Nos protestos contra Dilma e PT se tornam cada vez mais constantes cartazes pedindo intervenção militar. Nas redes sociais, cada vez mais pessoas aderem à ideia, com páginas que contam com milhares de curtidas e são amplamente divulgadas. No Youtube, dezenas de vídeos, com milhares de visualizações cada, clamam ajuda aos militares. Alguns até explicam o que seria a tal intervenção militar constitucional, "amparada" nos artigos 142 e 144 da Constituição. Segundo esses, se houver anseio popular, as forças armadas podem depor o presidente e todos os demais ocupantes de cargos políticos e prendê-los, convocando uma nova eleição. A constituição preveria até um prazo para os militares devolverem o poder ao povo: 60 dias. Nem um dia a mais, nem um dia a menos. A proposta é tão interessante, um verdadeiro paraíso político em que todos os corruptos iriam para a cadeia e os militares devolveriam docilmente o poder ao povo, agora nas mãos de pessoas honestas, que num dos vídeos duas mulheres prometem acampar na frente de um quartel general até que os militares ouçam seus anseios. Mas, afinal, existe realmente intervenção militar constitucional?
Pra começar, algo só é constitucional se está na Constituição. Os defensores da intervenção costumam citar os artigos 142 e 144 para defender, inclusive o prazo de devolução do poder aos civis. Ocorre que brasileiro não lê. E, mais ainda, não lê leis. Se alguém disser que a constituição manda o Papai Noel dar presente para todos no dia do Natal, muita gente vai colocar a meia colorida debaixo da janela.
Então, vamos conferir o que dizem os tais artigos:
"Art. 142. As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem".
Olhem só: as forças armadas são instituições baseadas na hierarquia e disciplina e cujo chefe maior é o presidente da república e sua função é a garantia dos poderes constitucionais, que são o executivo, o legislativo e o judiciário. Ou seja, o artigo 142 diz que quem manda nas forças armadas é o Presidente e que a função das mesmas é exatamente defender o Executivo, o congresso e o judiciário. Em nenhum momento o texto diz que essas mesmas forças podem se voltar contra os poderes que juraram defender.
Já o artigo 144 diz:
"A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, através dos seguintes órgãos: I - polícia federal; II - polícia rodoviária federal; III - polícia ferroviária federal; IV - polícias civis; V - polícias militares e corpos de bombeiros militares".
O mesmo artigo, no inciso 5 explica:
"Às polícias militares cabem a polícia ostensiva e a preservação da ordem pública; aos corpos de bombeiros militares, além das atribuições definidas em lei, incumbe a execução de atividades de defesa civil".
Surpreso? Nada sobre intervenção militar. E, principalmente, nada sobre data para devolver o poder os civis.
Entendam: uma intervenção militar é uma quebra de hierarquia, já que o Presidente é o chefe das forças armadas. Seria o mesmo que o capitão depor o general.
Mas vamos imaginar que isso acontecesse: que o povo em peso pedisse por uma intervenção militar e as forças armadas resolvessem atender, o que garante que eles devolveriam o poder em 60 dias? Não existe nenhum botão que faça os militares desaparecerem caso não convoquem eleições em em 60 dias. Nem mesmo a cara de Gatinho de Botas dos que pediram a tal intervenção militar vai servir para convencê-los a convocar eleições se eles decidirem ficar.
Em 1964, os militares tomaram o poder amparados por passeatas, como a Marcha da família (que pediam a intervenção miltar) prometendo convocar eleições diretas o mais breve possível (não sei se eram exatamente 60 dias, mas devia ser algo próximo disso). Um dos maiores entusiastas do golpe foi o jornalista Carlos Lacerda, que sonhava um dia tornar-se presidente e via no golpe a chance de conseguir aquilo que ele não conseguira nas urnas. Lacerda chegou a fazer um tour pela Europa, defendendo os militares. No entanto, quando ficou claro que os milicos não devolveriam os poderes aos civis, ele passou a criticar o regime. Resultado: foi duramente perseguido, teve seus direitos cassados e morreu em circunstâncias misteriosas (alguns acreditam que ele tenha sido envenenado).
Os defensores da intervenção militar citam o caso do Egito como suposto exemplo de militares bonzinhos que retiram o governo corrupto do poder e entregaram-no nas mãos do povo após 60 dias. Na verdade, o que aconteceu, foi que o povo egípcio ao perceber que as eleições não seriam convocadas, foi para a rua exigir a eleições. Os militares reprimiram duramente as manifestações. Dezenas de pessoas foram mortas. Mulheres e idosos foram duramente agredidos, houve censura, inclusive com quebra de câmeras de TV dos jornalistas que cobriam os protestos. Os militares só devolveram o poder quando quiseram.
Outro exemplo dado pelos defensores da "intervenção militar constitucional" é a Tailândia. A intervenção era tão "constitucional" que uma das primeiras coisas que a junta militar fez foi suspender a Constituição, impor toque de recolher, censurar a imprensa, as mídias sociais e prender jornalistas. Recentemente, a junta militar divulgou que condenará à morte jornalistas que não digam a "verdade" sobre a junta militar.
Portanto, não existe intervenção militar constitucional. O que existe é golpe militar. E, no golpe militar, as forças armadas convocam eleições se quiserem. Aliás, num golpe, os militares ficam desobrigados de obedecer a constituição, até porque não há ninguém que os fiscalize. Nem mesmo a imprensa, que acaba sendo censurada e não pode dar notícias contra o regime. Portanto, intervenção militar e constituição são expressões que não cabem na mesma frase.
Texto originalmente publicado no Digestivo Cultural
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