No ano de
2003, o jornalista baiano Gonçalo Júnior chamou atenção com um livro essencial
para qualquer que queira entender o mercado editorial brasileiro. Guerra dos
Gibis mostrava como alguns dos principais impérios editoriais haviam sido
erguidos a partir das vendas astronômicas dos gibis, em especial nos anos 1940
e 1950. Focado na vida de Adolfo Aizen, o livro contava também a perseguição
aos gibis, feita por padres, professores e políticos. Mas, como a narrativa
terminava na década de 1960, faltava uma segunda parte. É exatamente a segunda
parte dessa epopéia que a editora Peixe Grande está lançando agora, com o livro
Maria Erótica e o clamor do Sexo (Peixe Grande, 2010, 494 p.).
Se o
primeiro livro tinha como personagem principal o editor Adolfo Aizen (dono da
Ebal), este segundo é focado em dois outros personagens: Minami Keizi e Cláudio
Seto. Ambos viveram a fase mais difícil dos quadrinhos nacionais, quando a
perseguição aos gibis nacionais era institucionalizada e fazia parte do
programa da ditadura militar. E ambos revolucionaram a linguagem dos quadrinhos
ao introduzir os mangás em nosso país.
Minami
chegou em São Paulo com pouquíssimo dinheiro no bolso, foi rejeitado pela
maioria dos editores da época (que estranharam seu traço com fortíssima
influência oriental), mas acabou criando uma das melhores editoras de quadrinhos
da década de 1970, a Edrel.
Vindo da
mesma cidade que Minami, Lins, no interior paulista, Cláudio Seto foi um dos
principais e mais revolucionários artistas da Edrel e, posteriormente, comandou
o setor de quadrinhos da Grafipar, a maior trincheira dos quadrinhos nacionais
no final da década de 1970 e início da década de 1980.
O livro
acompanha ora um, ora outro, oscilando entre as histórias desse personagens tão
interessantes quanto as histórias que criaram.
A forma
como Minami consegue sair da miséria para se tornar dono de uma editora é digna
de nota. Após ter seu trabalho rejeitado, ele investiu seu pouco dinheiro num
sistema de venda de livros por reembolso postal (os anúncios do serviço eram
conseguidos em publicações em troca de tiras de quadrinhos produzidas por ele) que
deu tão certo a ponto de Sebastião Bentivegna, dono da editora Pan-Juvenil
convidá-lo a ser supervisor editorial. Com o tempo, afundado em dívidas com
agiotas, Sebastião chamou Minami e o dono da gráfica que fazia fotolitos para a
editora e ofereceu a Pan-Juvenil, de graça, desde que eles assumissem as
dívidas.
Minami
investiu em quadrinhos ousados tanto pelo erotismo quanto pelas inovações
estéticas, que aproximavam os gibis dos mangás e teve tanto sucesso que a
editora, agora chamada Edrel, não só conseguiu quitar seus débitos, como ainda
cresceu e chegou a ameaçar as grandes.
Foi nesse
momento que começou a calvário de Minami com a ditadura. Felizmente, o editor
guardou todo o histórico de correspondências com a censura, o que permitiu a
Gonçalo Júnior fazer um raio x da repressão ditatorial, nos brindando com
alguns dos momentos mais interessantes do livro.
O
argumento da ditadura é que, por trás da liberdade sexual, que se mostrava
através das publicações da Edrel, escondia-se o comunismo internacional, que
pretendia desestabilizar a família brasileira. Curiosamente, o mesmo fenômeno
era também combatido na União Soviética como um vício capitalista.
Gonçalo
amplia a investigação sobre a censura na época, abarcando de revistas como
Garotas de Piadas da Edrell aos gibis do Pato Donald e Luluzinha, além de
revistas de reportagens, como a Realidade.
Mas a
perseguição ao Pato Donald nem se comparava à repressão ao erotismo. Sem querer
perder o negócio, Minami procurava se informar como continuar publicando sem
ter suas revistas apreendidas. Logo descobriu que não havia parâmetros. Tudo
dependia muito da cabeça do censor.
O risco
maior não era só a apreensão de revistas: as sedes das editoras poderiam ser invadidas a
qualquer momentos e seus funcionários presos.
O esquema
da censura era cruel especialmente para os pequenos editores, com poucas
ligações com o poder. Na fase mais cruel da ditadura, as bonecas das revistas
tinham de enviadas para Brasília, onde muitas vezes demoravam meses para serem
analisadas. Se houvesse algum corte ou pedido de mudança, uma nova boneca
deveria ser feita e enviada para Brasília para uma análise igualmente demorada.
Se a
revista focasse em assuntos do momento, esse esquema era morte certa. No final,
a repressão levou ao fechamento tanto da Edrel quanto da editora seguinte de
Minami, a M&C.
Para
fugir da repressão, Cláudio Seto, escondeu-se no único lugar onde não se esperava
encontrar um subversivo: no partido do regime a Arena, pela qual foi eleito
vereador em Lins.
Quando se
casou, resolveu pegar a estrada e fazer uma viagem pelo sul do país. Ao chegar
em Curitiba, encontrou a cidade envolta pela neve e, encantado, resolveu morar
lá.
Sua ida
para Curitiba parece ter sido arquitetada pelo destino, pois, na mesma época um
editor local pretendia entrar no mercado erótico, aproveitando a abertura da
censura e o interesse da população pelo tema. Era o início da Grafipar. Deu tão
certo que virou uma verdadeira trincheira do quadrinho nacional, a ponto de
alguns dos mais importantes artistas da época se mudaram para a capital do
Paraná.
Erros editoriais,
perseguição política e a crise econômica selaram o fim da editora, o que não a
impediu de deixar uma marca poderosa nos quadrinhos brasileiros.
O livro
se torna ainda mais importante pelo fato de tanto Minami quanto Seto terem
morrido recentemente, quase no esquecimento, em especial Minami. Numa época em
que os mangás dominam as bancas, poucos se lembram desses grandes artistas e
editores que introduziram a linguagem oriental nos quadrinhos nacionais. Nas
palavras de Toninho Mendes, que escreve a orelha da publicação: “Gonçalo Júnior
faz ressurgir do limbo um segmento da imprensa nacional quase desconhecido: o
dos pequenos editores de revistas e livros de sexo que desafiaram a polícia e
os censores com forma criativas de enganar a repressão e fazer o brasileiro
participar mais ativamente – em vários sentidos – da revolução sexual, que a
ditadura tanto se empenhou por não deixar entrar no país”.
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