terça-feira, setembro 11, 2007

a necrofilia da arte

Dia desses estava numa dessas convenções de quadrinhos quando dei de cara com o famoso roteirista B*. Imediatamente abordei-o e iniciamos uma animada conversa. B*, além de um bom papo, é também um roteirista de talento, o melhor da nova geração de roteiristas brasileiros, um legítimo representante do estilo de Júlio Augusto, o quadrinista que projetou a HQ nacional para o mundo e abriu caminho para todos nós.
- Todos nós devemos muito a Júlio Augusto. - eu dizia, quando B* me interrompeu.
- Está vendo aquele ali? - indagou ele, apontando para um homem de aproximadamente 35 anos, vestindo calças largas presas por suspensórios.
- Sim. - respondi. Parece-me mais um dos fãs de quadrinho nacional do tipo obcecado. São tipos estranhos. Certa vez um deles quis levar uma mecha de meu cabelo para completar sua coleção.
- Ah, sim? Pois repare. Embora compre obsessivamente, ele não adquiriu nenhuma revista de Júlio Augusto.
De fato, embora ele estivesse com uma sacola cheia de revistas, não havia nenhuma assinada por Júlio Augusto. O que, de fato, é muito estranho. Há cinco anos nada vende mais que Júlio Augusto. Colecionadores compram 10, 15 edições da mesma história. Nas gibiterias metade do espaço é dedicado ao grande mestre que, embora tenha revitalizado a nona arte no Brasil, teve a infelicidade de morrer cedo. Assim, era bastante estranho que alguém fosse uma convenção e não adquirisse nenhuma obra do mestre.
- Sabe por que ele não compra Júlio Augusto?
Eu não tinha a menor idéia.
- Porque ele é Júlio Augusto.
Meu queixo caiu. Júlio Augusto? Como? Ele...
- Ele está morto, eu sei. Também sei que você provavelmente não vai acreditar no que vou dizer, mas espero que ouça. Tudo começou seis anos atrás. Nós éramos um grupo de quadrinistas de talento, mas absolutamente pobres e irreversivelmente desempregados. Vivíamos numa casa caindo aos pedaços e corríamos o risco de sermos escorraçados dali, pois há muito não pagávamos aluguel. As editoras nacionais, na época poucas, não aceitavam nossos trabalhos porque, embora fôssemos bons, éramos novos e desconhecidos. A editoras de outros países, nem se fala... Nem mesmo as editoras de livros didáticos aceitavam nossos trabalhos. Você deve achar isso engraçado, agora que tenho livros publicados por quase todas as grandes editoras, e costumo dispensar suas ofertas tentadoras para me dedicar mais livremente aos quadrinhos. Mas na época todas recusavam meus livros com a desculpa de que a programação do próximo ano já estava lotada. Quanto aos desenhistas, eram obrigados a decantar a água em que limpavam os pincéis para reaproveitar o nanquim.
Então essa era a situação desesperadora em que nos encontrávamos quando tivemos uma idéia. Percebemos que neste país só são valorizados os artistas que morrem e decidimos que um de nós iria morrer. Tiramos a sorte e Júlio Augusto foi o escolhido. A partir desse momento, todos nós começamos a produzir como loucos. Eu escrevia até duas histórias por dia. E pelo menos 15 páginas eram desenhadas diariamente, todas seguindo sempre o mesmo estilo. Começamos pelos fanzines. Enviamos histórias curtas para vários deles, lembrando de que se tratava do trabalho de um desenhista doente que morreria em breve. Assim, quando mandamos os trabalhos para as editoras, a fama de moribundo de Júlio Augusto já havia se espalhado. Eles publicaram porque um desenhista pronto para morrer já era quase um desenhista famoso. A grande sensação aconteceu quando comparecemos a uma convenção levando os mais novos originais de Júlio Augusto. Explicamos, claro, que ele não fora porque a doença o deixara na cama, e que não demoraria a morrer. Editores compraram rapidamente os direitos de publicar as histórias antes que a morte de seu autor as valorizasse. Hoje esses direitos valem pelo menos 500 vezes mais.
Um mês depois matamos Júlio Augusto. Ele faleceu numa Terça-feira, para que desse tempo de fazerem um Globo repórter sobre ele. O caixão foi acompanhado por uma multidão. É claro que só havia tijolos lá dentro, mas só nós sabíamos disso. Enquanto isso, negociávamos os direitos de publicação de suas últimas histórias. Apareceu até mesmo um editor japonês interessado em publicar as histórias do revolucionário quadrinista brasileiro. Só aquele dinheiro já foi suficiente para montarmos uma editora e nos firmarmos no mercado. Chamamos a editora de J.A. Comics. Fomos saudados como os seguidores de Júlio Augusto. Muitos se espantaram com a maneira como conseguíamos imitar seu estilo e o culto a Júlio Augusto se espalhou até não conhecer limites nem mesmo geográficos. Hoje, cinco anos após sua morte, há quem diga que ele é mais famoso que Elvis Presley.
E foi assim que conseguimos nos fazer e alavancar junto o quadrinho nacional para o reconhecimento internacional: matando um de nós. Júlio Augusto trocou de nome e passou a viver numa cidadezinha do interior. De vez em quando faz algumas histórias que publicamos com pseudônimo, explicando que se trata de mais um seguidor do grande Júlio Augusto. Essa é a razão pela qual ele não compra nada do mestre.
B* terminou de falar e ficou observando o amigo morto. E eu fiquei com meus botões, pensando se aquela história maluca era realmente verdadeira. Afinal, os roteiristas de quadrinhos são justamente conhecidos por sua imaginação desenfreada. Verdade, mentira? Vá se saber!

(Depois de Mark Twain)

1 comentário:

Anónimo disse...

muito engraçada esta do Julio Augusto! Hahahahah...
Abraços,
Miguel.