Em 1913, o
dadaísta Marcel Duchamp teve a idéia de fixar uma roda de bicicleta a uma
banqueta de cozinha e vê-la girar. A tal banqueta com a roda foi exposta num
museu, como obra de arte. Alguns meses depois, Duchamp comprou uma reprodução
barata de uma paisagem de entardecer de inverno e acrescentou duas pequenas
manchas, uma vermelha e outra amarela, denominando o resultado de Farmácia. Em
Nova York, em 1915, ele comprou, numa loja de ferragem, uma pá para neve. Sobre
ela ele escreveu (“Um avanço para o braço quebrado”).
Duchamp chamou essas obras de readymades. Os
readymades foram uma revolução na arte. Primeiro porque mostraram que objetos
comuns, que podemos encontrar em qualquer loja, como uma cadeira, uma roda, ou
uma pá, podem também ser arte. Isso é revolucionário não só por tirar da arte o
status de algo inalcançável, reservado a apenas a uma elite, mas também por
mostrar que podemos ter um novo olhar sobre as coisas que nos cercam, um olhar
inusitado.
Outro aspecto
revolucionário da obra da Duchamp foi mostrar que nossa percepção de arte não
está relacionada apenas à obra em si, mas ao contexto e às significações que
lhe damos. Uma pá é uma pá numa loja de ferragens, mas pode se tornar um
instrumento de fruição estética em um museu. À resposta sobre o que é arte, um
dadaísta poderia afirmar que arte é o que está no museu, uma reflexão
bombástica.
Se arte é o que vemos
como arte, o sentido estético está muito mais no receptor do que no objeto que
está sendo observado.
Se fizermos uma relação
da arte com a ciência e filosofia, podemos recorrer a pensadores que colocam em
dúvida a existência de uma realidade exterior independente do indivíduo. É o
caso do chileno Maturana. Para ele, a observação depende muito mais das
correlações internas feitas pelos mecanismos de percepção do receptor do que da
chamada realidade externa. É por isso que, numa festa, um rapaz se apaixona
perdidamente por uma moça que é totalmente indiferente para o seu colega. Como
se diz, a beleza está nele, não na moça.
Da mesma forma, a
beleza da obra de arte está muito mais na capacidade de percepção do receptor
do que na obra em si. Uma pintura que não diga nada a um leigo pode ser genial
para alguém com mais tato. No filme Corpo Fechado, um personagem, dono de uma
galeria de arte, mostra uma capa de quadrinhos e faz uma análise insuspeita a
um leigo, analisando todo o cuidado do artista ao caracterizar o vilão e o
herói, inclusive do ponto de vista anatômico. O homem para quem ele está explicando
não consegue perceber tal beleza e só vê no quadro um presente caro para o
filho de quatro anos.
Duchamp antecipou essa
discussão, prevendo que o receptor teria participação ativa no processo de
fruição estética, decidindo o que era arte e o que não era.
Outros artistas e
designers levaram essa idéia adiante, não só trazendo objetos comuns para a
arte (ou fazendo o inverso, transformando objetos normais em arte), como também
estimulando a participação do receptor no processo de fruição. Nesse sentido,
vale lembrar o conceito de obra aberta, de Umberto Eco, em que a participação
do receptor é ativa.
No Parangolé o expectador participa vestindo a obra.
O Parangolé de Oiticica
é um exemplo disso. O expectador não é passivo, ele não fica na cômoda condição
de receptor, observando placidamente a obra de arte. A obra é uma roupa, e ele
participa vestindo a roupa e fazendo dela uma obra aberta, em eterna mutação à
medida em que se dá o movimento do tecido.
O Píer de Smithson leva
esse conceito a níveis ainda mais amplos, ao transformar a própria paisagem
numa obra aberta. A intervenção na paisagem é, por si, algo interessante, mais
ainda pela audiência se ver obrigada a percorrer o píer, olhando o entorno com
outros olhos, insuspeitos numa caminhada linear.
Além da participação ativa
no processo de fruição, da percepção diferenciada de coisas cotidianas, podemos
também destacar no Píer justamente essa não-linearidade, uma tendência
facilmente perceptível na atualidade, especialmente em filmes (Pulp Fiction,
Kill Bill), seriados (Lost, Heroes) e histórias em quadrinhos (Watchmen,
Sandman), obras, aliás, que também têm o aspecto de participação ativa do
receptor (como no caso do expectador que tenta descobrir os mistérios de Lost).
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