quarta-feira, outubro 26, 2016

O fake e a arte

"A arte é uma mentira que revela a verdade" (Picasso)

Vivemos em um mundo de simulacros hiper-reais em que se torna cada vez mais difícil distinguir o que é real e o que não é. Pessoas compartilham notícias falsas sem verificar a veracidade de modo que o falso muitas vezes se sobrepõe ao real. 
Num mundo assim, em que muitas vezes boatos são tido como mais reais do que a realidade, em que pessoas podem ser linchadas e mortas por causa de um boato, a arte tem papel fundamental de nos fazer refletir sobre a realidade. O tema é tão relevante que na Alemanha existe até mesmo um Museu de arte fake
Farei aqui uma pequena lista de obras que trataram do tema (vale ressaltar que uso o termo arte aqui no seu sentido mais amplo, incluindo quadrinhos, literatura etc). 
Todos esses trabalhos são exemplos de ficção hiper-real (aqui definida como uma ficção tão verossímil que é tida como real). 



A balela do balão
O mais antigo caso de fake na arte. Edgar Allan Poe foi inovador em tudo, inclusive nisso.  Em 13 de abril de 1844, Poe publicou no jornal New York Sun uma matéria fake sobre um aventureiro que estaria cruzando o Atlântico em um balão. O texto era uma ficção, mas provocou alvorço, tanto que os jornais se esgotaram e houve uma corrida à sede do jornal por parte da população, louca por novidades a respeito do assunto. 




Guerra dos mundos

Em 30 de outubro de 1938, Orson Welles realizou uma adaptação radiofônica do romance A Guerra dos Mundos, de HG Wells. Como forma de verossimilhança, Welles organizou o roteiro na forma de noticiário jornalístico. Ocorre que, embora o programa fosse um teatro radiofônico, muitas pessoas acreditaram que a notícia fosse real, o que provocou pânico generalizado. O episódio foi fundamental para levantar o debate sobre a influência dos nascentes meios de comunicação de massa. Detalhe: tanto Welles quanto H.G. Wells foram processado e ambos foram absolvidos. 




Necronomicon 
No início do século XX, Lovecraft criou uma ficção tão real (ou hiper-real) que muitos passaram a acreditar que ele na verdade estava falando sobre fatos reais. O livro fake Necronomicon foi tido como real e surgiram até mesmo seitas de magia baseadas no mesmo. 



F for fake 
Já na década de 1970, Welles dirigiu um filme sobre um falsificador de arte, que conseguia imitar tão bem o estilo de artistas como Picasso que alguns de seus quadros falsos constavam em museus. O filme discute a questão da realidade-ficção na arte e levanta uma questão: se os quadros do falsificador eram tão bons, por que não eram arte? O que legitima a arte? A assinatura de um grande pintor? O filme traz um bônus: usando de maneira genial a edição, Welles cria uma ficção hiper-real segundo a qual a esposa do diretor teria inspirado os quadros mais famosos de Picasso. 




O nome da Rosa 
Quando lançou seu famoso romance, Umberto Eco acrescentou um prefácio no qual dizia que o livro havia sido escrito por um monge franciscano e apenas traduzido por ele. Posteriormente Eco escreveu um livro sobre O nome da rosa, no qual revelou a verdade, mas o prefácio continua no livro até hoje. 




Operação cavalo de tróia 
JJ Benitez, ao publicar o primeiro livro de sua série de FC sobre a vida de Jesus, incluiu um prefácio no qual afirma que o livro na verdade eram os diários de um major que teria participado de um projeto ultra-secreto de viagem no tempo. Esse texto é tão verossimilhante que muitos acreditaram ser real. 




O artista inventado 
Em agosto de 2005, o artista cearence Yuri Firmeza foi convidado a participar do projeto “Artista Invasor” no Museu de Arte Contemporânea do Dragão do Mar. Ao ser informado de que a imprensa de Fortaleza dificilmente dava destaque para obras de brasileiros, ele elaborou uma obra que discute o papel legitimador da imprensa no mercado de arte. Para isso ele criou um artista fake, Souzousareta Geijutsuka, que seria um dos maiores nomes da arte tecnologia no Japão. A imprensa cearense deu grande visibilidade para a exposição do artista japonês. Depois, descoberta a verdade, passaram a criticar Firmeza. Quando grandes jornais do sudeste, Como o Estadão, deram destaque para o caso, destacando a originalidade e impacto do trabalho, a imprensa cearense mudou o discurso: de repente Firmeza não era mais um moleque, era um gênio da arte. Ou seja: os fatos confirmaram aquilo que o artista discutia em sua obra: a legitimação da arte a partir da imprensa. 



