sábado, janeiro 13, 2024

Os quadrinhos de Perry Rhodan



Em 1975 a editora Etcetera publicou no Brasil dois números da revista Perry, o nosso homem no espaço, história em quadrinhos protagonizada pelo herói da série alemã de ficção científica Perry Rhodan.

A revista já desde a capa mostrava que pretendia vender uma mistura de FC com erotismo. No canto esquerdo, logo abaixo do título Perry, aparecia a imagem de um astronauta em traje espacial. Dentro de um círculo um cenário alienígena e no canto inferior uma bela mulher com os seios à mostra. Um splash dizia, em letras garrafais: “Ficção científica para adultos”. No canto inferior uma chamada prometia um “êxtase cósmico por quinzena”.

Na parte interna um texto apresentava o personagem como “O herói que estava faltando” e prometia a cada número uma aventura completa, uma epopeia sideral: “Conheçam Perry, sua nave espacial, a Crest; seus tripulantes escolhidos entre os melhores de vários mundos; suas mulheres, belas, ardentes e, às vezes, cruéis”.

Só por esse início qualquer fã da série Perry Rhodan percebe que a história em quadrinhos não tinha relação nenhuma com a série original, aproveitando apenas os nomes, uma vez que a série literária nunca apelou para a sensualidade como forma de ampliar as vendas. Uma curiosidade, aliás, é que o sobrenome Rhodan não é mencionado em nenhum momento da publicação.

A trama gira em torno da tentativa de descobrir o centro do universo (sabe-se lá porque alguém iria querer descobrir isso, e como seria possível definir que determinado ponto é o centro do universo, mas aparentemente o roteirista não se importa com explicações).

Mudaram o sexo e os poderes de Goratshcin. 


Já nas primeiras páginas aparece Rhodan com um visual totalmente diferente dos livros: loiro e de cabeços compridos. Aparece também uma personagem que nesse momento não é nomeada e que se destaca por andar totalmente nua, exceto por um cinto que cobre as suas partes íntimas. Mais lá na frente essa personagem é nomeada como Goratschin. Levei muito tempo para perceber que essa personagem era, na verdade, Ivan Ivanovitch Goratschin, um mutante de duas cabeças capaz de provocar explosões atômicas. O roteirista não só mudou o sexo do personagem, como deixou-o com uma só cabeça e mudou seus poderes (aqui ela parece uma telepata).

Pouco depois aparece Gucky, que está sendo vítima de uma brincadeira de outro mutante, que lhe rouba algumas cenouras. Esse mutante é capaz de se esticar, um poder que nenhum dos mutantes originais da série jamais revelou. A sequência, aliás, dá a entender que Gucky tem seus poderes aumentados quando come cenouras, como Popeye quando come espinafre, algo que nunca existiu na série.

Qual o sentido de um traje espacial que deixa um terço do corpo à mostra?


Os personagens entram na Crest, vão parar num planeta estranho, têm a sua nave destruída por “fantasmas de areia” e são obrigados a se teleportarem. Antes disso eles vestem trajes espaciais e aqui temos uma das cenas mais absurdas da HQ. Gucky e Perry estão com trajes espaciais completos, que os protegem das situações severas do planeta, mas o mutante Goratschin, aqui transformado em mulher, usa um uniforme que deixa seus seios e ventre à mostra. Por mais que o objetivo evidentemente fosse erotizar, é algo bizarro, pois que sentido faz usar um traje espacial que deixa um terço do seu corpo desprotegido?

A trama, quase incompressível, prossegue com os personagens encontrando um monólito (nitidamente influenciado pelo filme 2001), vários personagens da série que já tinham morrido, como Crest e Thora e uma deusa. Nada faz muito sentido. Thora, aliás, tem um visual completamente diferente da série literária. Aqui ela usa maquiagem pesada, cabelos liliás, seios de fora e uma calça boca de sino.

A história, escrita por Dirk Hess foi desenhada pelo italiano Giorgio Cambiotti, um dos pioneiros do quadrinho erótico italiano, o que talvez explique boa parte das bizarrices da história, como transformar um personagem homem em mulher e colocar um traje espacial que não protege nada. Essas mudanças colocavam a história num terreno mais cômodo para o ilustrador. Ele faz um trabalho maravilhoso nessa história em termos visuais, mas totalmente fora da proposta da série.

Thora usa calça boca de sino e cabelo lilás. 


A HQ termina no meio, antes que Perry alcance seu objetivo, de modo que claramente se percebe  que a história continuava, o que por si só já contradizia a promessa de publicar “uma aventura completa a cada número”.

A impressão que dá é de que o editor não se deu nem mesmo ao trabalho de ler o material.

Então veio o número dois e, ao invés de continuar a história anterior, que parara na metade, escolheram uma história fechada, na qual Gucky tenta descobrir a razão pela qual as plantações de cenouras estão sendo dizimadas por um besouro. A razão, o leitor logo descobre, é que um fabricante está com seu estoque de cenouras enlatadas encalhado e pretende acabar com as plantações de cenouras como forma de fazer as pessoas comprarem cenoura enlatada. O leitor deve estar pensando que isso não faz o menor sentido, uma vez que, acabando as plantações de cenouras, o industrial vai também perder a sua matéria prima. Aliás, o roterista parece ter sido o único a não ter pensado nisso.

No número dois o editor resolveu publicar uma história com Gucky ao invés de continuar a história anterior. 


Nessa história, Gucky tem a companhia de uma garota nua (para não dizer que ela anda totalmente nua, ela tem um desenho nas nádegas que parece ter a única função de chamar a atenção para essa parte de sua anatomia) chamada Shira, que, até onde sei, só existiu nos quadrinhos, não tendo uma contrapartida na série literária (o que é um alívio).

A trama toda é muito infantil, sendo salva apenas pelos bons desenhos do italiano Umberto Sammarini que, no entanto, são apelativos demais na maioria das vezes. Tudo no roteiro parece ser feito para mostrar belas mulheres nuas (em contrapartida os homens estão sempre completamente vestidos).

Uma curiosidade nessa edição é que aparece o personagem Bell e ele é chamado de Bully, provavelmente um erro de tradução.

As histórias publicadas pela Etcetera foram retiradas da série Perry - Unser Mann im All, que teve escritores da série até o número 36 e tinha histórias mais atreladas à série original. A partir do número 37 os desenhos passaram a ser feitos por um estúdio italiano e as tramas passaram a seguir uma linha diferente dos livros.

Em outras palavras, a Etecera resolveu começar a publicar uma série no meio (ao invés de começar pelas primeiras histórias, que apresentavam os personagens). Prometeram publicar apenas histórias fechadas, mas já começaram com uma história em continuação e, ao invés de publicar o final desta, preferiram publicar outra história no número dois (eu continuou achando que o editor não se deu ao trabalho de ler o material). Em outras palavras, Perry, nosso homem no espaço é um exemplo perfeito de como não editar um material. Não surpreende, portanto, que tenha durado apenas dois números.

No mesmo período a Ediouro estava publicando os livros, mas da forma correta, na ordem de publicação original. Fez tanto sucesso que ultrapassou o número de 500 livros publicados.

(Agradeço ao amigo Edgar Smaniotto pela ajuda nas informações)

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