Mazagão é, provavelmente, a única cidade do mundo transplantada de um continente para o outro: de Marrocos, na África, para o Amapá, no Brasil. É a história dessa cidade sui generis que Laurent Vidal conta no livro Mazagão – a cidade que atravessou o Atlântico.
Mazagão surgiu em 1514 no processo de expansão portuguesa na África – o objetivo era estabelecer entrepostos para os navios portugueses que pretendiam contornar o continente para chegar à Ásia.
A fortaleza de Mazagão é instalada num ponto privilegiado, exatamente no meio dos dois extremos do Marrocos lusitana. Também é o porto mais seguro para ancoragem em toda a costa do norte da áfrica.
Mas a reação dos marroquinos não demora e uma a uma, todas as praças portuguesas vão sendo derrotadas e abandonadas, até que sobra apenas Mazagão. Durante mais de um século, Mazagão irá resistir aos mulçumanos, tornando-se o bastião cristão na África. Em um dos cercos morrem 25 mil mouros, enquanto que no lado português apens 98 soldados e 19 civis. Mazagão torna-se o orgulho de Portugual.
Mas a situação vai mudar com a chegada de Marquês de Pombal ao poder. Ele percebe que seria impossível para um pequeno país manter-se em Marrocos e no Brasil ao mesmo tempo e decide-se pelo Brasil.
Um dos melhores capítulos do livro é justamente o que trata da saída dos portugueses da fortaleza, desde a tensão anterior, como muitos dos habitantes decididos a desobedecer a ordem do rei – e continuar defendendo a cidade – até a fuga planejada, com soldados explodindo a fortaleza para não deixar nada para os mouros. Prédios, igrejas, tudo é depredado.
Ao mazaganeses sentem-se duplamente traídos. Por um lado, queriam continuar na África, local em que eram considerados heróis. Por outro lado, é difícil aceitar serem enviados para a Amazônia, local para onde só eram enviados os degregados. Laurent Vidal explora bem esses sentimentos ao resgatar e analisar documentos, como um poema escrito por um mazaganês e guardado numa biblioteca em Portugal.
O transalado dura meses. Os mazaganeses são enviados primeiro para Portugal, depois para Belém, onde aguardam as construções das casas.
Como demonstra o livro de Vidal, a burocracia portuguesa é desastrosa. Para começar, escolhem um local insalubre, pantanoso, que apodrece a comida e as paredes das casas (algumas desmoronam com menos de um ano). O local, inclusive, é de difícil acesso – só é possível chegar através de canoas.
Além disso, não contam com as mudanças nas famílias no período de mais de um ano de translado (casamentos, mortes, nascimentos), de modo que a divisão das casas é feita rigorosamente a partir de uma lista feita em Portugual. Novas famílias surgem, outras perdem seu patriarca (que deveria ser quem assumiria a casa na nova cidade). Para fechar com chave de ouro, a burocracia portuguesa decide que a nova Mazagão deve plantar arroz, produto que Portugal precisava àquela altura. Mas os mazaganeses eram guerreiros e não entendiam nada de agricultura. Os escravos doados a eles vêm da África, e não sabem como plantar na Amazônia. Os únicos que poderiam ensinar seriam os índios, mas esses são proibidos por Portugal de participar de qualquer plantio (eles são usados exclusivamente na construção de casas).
O resultado não poderia ser outro: a experiência é um desastre. Tirando um outro mazaganês que consegue se adaptar e ganhar dinheiro com a plantação de arroz, a maioria vive em situação de miséria – mais uma humilhação para aqueles que se consideram heróis da cristandade.
Mas os mazaganeses encontram um jeito de reviver as glórias da Mazagão africana. Em 1777, quando o rei Dom José morre, Lisboa ordena que cada região do império organize uma festa para comemorar a coroação de D. Maria I.
Os mazaganeses fazem mais de uma semana de festa, e, entre as várias atrações, encenam um combate naval entre mouros e cristãos, algo completamente imaginário, já que os mouros nunca tiveram uma frota que pudesse contrapor os navios portugueses, razão pela qual as batalhas sempre eram terrestres. É uma batalha imaginada, para uma cidade imaginada, uma cidade de memória, como diz Vidal.
D. Maria, compadecida da situação dos mazaganeses, permitiu que eles deixassem a vila, razão pela qual muitos se espalharam por outras localidades do Amapá, muitos deles para Vila Nova de Anauerapucu, que passa a se chamar Mazaganópolis e depois Mazagão Novo, e a vila antiga passou passou a ser conhecida como Mazagão Velho, nome pela qual é conhecida até hoje. É uma trajetória impressionante de uma cidade que se desdobrou em três.
Mazagão Velha passou a ser habitada, majoritariamente, pelos negros, descendentes dos escravos dos mazaganeses, ou vindos de um quilombo das proximidades. E, surpreendemente, são esses mesmos descendentes de escravos que vão manter a lembraça das glórias dos portugueses na África, resgatando aquela festa em honra a Dona Maria, que em algum momento da história se torna festa de São Tiago e hoje é uma das principais atrações turísticas do amapá. A batalha naval da festa original se torna uma intricada trama de batalha entre mouros e cristãos. E, da mesma forma que a batalha naval encenada pelos primeiros mazaganeses, é uma encenação de uma cidade de memória, muito mais fruto da imaginação do que dos fatos.
Laurent Vidal conta essa história incrível em 294 páginas. Trata-se de um livro acadêmico, repleto de notas, mas a escrita é agradável, de modo que mesmo que aqueles não acostumados a textos acadêmicos podem se interessar. O ponto mais difícil talvez seja a transcrição de textos portugueses da época, de difícil leitura nos dias atuais. Exemplo: “Com estas famílias ordena El Rey Nosso Senhor que se estabeleça huma nova povoação na costa septentrional do Amazonas para se darem as maons com Macapá e Vila Vistoza”.
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