terça-feira, setembro 05, 2006
Fahrenheit 451
Em Fahrenheit 451, Ray Bradbury fala de uma sociedade autoritária que se formou naturalmente a partir da idéia de pensamento único. Toda e qualquer comunicação que fugisse de uma média inofensiva era motivo de processo. Pessoas de uma determinada religião ou de de determinada ideologia processavam mensagem que consideravam ofensivas a seus pontos de vista. Isso uniformizou a mídia e a levou a adotar um padrão adocicado e inofensivo. Como diz Bradbury, a civilização se resumiu a mulheres de palha, assistindo a intermináveis programas de TV totalmente desprovidos de conteúdo ou polêmica.
Os livros foram proibidos, pois toda literatura real é instigante e faz pensar. A literatura, como a arte de forma geral, não pretende conformar, mas incomodar.
Recentes casos judiciais no Brasil me fazem temer que estejamos nesse caminho. Lembro dos parentes de Garrincha, que conseguiram proibir o livro Estrela Solitária, de Ruy Castro por causa de um comentário do autor sobre o dote sexual do jogador. O livro ficou quase um ano fora das livrarias por causa dessa disputa jurídica.
Até mesmo blogs, que pareciam ser um meio relativamente livre já não são tão livres. Fatos recentes deixaram claro que blogs não podem tratar de política, por exemplo... e políticos envolvidos com escândalos têm tentado tirar do ar sites que mostrem sua atuação parlamentar e processos movidos contra eles.
Tais fatos deixam a abertura para uma uniformização de pensamento perigosa. Militares poderiam processar livros de história que falam de tortura ou repressão no período da ditadura militar, aliás, militares poderiam processar livros que sequer mencionassem o termo ditadura militar, já que a nomeclatura que eles consideram correta é revolução.
Meus textos sobre psicopatas poderiam ser alvo de ações judiciais de psicopatas, que se sentiriam ofendidos.
Até mesmo a literatura ficcional pode ser alvo. Recentemente estava relendo o romance de um político importante do Amapá, cujos personagens são prostitutas e garimpeiros, e vi nele uma trama que poderia ofender inimigos da liberdadede expressão. Mal sabem eles, os inimigos da liberdade de expressão, que a grandeza da literatura está justamente em aprofundar a experiência humana nas suas diversas facetas. Mas uma literatura assim, verdadeira, não poderia existir numa sociedade de pensamento único.
Como em Fahrenheit 451, um site religioso poderia ser processado por pessoas que professam outra religião.
Até mesmo um blog de um torcedor de um time pode, pela lógica Fahrenheith 451, ser objeto de um processo por parte de torcedores do time rival.
Um cineasta poderia processar um resenhista que fizesse uma crítica negativa de seu filme, alegando que tal crítica lhe provoca prejuízos.
Recentemente uma novela da rede Globo apresentou um casal homossexual, o que provocou uma grita geral por parte de pastores. Muitos falaram em processar a Globo. Para essa poderosa empresa, pouco importa, pois ela conta com ótimos advogados, que certamente fariam ver ao judiciário que a televisão tem por obrigação mostrar variados pontos de vista, que vão da religião à opção sexual, passando pelas diversas opiniões políticas. Mas e se tais defensores da moral resolvessem processar um jovem homossexual que criou um blog para nelee colocar suas inquietações? Teria ele condições de resistir a um processo? Teria dinheiro para pagar uma advogado para defendê-lo?
A se alastrar o processo, tanto a mídia de massa quanto meios mais pessoais, como os blogs, as cartas e as mensagens no Orkut e a arte em geral serão dominados por uma uniformização generalizante, um cuidado excessivo de não ofender nada ou a ninguém.
Não me refiro aqui a atitudes que configuram crime, como o incentivo à pedofilia ou ao consumo de drogas, certamente condenáveis, mas a casos, como o da comunidade "Eu odeio fanáticos religiosos", que provocou protestos de fanáticos religiosos, que só não tiraram a comunidade do ar porque ela está hospedada em outro país, mas que levaram um hacker (que se auto-intitula Anjo do Orkut) a deletar a comunidade.
Claro que a justiça tem de agir e estar atenta para evitar calúnias e difamações, mas também deve cuidar para que a liberdade de expressão seja preservada, pois, de determinado ponto de vista, qualquer coisa ofende e qualquer coisa pode ser censurável, do livro que tem como personagem prostitutas e garimpeiros ao blog do jovem homossexual, que publica nele suas inquietações existenciais. Sem liberdade de expressão, caminharemos em passo firme para uma sociedade de mulheres e homens de palha, sem conteúdo ou opiniões.
Em tempo: Fahrenheit 451 é a temperatura em que se queimavam os livros nas fogueiras do nazismo e do machartismo, dois períodos negros da história, em que foi eliminda a liberdade de expressão.
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