sexta-feira, agosto 30, 2024

Memórias das pornochanchadas

 


Marcos Rey é um dos escritores mais subestimados do Brasil. Por conta de sua atuação como roteirista de televisão e cinema (ele chegou a escrever para o Sítio do Picapau Amarelo na década de 1970 e para mais de 30 pornochanchadas), uma grande névoa de preconceito obscureceu sua obra. No entanto, ele é um dos mais líricos e interessantes escritores nacionais. Prova disso é o livro Esta noite ou nunca (Global Editora, 2009, 208 págs.).

Em Esta noite..., Rey faz uma espécie de exorcismo da fase mais controversa de sua carreira: a de roteirista de pornochanchadas. O personagem principal, cujo nome nunca conhecemos, é um escritor que cai em desgraça depois de participar de uma passeata pelo fim da ditadura militar. Ao ser preso, é encontrado com livros evidentemente comunistas, como O Vermelho e o NegroA safra vermelhaUm estudo em vermelho e até um livro de contos de Carlos Marques (Foi esse que escreveu O capital, explicou um dos soldados).

A partir daí, nenhum dos jornais com os quais ele colaborava o queria por perto. A solução foi começar a escrever romances de banca, os pockets, sob o pseudônimo de William Ken Taylor (escritores com nome em inglês vendem mais, ensina o editor). Quando até mesmo essa editora é fechada, a solução surge na forma de roteiros para pornochanchadas.

Esse é o início daquilo que os roteiristas de cinema chamam de segundo ato, a parte maior da obra, na qual surgem os conflitos a serem resolvidos pelo protagonista.

A explicação acima não é deslocada. O romance inteiro é construído como um roteiro de pornochanchada. Marcos Rey usa, o tempo todo, a linguagem de roteiro, que aprendera a ponto de escrever um manual sobre o assunto (O roteirista de cinema): "Aproximei-me; aquela cena não podia se desfazer em diálogo para não correr o perigo de saturação de imagem"; "Aí uma voz em off, duma pessoa não enquadrada pela câmera foi ouvida por nós"; "Era um flashback".

Metalinguístico, Marco Rey ensina como escrever uma pornochanchada e a exemplifica com a própria vida do personagem. Nesse tipo de história, há sempre uma mulher deslumbrante, que é perseguida por todos os homens da trama, mas geralmente faz-se de santa, negando aos homens o que eles mais querem. É justamente essa busca da satisfação sexual que criará a tensão da trama. Outros personagens básicos são o corno, geralmente o marido da musa, que não lhe dá valor antes do final do filme, e a bicha, um elemento de humor.

Esta noite... reúne todos esses elementos. O protagonista passa a maior parte das páginas tentando levar para a cama a atriz Eliana Brandão, verdadeira paixão nacional. Ela flerta, mas não cede, até porque tem um marido, de quem está momentaneamente separada. Há um gay, Carmem, que tenta ajudar o escritor, e outros interesses românticos, que acabam se concretizando ― um deles, com uma mulher rica, numa oficina de marcenaria, dá ao autor uma ideia para um roteiro.

Assim, o livro pode ser lido como manual, homenagem e até mesmo denúncia contra a situação vivida pelo cinema nacional à época. O livro é também exorcismo contra um fantasma que perseguiu o autor por anos. Em entrevista à revista Conhecimento Prático Literatura nº 25, a esposa do escritor, Palma, disse: "Depois do golpe de 1964, ele não tinha mais campo para escrever e partiu para a pornochanchada, porque dava muito dinheiro. Isso prejudicou a literatura dele. Os elitistas achavam que ele era um comerciante, um escritor comercial. Mas nós tínhamos contas a pagar". O autor chegou a declarar: "Pouco ou nada do que produzi naquele período eu assinaria agora. Quando esses filmes são reapresentados na televisão, não assisto. O autor não sou eu, mas o escriba dos anos de chumbo da ditadura".

Esta noite ou nunca mais é uma espécie de reconciliação com esse período controverso da carreira de Marcos Rey, e, ao mesmo tempo, um resgate do cinema popular que resistia, apesar da perseguição oficial e da concorrência estrangeira.

Aliás, essa é uma outra leitura que pode ser feita da obra: a denúncia sobre o quão danoso o período militar foi para a cultura brasileira.

Ao contrário da ditadura Vargas, essencialmente nacionalista, a ditadura militar sempre fez questão de pagar o apoio dado pelos EUA ao golpe de 1964 abrindo as portas de nossa cultura para a dominação estrangeira. Nos quadrinhos isso se refletiu numa repressão pesada às HQs nacionais ao mesmo tempo que os heróis Marvel entravam no Brasil ligados a uma poderosa empresa internacional de petróleo. Mesmo quadrinistas que não tinham qualquer conteúdo crítico à ditadura, como Cláudio Seto, introdutor da linguagem de mangás no Brasil, foram perseguidos. Na impossibilidade de prendê-lo, já que ele morava no interior, os soldados que foram à editora que publicava seus trabalhos levaram originais e colocaram numa cela.

A experiência de Marcos Rey parece ter sido ainda mais amarga. Perseguido porque um irmão havia sido nomeado para um cargo no governo de Jango, Rey mostra a forma arbitrária com que eram feitas as prisões e a falta de cultura dos soldados.

Há relatos reais, de pessoas que foram presas apenas porque tinham uma coleção de livros encadernados em couro vermelho. Isso se reflete no romance com humor. Ao ser preso pela segunda vez, o protagonista diz que a princípio não tivera muito receio porque já se livrara de alguns romances comunistas como "A moreninhaOuro sobre azul e Nossa vida com papai. Apenas me esquecera de queimar O moço loiro, provável biografia de Karl Marx, quando jovem".

O livro, portanto, é um relato único: a ditadura sob o olhar de um roteirista de pornochanchadas. Marcos Rey o faz com uma maestria quase equivalente à de O último mamífero do Martinelli, seu melhor livro, sobre um homem que foge da repressão se abrigando num edifício abandonado e começa a vivenciar as histórias das pessoas que passaram por ali através das pistas deixadas nos apartamentos. Como em O último mamífero...Esta noite... marca pela nostalgia que fica em nós após acompanhar um personagem tão carismático.

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