quarta-feira, junho 17, 2020

Roteiro de quadrinhos: adaptações

Vamos falar de adaptações.
Bem, a primeira coisa que vocês devem fazer é ler com atenção a obra que vai ser adaptada. Essa leitura deve ser feita de forma a tirar do texto aquilo que Alan Moore chama de idéia e eu chamo de tema.
Sobre o que é a história? Vocês podem mudar tudo, podem mudar a ambientação, os personagens, mas o essencial, que é o tema, deve se manter.
O ideal é que também o tipo de narrativa se mantenha, se você quiser se manter fiel ao autor (e não estiver fazendo uma adaptação apenas para ridicularizá-lo, como faziam os músico da banda Mutantes com as músicas antigas).
Se você for adaptar Viagens de Gulliver, deve se lembrar a todo instante que a história é uma alegoria política. Ao invés de ser um navegante, o Gulliver de sua história poderia ser uma astronauta, mas, mesmo assim, as situações em que ele se envolvesse deveriam ser alegorias políticas.
                Gostaria de me reportar a um caso específico: o livro Coração das Trevas, de Joseph Conrad. Esse livro teve uma ótima adaptação para o cinema, nas mãos do Coppola, o filme Apocalipse Now. E eu também me arrisquei a adaptá-lo.

                O livro é sobre como situações limites podem mexer com a cabeça das pessoas. É também uma crítica ao colonialismo.
                No livro, um homem chamado Marlow está em um navio com outros homens e ele começa a contar a história de quando trabalhava como mercador de marfim nos países que eram colônia da Inglaterra.
                O filme de Copola se passa durante a guerra do Vietnã. Minha história é uma ficção científica e se passa em um planeta distante.
                Como vocês podem ver, tanto eu quanto o Copolla mudamos a ambientação. Mas a essência se manteve.
                Eu defino a essência da história logo na primeira página, quando o personagem narrador diz: “Vou contar uma história, senhores. Ela é sobre um homem. A trama e os detalhes talvez não importem. Apenas o homem importa”.

                No livro de Conrad não acontece quase nada. O mais importante, para Conrad é a descrição psicológica dos personagens e a análise de como eles se comportam em situações limites. Isso foi mantido tanto na minha adaptação quanto na do Copolla.
                De resto, há várias diferença e semelhanças entre minha adaptação e a do Copolla. Eu mantive a idéia de uma pessoa contando história para outras. Copolla eliminou isso, mas manteve a narrativa densa, pesada, característica do Conrad.
                Também acho importante ser fiel à forma do autor. Na minha adaptação, fiz questão de usar frases que não são características de minha prosa, mas que você encontra muito no livro de conrad. Exemplo: "Mesmo sem o terem visto, vocês se lembrarão dele pelo resto da vida. Para quem o conheceu, talvez a lembrança de seu rosto possa ser levada até para depois da morte".
                O livro de Conrad também é sobre a crueldade do imperialismo. No caso dele, o imperialismo britânico. No caso de Copolla, o imperialismo norte-americano. Eu transportei a situação para o futuro para dar à história um caráter mais universal. A empresa de minha história pode ser qualquer grande império.
                Ah, como homenagem ao filme Apocalipse Now, eu pedi ao desenhista que fizesse os cenários como se fosse uma espécie de Vietnã alienígena.

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