terça-feira, dezembro 09, 2025

Roteiro para quadrinhos: Texto narrativo – texto redundante

 


Algo fundamental, uma das primeiras lições para um futuro roteirista de quadrinhos, é que o texto nunca deve ser redundante. Em outras palavras, nunca se deve dizer com as legendas ou com os diálogos aquilo que o leitor está vendo.
Mas algumas pessoas confundem texto redundante com texto narrativo. Embora possam parecer semelhantes, não são. O texto narrativo, embora não explore toda a potencialidade dos quadrinhos, não chega a ser um erro. Já o texto redundante se limita a dizer aquilo que o leitor está vendo é erro feio.
Imagine uma cena: um casal andando pelo deserto em pleno dia, o sol acima deles e nada por perto além da areia escaldante.
Um texto narrativo possível para a cena seria: “O casal andou por horas a fio sob o céu escaldante sem encontrar um único indício de vida ou civilização. Se não encontrassem logo água, iriam morrer no deserto”. Observe que há várias informações incluídas no texto que não aparecem na imagem (o casal está andando por horas, não encontraram sinal de vida em toda a caminhada, logo vão morrer de sede).
Um texto redundante sobre a mesma cena seria: “O casal anda no deserto sob o sol escaldante”. Neste caso, o texto se limita a dizer aquilo que o leitor está vendo, sem acrescentar nada à informação visual.
Percebam como o texto redundante se limita a descrever a imagem que está sendo vista pelo leitor. Ou seja, é totalmente desnecessário.
Um exemplo de texto redundante pode ser encontrado na página da série Os Eternos, de Jack Kirby, publicada em Superaventuras Marvel 25.
Observe os dois primeiros quadrinhos. Eles mostram a nave dos desviantes entrando por uma cabeça de pedra e singrando em direção a uma abertura luminosa. O que o texto diz? O que o leitor está vendo: “Logo uma enorme cabeça de pedra surge à sua frente. Penetrando pela boca do dragão, a nave avança rumo a uma abertura luminosa”.

Um outro exemplo de texto redundante pode ser encontrado na versão quadrinística da história A torre do elefante, com textos de Roy Thomas e desenhos de John Buscema. Conan e outro ladrão estão no pátio da torre quando encontra com cinco leões. O diálogo diz: “Leões! Cinco deles!”.
Curiosamente, na mesma página há um exemplo de ótimo uso do texto quadrinístico, inclusive como elemento de suspense. O ladrão nemédio empurrou Conan para trás, fazendo com que ele parasse. O texto diz: “Seu olhar está fixo em arbustos poucas jardas à frente... arbustos que continuam se movendo, embora o vento tenha morrido”. O texto narra a aproximação de algo que o leitor não é capaz de identificar visualmente (só depois, no quadro de impacto ele descobrirá que são leões).

Edgar Morin e a teoria da complexidade

 

