quarta-feira, julho 08, 2020

Roteiro para quadrinhos: gêneros


Constantemente um roteirista precisa escrever histórias que se encaixem dentro de um determinado gênero, seja policial, terror, infantil, humor, super-heróis, ficção-científica ou qualquer outro que exista ou venha a existir.
                A primeira coisa a fazer é ler o máximo possível de histórias dentro daquele gênero, para perceber a linguagem e as convenções do mesmo.
Sim, existem formas estabelecidas de fazer histórias dentro de determinados gêneros. Nos super-heróis, por exemplo, é padrão começar a história com uma splash page ambientando o leitor e, ao mesmo tempo, criando uma situação de suspense e impacto.
                Mas, mais importante do que perceber as convenções, é compreender a essência daquele gênero, o que muitas vezes permitirá que você faça um trabalho inovador.
                Vou dar um exemplo. O gênero terror tem sua origem no revolucionário trabalho de Edgar Alan Poe. Poe achava que se deveria escrever a história de trás para a frente. Ou seja, primeiro se criava um final fantástico, surpreendente, e depois se criava uma trama que desembocava nesse final apavorante.
Qualquer um que já tenha lido um conto de Edgar Alan Poe sabe que essa técnica provoca mesmo um efeito terrível no leitor. É como se o final surpresa tirasse o chão debaixo dos nossos pés, como se suas certezas fossem abaladas.

                A editora americana EC Comics levou esse conceito ao extremo na década de 1950. Nada era o que parecia nas histórias da EC. Até mesmo os padrões dos quadrinhos eram desrespeitados para dar ao leitor um final surpresa. Assim, um homem educado, de óculos, lendo jornal, podia ser um louco. Um bom policial podia ser, na verdade, um assassino, e assim por diante.
A revista nacional Calafrio, publicada no Brasil na década de 1990, transformou essas convenções em regra fixa. Assim, existiam dois tipos de histórias na Calafrio: 1) a vítima que volta do túmulo para se vingar; 2) o personagem bonzinho que vira monstro (ou vampiro, ou demônio, ou lobisomem) no final.
O resultado disso é que, o que deveria surpreender, virou tédio. O leitor sempre sabia que a vítima sempre voltava da morte para se vingar e que os personagens bons sempre viravam monstros no final.

Melhor do que seguir um padrão rígido, portanto, é procurar entender os objetivos do gênero. No terror, por exemplo, o objetivo é deixar o leitor com medo. Existe um livro chamado O Cemitério, de Stephen King. O próprio King achou-o tão apavorante que relutou anos antes de deixar que o publicassem. A contra-capa dizia que era uma obra que tinha deixado com medo o próprio mestre do horror. O que tem em O cemitério? O que poderia ser tão apavorante a ponto de fazer com que King não quisesse publicar? Simples, o filho do personagem principal morre. Isso pode parecer bobagem para uma pessoa solteira, mas é o horror dos horrores para quem é casado e tem filhos pequenos (como era o caso de King, na época). Ou seja, ele colocou o seu medo mais íntimo no livro – e isso o assustou – e continua assustando milhares de pessoas até hoje.
Dessa forma, ao fazer pela primeira vez uma história infantil, leia várias histórias infantis (de preferência de autores diferentes) e procure identificar como eles fazem, mas, acima de tudo, procure lembrar do que você gostava de ler quando era criança. Se for possível, converse com uma criança, afinal ela será o seu público-alvo.

Maurício de Souza, embora tenha lido muitos quadrinhos infantis (a influência de Charlie Brown é óbvia), criou seus personagens baseando-se nas lembranças dos amigos da infância e nas suas filhas.
Ao fazer uma história de ficção-científica, lembre-se de que esse é um gênero que tem como objetivo levar o leitor até onde nenhum homem jamais esteve (como já dizia a abertura de Jornada nas Estrelas). Ou seja, é um gênero que vai ultrapassar os limites de nossa imaginação.
Ao fazer uma história de humor, leia várias revistas de humor, de autores diferentes, mas só se sinta seguro sobre seu roteiro quando estiver achando graça do que está escrevendo. Há algum tempo editei uma revista voltada para o público universitário chamada O Pavio. Ela tinha o diferencial de ser uma revista que trabalhava muito com humor. Até mesmo as matérias jornalísticas precisavam ter toques de humorísticos. Como nem sempre os jornalistas conseguiam isso, tínhamos que trabalhar o lado engraçado de títulos, charges e dos quadrinhos. Enquanto fechava a revista, eu, de vez em quando, me pegava rindo sozinho, achando graça do que tinha escrito. Não por acaso, aquilo que eu achava mais engraçado era também o que mais agradava o leitor.
Ainda referenciando essa revista, a edição que fez mais sucesso foi uma em que fizemos um especial sobre buracos. Macapá é provavelmente a capital com mais buracos do país. No brainstorn de criação, nós nos lembramos de todas as situações ruins pelas quais já havíamos passado por causa dos buracos e até das piadas que já tinham nos contado. O resultado disso foi que a revista captou a revolta popular. Uma das piadas criadas nesse número (de que o asfalto usado na cidade era sonrisal, dissolvia na água) é contada até hoje pelos amapaenses. Nós havíamos captado um aspecto importante do gênero: o princípio de que o humor é uma forma de expressar revolta.  

                Sobre o gênero super-heróis, a primeira coisa a se saber é que o universo dos gibis de super-heróis tem suas regras próprias. A primeira delas é a splash page. "O que diabos é isso?", pergunta-se o leitor, folheando aflito o dicionário de inglês.
                A splash page é uma página com um único quadrinho que vem, em geral, no início das histórias. Nela devemos ver, de preferência, uma cena de impacto visual e uma situação de suspense que encoraje o leitor a folhear o resto do gibi na banca e, quem sabe, comprar...
                No caso das revistas seriadas, a splash page pode recapitular o gancho da última história. Tipo: "O Homem Aranha está caído, inconsciente e algumas pessoas se aproximam furiosas, dispostas a tirar sua máscara. Conseguirá nosso herói resguardar sua identidade secreta? Descubra isso nesta fantástica história chamada.. A MÁSCARA OU A VIDA!!!!"
                É, Stan Lee adorava essas coisas. Como o leitor esperto já deve ter adivinhado, a splash page é o lugar da história onde aparece o título e os créditos (nome do roteirista, do desenhista, etc).
                A splash page tem dois objetivos: 1- chamar a atencão do leitor para a história; 2 ambientá-lo no contexto da narrativa.
                Há outra maneira de trabalhar com a splash page. Reserva-se a primeira página para uma sequência qualquer que desemboque numa grande cena de impacto, que ocupe as páginas 2 e 3. É o que chamamos de página dupla.

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