sábado, abril 12, 2008

O nome do pato


Lição de globalização com os personagens de Walt Disney

Por Max Gehringer

Eu queria ter contado esta história há tempos, e só não o fiz antes porque me faltavam alguns dados históricos -- que consegui agora graças a uma mãozinha de meu prezado tio Fábio, um colecionador de preciosidades.
O assunto é sério -- aquela eterna disputa, tão comum em multinacionais, entre os brasileiros com mania de mudar tudo e os globalizadores em geral (ou seja, qualquer executivo instalado acima da linha do Equador), que acreditam que um entendimento é sempre possível, desde que seja em inglês.
Onde está a verdade? Naquela mistura de bom senso e criatividade, duas coisas que vivem se atropelando quando o assunto é "o Brasil contra o mundo ou vice-versa". Eu vivi uma situação dessas há dez anos, quando estávamos implantando um novo processo no Brasil e trombei de frente com um Boeing lotado de americanos e mexicanos.
Eles se bandearam para cá só para ter a certeza de que nenhuma alteração seria feita, por mínima que fosse, e eu estava convencido de que, sem o jeitinho tupiniquim, nada daquilo iria funcionar.
Após muitas e muitas horas de árduas e infrutíferas discussões, finalmente consegui encontrar um exemplo que eles entenderam: Walt Disney.
A história que eu contei para eles foi a seguinte: em 1950, quando os personagens de Disney chegaram ao Brasil, havia uma importante decisão a tomar -- como eles se chamariam por aqui? Quase ninguém sabia falar inglês direito no país naquela época, especialmente as crianças, que eram o público-alvo das publicações.
Num tempo em que nomes de artistas como John Wayne e Jerry Lewis eram pronunciados jon vâine e jérri lévis, seria prudente manter os nomes originais de personagens como Gyro Gearloose e Scrooge McDuck?
Outros países haviam tido essa mesma dificuldade antes do Brasil, e nem sempre as soluções haviam agradado às duas partes. Por isso, era preciso tomar cuidado para evitar o que ocorrera com personagens de outras editoras -- como na Argentina, onde pruridos idiomáticos haviam feito com que o marinheiro Popeye fosse rebatizado de "Spaghetti" e Batman se tornasse "El Murciélago".
Podiam até ser nomes sugestivos, mas, como ponderavam os executivos da matriz -- e muitos continuam ponderando com todo furor -- não adianta nada ganhar em apelo regional se, com isso, perde-se em algo muito mais importante: a força mundial de uma marca.
O primeiro time de tradutores e redatores da então recém-criada Editora Abril adotou o que hoje seria chamado de "estratégia global regionalizada".
O passo inicial dos brasileiros foi garantir a benevolência da turma da Disney, e isso foi conseguido com a promessa de manter o nome original dos dois principais personagens. Assim, Mickey ficaria sendo Mickey e Donald ficaria sendo Donald (parece óbvio, mas, na Itália, Mickey já era Topolino e Donald era Paperino -- e na Suécia Mickey havia virado Musse Pigg!).
E aí veio a aplicação prática das três regrinhas elementares da boa globalização:
1. Não mudar o que não precisa ser mudado - Pluto seria Pluto, porque já era um nome bom, pronunciável e sonoro.
2. Mudar o que obviamente precisa ser mudado - Gyro Gearloose se tornaria o Professor Pardal. Uncle Scrooge McDuck viraria Tio Patinhas e The Beagle Boys seriam os Irmãos Metralha. Mais do que caracterizar personagens, nos anos seguintes esses três nomes se tornariam sinônimos populares de gente que inventa o que não é preciso (Professor Pardal), de pão-duro (Tio Patinhas) e de gangues das mais variadas espécies (Irmãos Metralha).
Nacionalizar nomes é algo bem mais complexo do que aparenta ser. Gladstone Gander, o nosso "Gastão", é Narciso Bello na Espanha, Panfilo Ganso no México e Gontrand Bonheur na França. Ou seja, "Gastão", mais que uma tradução ou uma adaptação, é uma aula de simplicidade. O mesmo ocorre com o Tio Patinhas, que na França se chama Oncle Balthazar Picsou, na Alemanha, Onkel Dagobert Duck, na Suécia, Farbror Joakim von Anka, e na Itália, Zio Paperon De Paperoni.
3. Mudar parcialmente o que pode ser sutilmente melhorado. - Aí começam as sutilezas. Mickey Mouse não precisaria do "Mouse" no Brasil, onde "rato" é meio pejorativo e "camundongo" é muito longo, e por isso ficou só Mickey. Mas Donald Duck ficava melhor com o "Pato" antes do nome. E sua eterna namorada, Daisy Duck -- Pata Margarida, em tradução literal --, soava melhor sem a "pata" e ficou só Margarida. Nada mais que a aplicação do bom senso.
Nas empresas, não é raro que os pioneiros que contribuíram com grandes idéias no passado sejam esquecidos depois de algum tempo. Felizmente, a história do desembarque bem-sucedido dos personagens da Disney no Brasil ficou documentada.
Jerônimo Monteiro, o primeiro tradutor e redator da Editora Abril, batizou o Tio Patinhas e os sobrinhos de Donald, Huguinho, Zezinho e Luisinho -- no original eles eram Huey, Dewey e Louie (e a filha pré-adolescente de Jerônimo Monteiro, Terezinha, foi quem sugeriu o nome "Irmãos Metralha").
Depois de Jerônimo, viriam Alberto Maduar, criador dos nomes do Professor Pardal, do Lampadinha, do Gastão e da Maga Patalógika (que era Maga De Spell em inglês), e Álvaro de Moya -- desde sempre, a pessoa que mais entende de história em quadrinhos no Brasil.
A tradição de acertar nomes de personagens teve seu último grande momento na década de 70, quando chegou ao Brasil o primeiro livro de Calvin & Hobbes, e o nome do tigre foi abrasileirado para "Haroldo". É só olhar para ver que ele tem mesmo cara de Haroldo, e não de Hobbes.
Mas os personagens mais recentes -- Beavis & Butthead, os Simpsons, a turma sádica de South Park e Dilbert -- mantiveram os nomes originais. Seria interessante saber como aquela gente talentosa, de achados antológicos como "Recruta Zero" e "Brucutu", encontraria uma definição bem brasileira -- e bem marota -- para "Butthead"... coisa que jamais saberemos porque, ultimamente, a globalização virou rua de mão única. E isso só leplime a cliatividade, como ponderaria Hortelino Trocaletra. Digo, Elmer Fudd.

Max Gehringer (max.g@uol.com.br) é autor do livro Máximas e Mínimas da Comédia Corporativa.

Fonte: Revista Exame
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