Um dos pensadores mais importantes da atualidade é o francês Edgar Morin. Suas idéias, inicialmente criadas para discutir a questão do conhecimento, espalharam-se por várias áreas e tornaram-se uma referência obrigatória na área de educação a partir do livro Os sete saberes necessários à educação do futuro, escrito a pedido da Unesco.
         Essencialmente, o pensamento de Morin, chamado de teoria da complexidade, baseia-se na busca de uma ética na ciência e na crítica ao que ele considera os três pilares da ciência moderna: a ordem, a separabilidade e as lógicas indutivas e dedutiva. Morin também insiste na necessidade de se trabalhar com as limitações  do pensamento científico.
         A busca da ordem sempre foi o interesse principal da ciência. Para a ciência, caótico é tudo aquilo que é desconhecido. A partir do momento em que se descobre como algo funciona, revela-se a ordem.        
         A teoria da informação  ensina que ordem é falta de varidade/informação. Já caos é variedade/informação em estado puro. Um relógio é um exemplo perfeito de ordem. Ele sempre fará as mesmas coisas, sempre se movimentará de maneira uniforme a totalmente previsível. Já a bolsa de valores é um fenômeno mais caótico, pois é muito mais difícil prever seus movimentos.  Uma outra maneira de definir ordem, complementar à anterior, é através da determinação. Fenômenos ordenados são determinados. Determinação sugere uma relação causal. Se determinado fenômeno ocorre, ele terá obrigatoriamente uma conseqüência.
         A relação de causa e consequência é extremamente determinada na Ciência Clássica, por isso o relógio foi tomado como modelo do mundo.
         A crença na determinação fez com que os cientistas e filósofos sonhassem com a possibilidade de decifrar a verdade definitiva. A Ciência Clássica ignorava os fenômenos dinâmicos, que estão mais próximos do caos que da ordem. A bolsa de valores, o trânsito de cidade, as sociedades e até a vida humana são fenômenos que escapam ao determinismo. Morin vai criticar justamente essa idéia de determinismo, que até pouco tempo predominava nas ciências sociais. 
         Edgar Morin diz que a complexidade nos dá a liberdade, pois nos livra do determinismo. Não somos prisioneiros de uma determinação, seja biológica ou social. Ao contrário, construímos nosso próprio destino a partir de nossas escolhas, sejam elas conscientes ou não.
         Para Morin, portanto, o mundo é uma mistura de caos e ordem e o cientista deve aprender a lidar com ambos.
         A segunda parte da teoria de Edgar Morin, e também a mais difundida,  refere-se à crítica à separabilidade. A ciência sempre trabalhou com a idéia de que, para resolver um problema, é necessário dividi-lo em pequenas partes e estudá-las uma a uma.
         Esse princípio provocou a divisão do saber e a especialização, que permitiu um grande avanço tecnológico. Mas a especialização logo revelou suas deficiências, pois os cientistas, cada vez mais especializados, perderam a visão do todo.
         A teoria dos sistemas demonstrou que os fenômenos são processos de retroação contínua. É, portanto impossível em algumas situações estabelecer a causa e a conseqüência. O que é causa de um fenômeno é também causada por outro fenômeno numa rede de interações infinita.
Como conseqüência da separabilidade, a responsabilidade sobre as decisões, incompreensíveis para os leigos, são deixadas nas mãos de especialistas, que não consideram as conseqüências amplas de suas ações.
Em lugar da separabilidade, Morin propõe a complexidade, que significa abraçar o todo. Ou seja, é o princípio de que é impossível conhecer as partes sem conhecer o todo, assim como conhecer o todo sem conhecer as partes.
         A terceira parte da crítica de Edgar Morin à Ciência Clássica diz respeito à lógica indutiva. Desde Galileu a indução tem sido considerada o procedimento científico mais correto. Mas mesmo os defensores da dedução não conseguem responder a uma pergunta: quantos casos é necessário pesquisar para se  chegar a uma conclusão geral sobre o assunto? Morin usa a crítica de Karl Popper para fundamentar sua posição. Para Popper,  essa falha da indução faz com que ela não seja científica.
         Para Popper, a ciência só pode se utilizar da dedução, em que se faz uma generalização e depois vai se pesquisar casos singulares. Se os casos baterem com a hipótese, dizemos que ela foi corroborada (não confirmada, pois é possível que estudos futuros cheguem a conclusões diferentes). Se não baterem com a hipótese, dizemos que a mesma foi falseada. Popper demonstrou que só é científico aquele conhecimento que pode se mostrar falho, ao contrário do conhecimento teológico, que não pode ser falseado.
         Edgar Morin aproveitou a crítica de Popper à indução em sua filosofia, mas também fez crítica à dedução, citando o paradoxo lógico do mentiroso de Creta. Imagine que um cretense diz que todos os cretenses são mentirosos. Se ele estiver dizendo a verdade, está mentindo, pois ele também é cretense e, pela lógica, deveria estar mentindo. Se ele estiver mentindo, está dizendo a verdade. É uma situação que não tem escapatória lógica.
         Embora admita que a dedução é mais confiável que a indução, Morin propõe uma nova lógica, menos classificadora, que não fosse baseada no OU/OU, mas no E/E. Uma lógica complementar e não excludente, que permitisse termos contrários, como: “A vida surge da morte”. De fato, a morte do grão é o início da semente, que irá dar origem a outra planta. A cada dia nossa pele se renova em grande parte. É a morte das células da epiderme que nos permite continuar vivendo.

Demolidor – Surge Elektra

 


No número 168 da revista do Demolidor, Frank Miller assume de vez os roteiros. Ele tinha assumido os desenhos do título apenas alguns números antes, mas sua narrativa revolucionária já mostrava que ele se tornaria o nome mais quente do mercado.