Delegado Tobias 
Em 2015,  do escritor Ricardo Lísias publicou o ebook Delegado Tobias,. No livro, em que o personagem título investiga a morte de Ricardo Lísias (o próprio autor do e-book) e a narrativa usa nomes de pessoas reais, recortes de jornais e documentos jurídicos fictícios. Alguém, ou ingênuo, ou mal-intencionado, denunciou-o à justiça por falsificação de documentos jurídicos e instalou-se um processo para investigar o caso. Justiça federal, Ministério Público Federal e Polícia Federal foram mobilizados para investigar o caso, com enorme gasto de dinheiro público. Quando ficou claro do que se tratava, cada órgão jogou a culpa no outro e todos declararam que não investigavam ficção. A própria justiça teve que declarar oficialmente aquilo que todo mundo deveria saber: falsificação é falsificação e ficção é ficção (por mais verossimilhante que seja). Ou seja: se o autor do livro tivesse entrado num fórum e modificado um documento jurídico, ele estaria produzindo uma falsificação. Mas criar um documento jurídico ficcional e colocá-lo numa obra de ficção, é apenas... ficção. Diga-se de passagem, a pessoa que fez a denúncia provavelmente está respondendo por falsa comunicação de crime.O caso levou o escritor a publicar outro livro, descrevendo o caso kafkiano e discutindo a questão da realidade-ficção. 



A pet humana 
Em 2014, eu e o artista goiano José Loures criamos a obra A pet humana para discutir a transmissão e compartilhamento de notícias falsas na internet. Criamos o caso de uma garota de Santa Catarina que seria a primeira paciente de uma clínica chinesa especializada em transformar seres humanos em pets-humanas. A notícia chegou a ser divulgada em um grande canal e muitas pessoas compartilharam sem se preocupar em verificar a veracidade da história, inclusive alguns amigos, que ficaram chocados quando revelamos que a história era falsa. No caso, o boato não prejudicou ninguém, mas muitos boatos que são compartilhados aos montes na internet podem provocar grandes prejuízos, inclusive mortes de pessoas. Nossa intenção era justamente questionar as pessoas a respeito disso. 


Alan Moore é o artista que mais tem utilizado esse recurso de misturar realidade e ficção. No prefácio de Promethea ele diz que a personagem não é original, mas uma releitura de uma personagem mais antiga, que surgira em um poema do século 18 e chegara a protagonizar até mesmo um pulp na década de 1930. 


Na minissérie 1963, Alan Moore simulou perfeitamente uma revista publicada na década de 1960, inclusive a sessão de cartas. A ideia era criar uma sensação de hiper-realidade, de que o leitor estava de fato lendo um quadrinho da época. 


A estratégia de verossimilhança usada por Alan Moore mistura realidade e ficção. Cada quadrinho apresenta um anexo, como fac-símiles de páginas de um livro, matérias de jornais e até o prontuário médico do personagem Rorschach. Nunca é demais explicar: não se trata de uma fraude. Esses anexos, por mais verossimilhantes que sejam, são apenas ficção. Seria uma fraude se Alan Moore tivesse, por exemplo, ido em uma clínica médica e modificado o prontuário de um paciente real. Mas criar o prontuário médico de um personagem fictício é apenas... ficção. 




Capitão Gralha 
Em 1997 os criadores do personagem O Gralha (entre eles eu) criaram uma estratégia de verosimilhança para o herói. Em um texto de abertura dizia-se que ele era uma releitura do Capitão Gralha, pioneiro herói curitibano da década de 1940, criado por Francisco Iwerten depois de uma viagem aos EUA e visita ao estúdio de Bob kane, criador do Batman. Mas, para surpresa dos criadores, a ficção foi tida como real. Com o surgimento da internet a história se espalhou como boato. O que era uma simples visita ao estúdio de Bob Kane logo virou um estágio, o que era um estágio, virou emprego, e logo Iwerten virou o criador do Batman. Embora os criadores dissessem que a história era uma ficção, a ampliação do boato e o fato de que uma escola de samba pretendia homenagear Iwerten fez com que os criadores resolvessem fazer um anúncio oficial, em 2014, na Gibicon. Ainda assim, há quem continue acreditando na ficção. Existe até um blog que afirma que Iwerten realmente existiu que os criadores estão mentindo. 




  

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