que o método de preparo do cauim, a bebida indígena, é nojento, Dona Benta
retruca: “Para nós que temos outra cultura e outro modo de ver. Se você fosse
uma indiazinha daqueles tempos, havia de achar a coisa mais normal do mundo e
não deixaria de comparecer a todas as mascações de abati”.
Ao comentar as atrocidades cometidas pelos europeus na
América, Lobato diz que “Não há termo de comparação entre o modo pelo qual os
índios tratavam os prisioneiros e o que era de uso na Europa. Lá a ‘civilização’
recorria a todos os suplícios, inventava as mais horrendas torturas. Assavam os
pés da vítima, arrancava-lhe as unhas, esmagava-lhe os ossos, davam-lhes de
beber chumbo derretido, queimavam-no na fogueira. Não há monstruosidade que em
nome da lei de Deus os carrascos
civilizados, em nome e por ordem dos papais e reis, não tenham praticado”.
Segundo Lobato, a história da humanidade é uma pirataria
sem fim, em que o mais forte sempre tem razão e vai pilhando o mais fraco.
Quando Narizinho pergunta porque esses homens cruéis entraram
para a história como gloriosos, dignos de estátuas, Dona Benta responde: “Por
que a história é contada por eles. Um pirata quando escreve sua vida dá a
impressão de que é um magnânimo herói”.
Curiosamente, enquanto eu lia o livro, Donald Trump tomava
posse e seu discurso era a glorificação do mais forte submetendo o mais fraco,
justamente aquilo que Lobato critica durante toda a obra, o que mostra como pouca
coisa mudou na história da humanidade.
Apesar de toda a crítica, Lobato não escapou da visão
colonial. Quando narizinho se espanta com a ingenuidade dos indígenas, que era
facilmente enganados pelo alemão, Dona Benta responde: “É que possuíam um grau
de inteligência muito inferior ao dos brancos. Daí a facilidade com que os
peros (portugueses) e espanhóis, em muito menor número, conseguiram dominá-los”.
Uma curiosidade é que o título original da obra de Hans
Staden é "História Verdadeira e Descrição de uma Terra de Selvagens,
Nus e Cruéis Comedores de Seres Humanos, Situada no Novo Mundo da América,
Desconhecida antes e depois de Jesus Cristo nas Terras de Hessen até os Dois
Últimos Anos, Visto que Hans Staden, de Homberg, em Hessen, a Conheceu por
Experiência Própria e agora a Traz a Público com essa Impressão".
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