Assim que assumiu, Miller quis já imprimir sua assinatura no título, introduzindo uma personagem que se tornaria uma das mais badaladas da Marvel, a assassina Elektra.

Na trama, o Demolidor está atrás de um ladrão chamado Alarich Walllenquist, que testemunhou um assassinato e pode ser a única pessoa capaz de livrar da prisão uma pessoa inocente. Só que Elektra também está atrás do mesmo homem.

A primeira aparição de Elektra 


A história começa numa sequência antológica (eu me lembro até hoje quando a li em Superaventuras Marvel 6). Tucão está disfarçado de cego quando chega o Demolidor, perguntando informações sobre o homem desaparecido. Começa uma briga entre os dois que é quase um covardia, afinal estamos falando do Tucão, o eterno perdedor da série. Um falso mendigo tenta matar os dois com uma garrafa de nitroglicerina. O demolidor está interrogando esse segundo atacante quando surge Elektra.

Embora nessa primeira imagem não seja possível nem mesmo ver seu rosto, é uma cena impactante, com a anti-heroina agarrada a um cabo, numa atitude corporal que conota poder e grande capacidade física.

Miller revela forte influência de Will Eisner e Steve Ditko. 


Então, um flash back mostra como Elektra e Matt Mudock se conheceram. Os dois estudaram na mesma faculdade, ele um pobre rapaz e ela a filha de um diplomata. Há cenas de humor, em especial aquelas envolvendo o guarda-costas dela que parecem ter saído diretamente das páginas de Will Eisner. E há cenas de ação com forte influência de Steve Ditko (do qual ele copia também as páginas com muitos quadros). Miller une perfeitamente essas duas influências, misturando-as com novidades narrativas únicas, como a forma como é mostrado o radar.

Acresente a isso diálogos descolados (“Não vá embora ainda, Slaughter. Já falo com você... assim que tiver jogado fora o lixo!”, enquanto se livra de alguns capangas) e textos de ótima qualidade (“Ecoando pela via expressa da zona norte, sirenes da polícia, irremediavelmente atrasada, lamuriam-se... uma distante sirene de nevoeiro emite um longo e doloroso gemido... pois pela primeira vez, Elektra chora”).

A divulgação científica nos quadrinhos

 

Defendida em 1996, minha dissertação de mestrado A divulgação científica nos quadrinhos - análise do caso Watchmen foi um dos primeiros trabalhos acadêmicos a analisar a relação entre HQs e ciência no Brasil. Tornou-se referência obrigatória inclusive sobre uso de gibis em sala de aula. Para ler, clique aqui.

A saga da Viúva Negra

 

A Viúva Negra é uma das personagens mais populares da Marvel no cinema. Entretanto, nos quadrinhos poucas vezes ela ganhou protagonismo. Uma dessas poucas vezes foi uma ótima minissérie em quatro partes publicada na revista Marvel Fanfare no ano de 1982.

A história reunia uma dupla realmente impressionante. O roteiro era de Ralph Macchio, um cara especializado em histórias de ação que, inclusive, escreveu algumas das primeiras histórias o Justiceiro. Os desenhos ficaram a cargo do mestre George Perez, cuja arte estava em plena ascenção rumo ao deslumbre que seria seu trabalho mais conhecido, Crise nas infinitas terras.
Na HQ, a heroína é chamada para investigar o desaparecimento do cientista Ivan Petrovich, o homem que a criou. Tudo leva a crer que ele desertou para a União Soviética, mas as reviravoltas do roteiro irão mostrar uma trama muito mais complexa.
A primeira história, embora bastante forçada, dava o tom da série: uma equipe da Shield ataca Natasha quando ela está tomando banho enquanto Nick Fury conta a história da personagem para algum leitor desavisado que comprou a revista sem saber quem é a Viúva Negra.
Eu realmente gostaria de saber qual a necessidade de atacar uma espiã extremamente perigosa que é uma possível aliada, colocando em risco sua vida e principalmente dos outros agentes só para testar suas qualidades– mas vamos admitir que a Shield tem métodos bem estranhos de recrutamento.

