quinta-feira, dezembro 12, 2019

Um conto de duas cidades


Comprei o livro Um conto de duas cidades, de Charles Dickens em maio de 1999. Era uma edição de banca, da Nova Cultural. Tirando a capa mole, era uma publicação interessante, com biografia do autor e muitas notas sobre o texto. Por alguma razão eu comecei a ler e abandonei antes de terminar o primeiro capítulo. Isso é comum para quem é professor: você começa um romance e logo uma outra leitura, mais urgente, geralmente um texto técnico, o obriga a abandonar a ficção.

O livro ficou lá, escondido na estante, por mais de 10 anos, até que mudei de casa e comecei a arrumar a nova estante. Colocar livros numa estante pode parecer uma atitude simples para quem não gosta de leitura. Para um leitor assíduo, é algo demorado. É difícil resistir à tentação de dar uma folheada e ler um parágrafo ou outro.

Foi assim que comecei a ler Um conto de duas cidades. Considerando-se o início, é difícil imaginar porque eu o abandonei da outra vez. O livro tem uma das melhores aberturas da história da literatura:

"Aquele foi o melhor dos tempos, foi o pior dos tempos; aquela foi a idade da sabedoria, foi a idade da insensatez, foi a época da crença, foi a época da descrença, foi a estação da luz, a estação das trevas, a primavera da esperança, o inverno do desespero; tínhamos tudo diante de nós, tínhamos nada diante de nós, íamos todos direto para o paraíso, íamos todos direto no sentido contrário".

O livro apresenta uma trama que começa um pouco antes da Revolução Francesa e vai até a era de terror, em que dezenas, às vezes centenas de pessoas eram mortas diariamente, a maioria apenas pelo crime de serem nobres ou pela simples suspeita de serem traidores da pátria. As duas cidades do título são Paris e Londres, locais percorridos pelos personagens (embora os melhores momentos são aqueles passados na França revolucionária).

A trama inicia com o resgate do médico Manette, preso durante anos na Bastilha. Solto, sua filha, Lucie e um funcionário do banco Tellson seguem para Paris a fim de levá-lo para a Inglaterra, uma vez que ele pode vir a ser preso novamente se continuar em solo francês.

Dickens, baseando-se no livro de Carlyle, The French Revolution, aproveita-se do fato de que os nobres mais influentes da época tinham cartas que lhes permitiam capturar e encarcerar na Bastilhas qualquer desafeto para construir sua trama. O Doutor Manette teria sido vítima de uma dessas cartas, mas a razão pela qual ele foi preso só será revelada no final do livro, provocando uma nova tragédia.

Embora seja anterior a ele, Dickens parece ter lido o conselho de Edgar Alan Poe: imaginar primeiro o final e fazer todas as tramas e personagens se enlaçarem. Aliás, os últimos capítulos são uma aula de suspense. Como num filme de Hitchcock, acompanhamos as várias tramas avançando na direção da tragédia representada pela guilhotina.

Dickens tinha um olhar de fotógrafo: sua capacidade de ambientar o leitor através da visão de pequenos acontecimentos é única e pode ser bem apreciada no primeiro capítulo V, o primeiro em que aparece o bairro de Santo Antônio, onde é focada a maior parte da narrativa da era do terror. Um grande tonel de vinho tomba na rua e se quebra. O populacho se embriaga com o líquido, que escorre pelo calçamento acidentado: homens e mulheres cavoucam as poças com canecas de barro lascadas ou com lenços de cabeça das mulheres, que são torcidos para derramar gotas do líquido precioso na boca das crianças. O episódio, sem menor importância, torna-se um prenúncio do que virá quando um rapaz usando barrete vermelho usa o vinho para escrever no muro: "Sangue".

Dickens usa esses instantâneos para ambientar sua historia e criar expectativa, preparando o leitor para o que virá. Isso é feito de maneira lenta, própria de uma época em que se podia ler calmamente um livro: a narrativa avança aos poucos e há capítulos apenas com o objetivo de antecipar a carnificina que virá. O capítulo VI, por exemplo, é usado quase que só para descrever o local em que o Doutor e sua filha moram em Londres e um curioso efeito acústico, que lhes permite ouvir vozes e passos vindos de outras ruas, como se fossem uma multidão invisível: "Talvez vissem também a grande multidão de pessoas com seu ímpeto e seu rugido avançando sobre eles".

O leitor que resistir a essa narrativa lenta será recompensado não só pela bela prosa de Dickens ou pelo final de tirar o fôlego, mas também por uma análise interessante sobre uma época: "Liberdade, Igualdade, Fraternidade ou Morte; a última muito mais fácil de conceder do que as outras, ó Guilhotine!".

Suas descrições da carnificina são um verdadeiro estudo da natureza humana sob a influência da multidão. Em determinado ponto do livro, um dos prisioneiros é restituído à liberdade exatamente na noite em que os jacobinos decidem matar centenas de nobres que entulham as prisões. No meio da confusão, ele acaba sendo apunhalado. Chamado para atendê-lo, o doutor o encontra sendo atendido por um grupo de samaritanos sentados sobre os corpos de suas vítimas. Eles o ajudam com total solicitude, improvisam uma padiola e mandam uma escolta tirá-lo dali. Depois empunham suas armas e voltam a se dedicar à hedionda carnificina.

As notas do final do livro ajudam a entender melhor o sentido de algumas passagens ou acrescentam informações aos episódios. Sobre a noite referida, a nota cita Mercier, detalhando o assassinato da princesa de Lamballe: "Tendo os assassinos dividido os pedaços sangrentos do corpo dela, um desses monstros arrancou-lhe os pelos pubianos e fez um bigode para si mesmo com eles".

Dickens, que chegou a fazer uma reportagem sobre uma execução na guilhotina (na Itália) mostra a todo momento sua ojeriza aos crimes cometidos durante a era do terror. Mas não faz uma acusação cega dos revoltados. Ao contrário, deixa claro que tal estado de coisas só foi possível em decorrência da situação absurda em que vivia a França na época pré-revolução, com uma nobreza de poderes absolutos gastando fortunas em luxo enquanto a população miserável passava fome: "Seis carros mortuários rodam com estrondo pelas ruas de Paris. Faça-os regressar ao que eram antes, ó Tempo, poderoso mago, e eles serão vistos como luxuosas carruagens de monarcas absolutos, como equipagens de nobres feudais, como toucadores de mulheres deslumbrantes como Jezebel, como igrejas que não a casa do meu Pai, mas um covil de ladrões, como a choupana de milhões de camponeses esfaimados!".

A edição da Nova Cultural já está fora de catálogo, mas existe uma outra, da Estação Liberdade, para os que ficarem interessados.

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