sábado, fevereiro 24, 2024

Os Readymades de Marcel Duchamp

 



Em 1913, o dadaísta Marcel Duchamp teve a idéia de fixar uma roda de bicicleta a uma banqueta de cozinha e vê-la girar. A tal banqueta com a roda foi exposta num museu, como obra de arte. Alguns meses depois, Duchamp comprou uma reprodução barata de uma paisagem de entardecer de inverno e acrescentou duas pequenas manchas, uma vermelha e outra amarela, denominando o resultado de Farmácia. Em Nova York, em 1915, ele comprou, numa loja de ferragem, uma pá para neve. Sobre ela ele escreveu (“Um avanço para o braço quebrado”).

Duchamp chamou essas obras de readymades. Os readymades foram uma revolução na arte. Primeiro porque mostraram que objetos comuns, que podemos encontrar em qualquer loja, como uma cadeira, uma roda, ou uma pá, podem também ser arte. Isso é revolucionário não só por tirar da arte o status de algo inalcançável, reservado a apenas a uma elite, mas também por mostrar que podemos ter um novo olhar sobre as coisas que nos cercam, um olhar inusitado.

Outro aspecto revolucionário da obra da Duchamp foi mostrar que nossa percepção de arte não está relacionada apenas à obra em si, mas ao contexto e às significações que lhe damos. Uma pá é uma pá numa loja de ferragens, mas pode se tornar um instrumento de fruição estética em um museu. À resposta sobre o que é arte, um dadaísta poderia afirmar que arte é o que está no museu, uma reflexão bombástica.

Se arte é o que vemos como arte, o sentido estético está muito mais no receptor do que no objeto que está sendo observado.

Se fizermos uma relação da arte com a ciência e filosofia, podemos recorrer a pensadores que colocam em dúvida a existência de uma realidade exterior independente do indivíduo. É o caso do chileno Maturana. Para ele, a observação depende muito mais das correlações internas feitas pelos mecanismos de percepção do receptor do que da chamada realidade externa. É por isso que, numa festa, um rapaz se apaixona perdidamente por uma moça que é totalmente indiferente para o seu colega. Como se diz, a beleza está nele, não na moça.

Da mesma forma, a beleza da obra de arte está muito mais na capacidade de percepção do receptor do que na obra em si. Uma pintura que não diga nada a um leigo pode ser genial para alguém com mais tato. No filme Corpo Fechado, um personagem, dono de uma galeria de arte, mostra uma capa de quadrinhos e faz uma análise insuspeita a um leigo, analisando todo o cuidado do artista ao caracterizar o vilão e o herói, inclusive do ponto de vista anatômico. O homem para quem ele está explicando não consegue perceber tal beleza e só vê no quadro um presente caro para o filho de quatro anos.

Duchamp antecipou essa discussão, prevendo que o receptor teria participação ativa no processo de fruição estética, decidindo o que era arte e o que não era.

Outros artistas e designers levaram essa idéia adiante, não só trazendo objetos comuns para a arte (ou fazendo o inverso, transformando objetos normais em arte), como também estimulando a participação do receptor no processo de fruição. Nesse sentido, vale lembrar o conceito de obra aberta, de Umberto Eco, em que a participação do receptor é ativa. 

No Parangolé o expectador participa vestindo a obra.


O Parangolé de Oiticica é um exemplo disso. O expectador não é passivo, ele não fica na cômoda condição de receptor, observando placidamente a obra de arte. A obra é uma roupa, e ele participa vestindo a roupa e fazendo dela uma obra aberta, em eterna mutação à medida em que se dá o movimento do tecido.

O Píer de Smithson leva esse conceito a níveis ainda mais amplos, ao transformar a própria paisagem numa obra aberta. A intervenção na paisagem é, por si, algo interessante, mais ainda pela audiência se ver obrigada a percorrer o píer, olhando o entorno com outros olhos, insuspeitos numa caminhada linear.

Além da participação ativa no processo de fruição, da percepção diferenciada de coisas cotidianas, podemos também destacar no Píer justamente essa não-linearidade, uma tendência facilmente perceptível na atualidade, especialmente em filmes (Pulp Fiction, Kill Bill), seriados (Lost, Heroes) e histórias em quadrinhos (Watchmen, Sandman), obras, aliás, que também têm o aspecto de participação ativa do receptor (como no caso do expectador que tenta descobrir os mistérios de Lost).

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