Para quem não sabe, Natasha Romanov era uma espião russa encarregada de sabotar as indústrias Stark e roubar segredos industriais. Mas como Stan Lee recebeu muitas cartas elogiando a personagem, resolveu transformá-la em heroína. Nas primeiras histórias ela usava um modelito nada discreto para uma espiã: um maiô preto, meias arrastão, capa azul e uma máscara. Só depois surgiu o modelito preto minimalista (apenas com os braceletes e um cinto) que ela usa nessa história.
Como dito, a Viúva Negra é atacada numa empolgante sequência de ação – mérito principalmente para a narrativa visual de George Perez. Quando ela surge pela primeira vez, em uma belíssima splash page com o uniforme, os cabelos vermelhos molhados, segurando uma arma com uma mão e um soldado com a outra – os leitores certamente perceberam que aquela série marcaria época.
A heroina enfrenta um grupo de vilões, cada um especializado em um tipo de arma. 


No segundo número, a espião se depara com um grupo de seis inimigos, cada um especializado em um tipo de combate – há desde um lutador de sumô a uma vaqueira que maneja uma laço. Além de uma sétima, supostamente a mais perigosa, serpente negra. Cada capítulo termina com uma splash page, com a heroína derrotada, criando um gancho de suspense para o capítulo seguinte.
As cenas de ação eram o ponto alto da série. 


Tirando os exageros e clichês, era uma ótima história, que prendia o leitor. Uma pena que a Marvel não tenha tido a ideia de criar uma revista para a personagem com essa equipe criativa.
Aqui no Brasil essa história foi publicada em Superaventuras Marvel 29, 30, 31 e 32.

Jornada nas estrelas – A caminho de Babel

 


DC Fontana é, sem sombra de dúvidas, uma das melhores roteiristas da série clássica de Jornada nas Estrelas. Prova disso é o episódio A caminho de Babel, da segunda temporada.

Na história, a Enterprise é designada para transportar embaixadores de diversos locais para uma convenção onde será discutida a entrada de um novo planeta na federação. O tema é polêmico e muitos embaixadores são contra, tornando o clima tenso.

O embaixador de Vulcano é Sarek, ninguém menos que o pai de Spock. Quando um embaixador com o qual ele havia discutido morre com um golpe Vulcano, ele se torna o principal suspeito. A situação se complica ainda mais quando Sarec cai doente e a única forma de salvá-lo parece ser uma cirurgia na qual ele terá que receber sangue – e Spock é o único doador possível. Mas quando o Capitão Kirk é ferido num atentado, Spock deve escolher entre assumir o comando na nave num momento crítico ou salvar o pai.

Para piorar, uma nave desconhecida está seguindo a Entreprise com objetivos desconhecidos.

O episódio se destaca não só pela trama muito bem elaborada, com várias coisas acontecendo ao mesmo tempo e várias ameaças se sobrepondo, mas também pelo bom desenvolvimento dos personagens, em especial Spock e Sarek, que oscilam de admiração mútua a conflito.

Roberto Carlos - O divã

 

Na década de 1970, antes de ser substituído pelo clone, Roberto Carlos, em parceria com o amigo Erasmo Carlos, produzia músicas com letras extremamente profundas e psicológicas, que merecem ficar figurar em qualquer lista das melhores da MPB. Entre elas uma música sobre o acidente que o fez perder uma perna, hoje um tema tabu para ele – tanto que essa música foi simplesmente eliminada dos shows.
A genialidade da música, gravada no álbum de 1972, começa pela abordagem: o cantor está deitado no divã, contando a história para o psicólogo. Começa falando de sua infância. O clima, embora nostálgico, é depressivo:
Relembro a casa com varanda
Muitas flores na janela
Minha mãe lá dentro dela
Me dizia num sorriso
Mas na lágrima um aviso
Pra que eu tivesse cuidado
Na partida pro futuro
Eu ainda era puro
Mas num beijo disse adeus.
Minha casa era modesta mas
eu estava seguro
Não tinha medo de nada
Não tinha medo de escuro
Não temia trovoada
Meus irmãos à minha volta
E meu pai sempre de volta
Trazia o suor no rosto
Nenhum dinheiro no bolso
Mas trazia esperança.
Roberto, ainda criança, perdeu a perna ao ser atropelado por um trem durante uma festa em sua cidade, Cachoeiro do Itapemirim. Sua narrativa do fato, embora curta, é pungente. Ele narra isso através de fragmentos de pequenas cenas: a festa, o apito do trem, o homem que o socorre, o terno de linho branco usado por ele, agora sujo de sangue, tudo isso misturado aos seus próprios pensamentos:
Relembro bem a festa, o apito
E na multidão um grito
O sangue no linho branco
A paz de quem carregava
Em seus braços quem chorava
E no céu ainda olhava
E encontrava esperança
De um dia tão distante
Pelo menos por instantes
encontrar a paz sonhada.
A narrativa volta para o consultório e fica patente a relação conflituosa entre o cantor e o psicólogo e até mesmo o conflito interno do autor, que, se por um lado, diz que o problema é superado, por outro, afirma que essas recordações o matam – sinal de que não, ele não superou o trauma:
Essas recordações me matam
Essas recordações me matam
Essas recordações me matam
Por isso eu venho aqui.
Eu venho aqui me deito e falo
Pra você que só escuta
Não entende a minha luta
Afinal, de que me queixo
São problemas superados
Mas o meu passado vive
Em tudo que eu faço agora
Ele está no meu presente
Mas eu apenas desabafo
Confusões da minha mente.
Difícil imaginar o Roberto Carlos de hoje, que tenta censurar biógrafos, se mostrando de forma tão aberta em uma música ou mesmo escrevendo sobre um momento tão dramático. A impressão que dá é que o Divã foi uma música que, inexplicavelmente, passou pela censura do próprio Roberto Carlos.  
Uma curiosidade é que essa se tornou uma das músicas mais obscuras do rei, sendo mais lembrada por ter servido de inspiração para o nome de um jogador de futebol. Sim, a mãe do Odivan era fã do Roberto, mas duvido que ela tenha entendido a letra.

