Há uma convenção narrativa segundo a qual, ao iniciar o texto em determinado tempo verbal, devemos ir com ele até o final.
Os tempos verbais mais comuns são o passado/pretérito (aconteceu) e o presente (acontece). O pretérito dá a impressão de algo que já aconteceu e é mais fácil de ser manejado, tanto que a maioria dos textos usa esse tempo verbal. O presente é um tempo verbal muito mais difícil para o escritor, pois o narrador só sabe dos fatos à medida em que eles acontecem, mas tem o mérito de dar a impressão de que algo está acontecendo naquele momento, diante do leitor.
Feita a escolha entre passado ou presente, é importante que essa escolha seja mantida até o final, sob o risco de confundir o leitor. Afinal, ele está lendo algo que ocorre neste momento ou algo que já aconteceu? Essa confusão pode gerar desinteresse pelo texto, fazendo com que ele abandone o livro ou quadrinho antes do final.
Entretanto, a mistura dos tempos verbais pode ser uma estratégia narrativa. Eu usei essa abordagem em meu livro Cabanagem, mais especificamente no capítulo 22.
Nesse trecho específico, o protagonista, Chico Patuá, está delirando em febre.
Eu aproveitei esse mote para contar fatos da história do personagem, que vão aparecendo em meio às alucinações, como flash backs. Ao narrar esse capítulo, eu misturo os tempos verbais, muitas vezes dentro do mesmo parágrafo: “Chico, em seu delírio, tentava tocar a mãe...”; “As presenças se acercavam dele.”; “Um homem enorme e barbudo os vê na rua e os segue”; “A mãe corre até ele.”; “Os escravos olham assustados”.
O objetivo aqui era causar no leitor uma sensação de estranhamento, incômodo. A escolha narrativa pretendia mergulhar o leitor no delírio de Chico Patuá em que presente e passado se misturavam.
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