Para ouvir a música, clique aqui

segunda-feira, dezembro 08, 2025

A jornada do escritor

 

Em 1949 Joseph Campbell publicou o livro O herói das mil faces no qual defendia que a maioria dos mitos mundiais são na verdade a mesma história recontada em variações ilimitadas. Anos depois Christopher Vogler sistematizou essa teoria em um dos mais importantes livros de roteiro de todos os tempos, A jornada do escritor.

Vogler argumenta que as histórias são verdadeiros mapas da psique, modelos precisos da mente humana, psicologicamente válidos e emocionalmente realistas mesmo quando retratam eventos fantásticos, impossíveis ou irreais.

Essas histórias, que normalmente tratam de transformação, apresentam a jornada de um herói com passos muito claros: o herói abandona seu ambiente confortável, aventurando-se em um mundo mágico, onde surge um conflito com forças antagônicas: “Em qualquer boa história, o herói cresce e se transforma, empreendendo uma jornada de um modo de ser para outro: do despero à esperança, da fraqueza à força, da tolice à sabedoria”, explica Vogler.

Esses passos da jornada foram sitematizados pelo escritor na seguinte sequência: o mundo comum, o chamado à aventura, a recusa do chamado, o encontro com o mentor, a travessia do primeiro limiar, as provas, aliados e inimigos, a aproximação da caverna secreta, a provação, a recompensa, o caminho de volta, a ressurreição e o retorno com o elixir.

O livro não só destrincha cada um desses passos, mas também analisa os personagens arquetípicos que aparecem nessas histórias, como o mentor, o pícaro, o guardião do limiar, o arauto, a sombra e o camaleão. Cada um desses é analisado não só com relação à sua função na história, mas também a sua função psicológica.

O mentor, por exemplo,  é um personagem que ensina, protege o herói e lhe concede presentes. A origem do termo vem da Grécia antia. Na Odisséia, de Homero, Mentor era o guia do jovem Telêmaco em sua jornada. O mentor também tem a função narrativa de ser a consciência do herói, guiando-o por um código moral. Psicologicamente, mentores representam o self: “Como o Grilo Falante na versão da Disney de Pinóquio, o self age como uma consciência para orientar na estrada da vida quando não há Fada Azul ou gentil Gepeto para nos proteger e dizer o que é bom ou ruim”.

O livro de Vogler, por ter inaugurado a abordagem mitológica na construção de roteiros, é obra de leitura obrigatória. É uma obra também muito criticada por ter dado origem a uma receita para histórias, especialmente depois do sucesso de Guerra nas Estrelas, uma crítica pertinente, embora essa receita tenha surgido de uma leitura superficial da obra. No geral, Vogler parece mais interessado em discutir possibilidades do que em fechar padrões a serem seguidos rigidamente.

Há alguns aspectos problemáticos, no entanto: o livro poderia ser facilmente sintetizado sem perda de conteúdo – algumas vezes a mesma ideia é repetida várias vezes. Além disso, o autor tem uma verdadeira fixação pelo Mágico de Oz, e cita o filme em praticamente todos os itens e subitens. O mesmo pode ser dito a respeito do filme Tudo por uma esmeralda. Mas ignora obras que também são nitidamente calcadas na jornada do herói, como o desenho animado Caverna do Dragão.

Ainda assim, vale a leitura. 

Leo

 


Há obras que não parecem nada promissoras e nos surpreendem. Um exemplo disso é Leo, animação lançada pela Netflix e dirigida por Robert Smigel, David Wachtenheim e Robert Marianetti.

A premissa parece receita para dar sono. O personagem principal é uma iguana que vive em um aquário, ao lado de uma tartaruga, em uma sala de uma escola infantil norte-americana. Leo passou dos 70 anos e acredita que irá morrer em breve, razão pela qual pretende realizar um antigo sonho: conhecer a vida natural, a floresta. A oportunidade surge quando uma nova professora implementa uma tarefa para as crianças: levar um dos animais para casa durante a semana e cuidar dele.

Na primeira visita, a criança descobre que Leo consegue falar, mas ao invés disso se tornar um desastre, torna-se uma oportunidade: ao conversar com o réptil a criança consegue compreender a si mesma e recebe conselhos que a ajudarão no seu cotidiano.

A fórmula se repete diversas vezes: Leo é acolhido por uma criança e a ajuda em algum dificuldade ajudando-a a superar dificuldades.

A grande capacidade de Leo é saber ouvir e compreender, algo que parece faltar para todas as crianças, o que se reflete em comportamentos pouco saudáveis, como do menino que é acompanhado o tempo todo por um drone que deve “cuidar de sua segurança”, mas que o impede de manter relações sociais.

Leo tem pouquíssimas cenas de ação (e as as poucas são realmente é ótimas), sendo calcado principalmente na envolvente relação do protagonista com as crianças.

É um filme emocionante sem ser piegas, sendo divertido na medida certa. Um filme com várias camadas, que vai agradar pais e filhos.

História medieval

 


A Idade Média é uma das épocas da história humana que geram maior interesse na maioria das pessoas. São incontáveis os filmes, quadrinhos, RPGs, filmes, seriados e desenhos animados que se passam nesse período. No entanto, apesar de todo o interesse, boa parte do que se sabe sobre o período na verdade são equívocos. Essa é a tese principal do livro História Medieval, de Marcelo Cândido da Silva.

O autor é doutor em história medieval pela Université Lumière Lyon 2 e professor titular da Universidade de São Paulo.

Marcelo afirma que nunca ouve um consenso sobre os marcos iniciais e finais da Idade Média. Alguns acreditam que esses eventos teriam sido marcados pela queda de Roma, em 476 e pela queda de Constantinopla, em 1453. Para outros, seria o edito de Milão, em 313 e a chegada dos espanhóis à América, em 1492.

Já a polêmica sobre as características do período são ainda maiores: “Até os anos 1980, muitos historiadores consideravam a Idade Média o resultado da decadência e da corrupção do legado antigo, da depressão econômica, sendo uma época marcada pela violência sem limites, por perseguições contra aqueles que ousavam desafiar o poder da Igreja, por guerras incessantes, pela penúria, pela fome e também pela peste. Um quadro desolador”. No entanto, descobertas arqueológicas e novas interpetações têm lançado uma nova luz sobre o período.

Marcelo começa o livro desmistificando a ideia de que os bárbaros tomaram Roma e provocaram o fim da idade antiga. Segundo ele, na grande maioria das vezes, os bárbaros foram assimilados à sociedade romana.

Aliás, a queda de Roma, com a deposição de Rômulo Augusto por Odoacro é um evento que teve pouca importância à época. A começar pelo fato de que o poder do imperador do ocidente se restringia apenas à Itália (o poder mesmo havia se transferido para Constantinopla). Além disso, Rômulo não era romano, pois provinha de uma família da Germânia. E Odoacro, embora tivesse origem bárbara, fez carreira no exército romano.

É errado também pensar que as cidades não se desenvolveram na Idade Média. Em alguns casos, houve inclusive interesse dos senhores em desenvolver as vilas em decorrência dos impostos que geravam. Além disso, as cidades permitiam o escoamento do excesso de produção agrícola: “Esses aglomerados urbanos possuíam uma relação de simbiose com o mundo rural que os cercava, e essa simbiose foi uma das condições que favoreceram seu desenvolvimento”. 

Aliás, as cidades produziram um dos mais importantes fenômenos medievais: as universidades. Tais instituições tinham de tamanho status que gozavam de autonomia jurídica em face de poderes civis e eclesiásticos. Surgidas na efervescência intelectual gerada pela redescoberta de Aristóteles, as universidades atendiam às necessidadades de reis, príncipes e papas que precisavam de pessoal qualificado para a administração, além de produzirem estudos que davam sustentação teórica às reinvidicações de supremacia dos poderes civis e eclesiásticos. Numa época em que reis e papas lutavam por poder, essa base teórica era essencial.

Mas, se por um lado o livro de Marcelo Cândido da Silva dá uma nova luz sobre o período, por outro também reforça muito do que se sabia, inclusive a dominação da igreja católica no período. Uma curiosidade: na época a Igreja católica proibiu a adoção de criança e o casamento de viúvas. A razão? Pela lei, quando alguém morria sem descendentes, todos os seus bens ficavam para a igreja. O enriquecimento da igreja foi tal que acredita-se que no final do século VII um terço de todas as terras aráveis da França pertencia à igreja.

Seja desfazendo alguns mitos ou reforçando muito que já se sabe sobre a Idade Média, o livro é uma boa introdução aos que se interessam pelo período. De negativo, a linguagem mais acadêmica e as longas citações de documentos da época, que podem afastar leitores menos acostumados com essas características.

O desafio das capas

   O desafio das capas é uma brincadeira entre fãs de quadrinhos no Facebook. Um desafia o outro a publicar as capas que mais o marcaram. Eu fui desafiado pelo amigo Dennis Oliveira. A ideia era publicar apenas imagens, mas imaginem se eu ia resistir a fazer alguns comentários. Abaixo as imagens e os textos que publiquei.

Essa eu nunca li, mas foi o primeiro gibi de heróis que vi, na vitrine de uma mercearia, único local que vendia quadrinhos na cidade onde eu morava, Mococa - SP. Lembro que ficamos todos olhando através da vitrine, impressionados com a capa, mas ninguém tinha dinheiro para comprar.
Desafio das capas que mais me marcaram. Essa foi a primeira revista que comprei em banca. Não é nem de longe a melhor dessa série, mas adoro essa capa e foi aí que começou a saga da Fênix, uma das melhores HQs de heróis todos os tempos.
O primeiro número de Sandman teve um impacto muito grande, não só pelo texto de Gaiman, mas também pela capa incrível de Dave McKean. Nunca tinha visto nada parecido.


Aventura e ficção era uma publicação em PB da Abril que publicava material inicialmente da Marvel, depois de outras editoras americanas e, na fase final, material europeu e nacional. Essa capa de Joe Jusko abriu a série com chave de ouro.
Eu não comprei a Epic Marvel em banca por causa do preço, que não cabia no meu orçamento da época, mas depois fui comprando todas em sebo. Difícil escolher qual das capas me marcou mais, então vai a da número 1.
Quando comecei a gostar de quadrinhos, eu não tinha dinheiro para comprar meus gibis. Então, vasculhava os sebos de Belém em busca de números antigos da revista Heróis da TV, que um amigo de escola colecionava. Eu comprava, lia, vendia para ele pelo dobro do preço e, assim, ia fazendo caixa para comprar os meus próprios gibis (eu colecionava Superaventuras Marvel). E na revista o personagem que mais me chamava atenção era o Mestre do Kung Fu.
Essa foi a primeira revista de quadrinho nacional que comprei. Eu lia Turma da Mônica quando criança, mas nunca tinha lido material mais adulto. Eu fiquei totalmente fascinado com a capa de Rodval Matias e com as histórias de Mozart Couto. Lembro que na época eu pensei: "caramba, os brasileiros são tão bons quanto os americanos!".

Depois do fim do mundo, de John Byrne

 


John Byrne é uma das figuras mais importantes dos quadrinhos de super-heróis norte-americanos a ponto de não conseguirmos imaginá-lo em outro gênero. Mas quem comprar Depois do fim do mundo, lançado em 2018 pela Mythos, verá que ele consegue se sair bem em um tipo completamente diferente de história: o pós-apocalíptico.
Na história, a humanidade é arrasada por uma monstruosa erupção solar, que destrói boa parte do planeta. A história é contada do ponto de vista de um grupo de astronautas, que consegue fugir do fenômeno e, voltando à terra, encontra o planeta devastado.
Byrne maneja bem o roteiro, criando situações interessantes, como uma cidade em que os únicos sobreviventes parecem ser ratos e baratas multiplicados aos milhões ou um penitenciária em que os detentos tomaram o poder.
Era de esperar que Byrne, acostumado ao gênero super-herói, exagerasse em algumas situações ou até mesmo destacasse a atuação de heróis salvadores, mas a história é bastante comedida nesse sentido.
Na série, Byrne revisita o seu primeiro trabalho. 


Outro aspecto interessante é a narrativa, com capítulos inciando após um salto temporal e flash backs explicando o que veio antes.
Uma curiosidade é que esse álbum, embora pareça um trabalho totalmente fora da curva do estilo de John Byrne, é, na verdade, uma volta do artista ao seu primeiro trabalho, Doomsday, publicado pela Charlton Comics em the 1976. A história original, entretanto, era bem menos realista, com o grupo de astronautas enfrentando robôs, sereias e aliens.
De negativo, a capa, com a estátua da liberdade encoberta por sombras, que diz muito pouco sobre a série.

Feliz Natal!!

 


Sheena – a rainha das selvas

 

Pouca gente sabe, mas Tarzan teve uma contraparte feminina de muito sucesso. Chamava-se Sheena e foi criada em 1937 por Will Eisner e Jerry Inger. Os roteiros eram de Eisner e os desenhos das primeiras histórias eram de um contratado do estúdio, Mort Meskin. Mas, para dar a impressão de que o estúdio Eisner&Inger era uma grande empresa, com muitos funcionários, os dois sócios inventaram um autor, W. Morgan Thomas, que assinava todas as hsitórias da rainha das selvas.
A personagem era baseada visualmente numa atriz popular na época, Cynthia Evans e se destacava pelas curvas e pelas pernas longilíneas, que os autores faziam questão de mostrar nas splash pages iniciais. 
Sheena adorava mostrar suas pernas. 


Sheena foi inicialmente comprada por uma agência, a Editors Press Service, que repassou para uma revista britânica, a Wags, que a publicou em 1937. A rainha das selvas só estreou nos EUA em 1938, no primeiro número de Jumbo Comics, da fiction house (uma editora de pulps). Fez tanto sucesso que a editora passou a se dedicar aos quadrinhos. 
A Jumbo comics foi publicada até o início da década de 1950, quando a perseguição aos quadrinhos mirou nas pernas da heroína principal da revista.
No Brasil, a personagem foi publicada primeiro no Suplemento Juvenil. A última publicação foi um álbum da personagem da Ebal de 1984. 
Sheena dava bons conselhos para os africanos. 


O álbum é um belo exemplo da era de ouro dos quadrinhos em histórias: por um lado eram muito ingênuas e por outro flertavam com o erotismo. Todas as histórias trazem Bob, o companheiro de Sheena, um verdadeiro zero à esquerda que, quando não estava fazendo nada, estava sendo salvo pela heroína. 
Em O templo da morte, por exemplo, a heroína salva um velho maluco chamado mascate (nitidamente desenhado por Eisner) de vilões que querem ficar com um tesouro que ele conhece. 
Nessa história temos sheena ensinando os aborígenes caçar ou se defender. Suas frases são verdadeiras pérolas de sabedoria pragmática: “Quando o rinoceronte ferido ataca, temos de acertar!”; “O escudo é necessário contra o machado e a clava!”; “Quando o leão aparecer, larguem os tambores e joguem as lanças!”.
Ainda bem que os africanos tinham alguém para lhes dar conselhos tão úteis. Em quase todas as histórias do álbum há algum feiticeiro querendo sacrificar alguém, e não o consegue graças à intervenção da heroína. 
Bob vivia sendo salvo pela heroina. 


Em uma das histórias aparece uma garota igualmente bonita, filha de um feiticeiro, claro, para antagonizar com Sheena. Quando não estava ensinando dicas de sobrevivência para os africanos, salvando alguém de um sacrifício ou enfrentando mulheres bonitas, Sheena estava se balançado pelo alto das árvores exibindo suas belas pernas.