Sérgio tinha um sonho: ser ator. Passava os dias modorrentamente numa repartição pública, remoendo essa frustração.
Já não bastasse o sonho não realizado, Sérgio ainda tinha de agüentar chacota dos colegas de repartição. A verdade é que era quase impossível ver aqueles homenzinho de testa larga, cabeça calva, sem esboçar um sorriso. Duas lentes garrafais pendiam de sua protuberância nazal, ocupando a maior parte do rosto, que por sinal afinava no queixo, dando impressão de que faltara massa ao conjunto. A barriga, enorme, era uma exibida e teimava em pular para fora da camisa. Seu andar tinha o rigor quacquacqueano dos patinhos na lagoa: barriga inclinada para a baixo e a região glútea inclinada para cima, com os pezinhos de menina se movimentando lá embaixo.
Já que não tinha coragem de realizar seu sonho, contentava-se em estragar os dos outros. Costumava dizer que era um crítico e estava ali para criticar.
- E criticava?
Desbundava. Nos debates, após as apresentações, bastava que ele abrisse a boca a pronunciasse o fatídico “Eu vejo erros!” para que os atores estremecessem.
Seu olhar de rancor conseguia encontrar erros mínimos, que passavam despercebidos para todos os outros. Sérgio eram também um profundo pensador e havia criado para si uma teoria de teatro tão flexível e ao mesmo tempo tão ortodoxa que lhe permitia criticar qualquer um, dos pobres atores de periferia aos grandes astros nacionais.
Ignora-lo era pior. Quando percebia que não estavam levando a sério suas críticas, entrava em pânico. Não era justo. Aquela era o único momento em que ele brilhava e não podiam, de forma alguma, tirar-lhe essa glória! Recomposto da mágoa, ele se levantava, deslizava seus pezinhos pelo salão, cortava a palavra dos outros, apontava nervosamente o dedo e gritava sua máxima:
_ Isso não é teatro! Vocês estão brincando de fazer teatro! Isso não é teatro!
Pronto! Estava feito. Agora era a Ursa Maior, brilhando intensamente por todo o teatro e cegando com sua luz todos os hereges que ousavam discordar dele. Para melhor efeito, ele se sentava de quando em quando, para, de repente, estourar no meio da frase de alguém:
- Isso não é teatro!
Tumultuar era-lhe uma delícia!
Um dia leu uma frase de Augusto Boal que o deixou particularmente preocupado: “Qualquer um pode fazer teatro, até mesmo os atores”.
Ora, se qualquer um podia fazer teatro, por que ele – justo ele! – não podia? Isso era especialmente irritante.
Nesse dia, Sérgio deslizou seus pezinhos pela repartição, coçando a cabeça e fazendo retângulos imaginários no chão. Pensou primeiro em diminuir a importância de Boal. Bastava para isso recorrer à sua infalível máxima: “Isso não é teatro!” e tudo estaria resolvido. Boal não fazia teatro, não sabia o que era teatro e, portanto, não podia ensinar nada a ele... bom... muito bom... mas nem tanto. Se Augusto Boal não fazia teatro, que fazia? Não, não convinha discordar dele... era famoso demais, respeitado demais... e, quem sabe, talvez Boal tivesse razão e qualquer um podia fazer teatro... até... ele!
Era isso! Ia tomar coragem e realizar seu sonho. Imaginou-se fulgurante no palco, olhando de cima os pobres espectadores, a quem só restaria assistir boquiabertos. Não havia dúvidas: seria um sucesso! Anos e anos de crítica teatral tinham lhe dado experiência o bastante para fazer o melhor espetáculo possível.
O problema era encontrar um grupo. Sérgio dizia que os que os que existiam estavam por demais viciados “pelos erros que se espalhavam como uma peste pelos espaços cênicos”. Não. Ele cortaria o mal pela raiz. Descobriria uma terra ainda virgem para plantar nela os frutos do que considerava o verdadeiro teatro.
A notícia se espalhou. Sérgio, o crítico, estava montando uma peça e a apresentaria à cidade para mostrar a todos o que era um teatro sério. Quanto ao elenco, alguém indicou-lhe um grupinho de colégio, repleto de fedelhos em fraudas.
Convence-los a se deixar dirigir foi moleza. Bastou alguns termos técnicos e uma conversa fiada sobre marcação e expressão corporal para que os pobres coitados tivessem que recolher o queixo do chão.
De posse da trupe, o grande dilema foi escolher a peça a ser encenada. Passou nisso um mês, matutando. Não descobriu, por fim, nenhum autor nacional que estivesse à sua altura. Não montaria nada menor que Shakespeare. Decidiu, então, montar Sonhos de uma noite de verão.
Sérgio nunca pensou que fosse tão difícil e desgastante montar uma peça. Os vinte uma atores dificilmente podiam ser reunidos num só dia; o dinheiro saía aos borbotões de seus bolsos para gastos que iam da passagem dos atores ao lanche que os miseráveis exigiam quando o ensaio se alongava.
O cenário, mandou-o fazer por um cenógrafo paulista de passagem pela terra. Mas acabou não gostando. Foi obrigado a pagar, entre ameaças de prisão e troca de gentilezas de ambas as partes. Jogou tudo fora e se concentrou na tarefa de produzir, ele mesmo, com ajuda de alguns carpinteiros, o cenário. Como não queria cair no mesmo erro da cenografia, desenhou pessoalmente a roupa de cada personagem, acompanhando passo a passo sua confecção.
Mais alguns gastos com pequenos detalhes, e secou a mina. Teve de pedir emprestado a amigos para cobrir a sonoplastia, a iluminação, o frete do caminhão que traria a cenografia... Para pagar a chamada na TV, foi obrigado a recorrer a uma agiota com jeito vampiresco que fazia antever um futuro preocupante.
Finalmente chegou o dia da estréia. Após um ano de árduos ensaios, de noites sem sono, de aborrecimentos sem fim, havia afinal chegado o grande dia.
O teatro lotou. Todos estavam curiosos para ver como seria a grande obra do crítico. Tratava-se de um momento histórico.
Tocaram as três sinetas e Sérgio, que tinha reservado para si o papel de Auberon, entrou. Parou no foco e olhou para a platéia. Então uma revolução começou a acontecer dentro dele, a começar pelas pernas, que bambearam de todo. Ele abriu a boca, gaguejou as primeiras palavras do texto, piscou seis vezes e caiu para trás, completamente fulminado de medo.
Virou mártir. Os amigos inventaram a história de que ele havia tido um ataque cardíaco durante o espetáculo e escreveram nos jornais, louvando a bravura daquele grande herói cênico, e explicando sua contribuição para o teatro regional, nacional e (quem sabe?) internacional. Seu nome foi cantando como de um campeão de Olimpíada, analisaram as possíveis contribuições de seu legado, o apnhado kitch da cenografia, o surrealismo do figurino...
Sérgio, curiosamente, nunca mais pisou num palco. O mais perto que chegava deles era nos debates, aos quais voltou com fúria redobrada:
- Isso não é teatro!
Já não bastasse o sonho não realizado, Sérgio ainda tinha de agüentar chacota dos colegas de repartição. A verdade é que era quase impossível ver aqueles homenzinho de testa larga, cabeça calva, sem esboçar um sorriso. Duas lentes garrafais pendiam de sua protuberância nazal, ocupando a maior parte do rosto, que por sinal afinava no queixo, dando impressão de que faltara massa ao conjunto. A barriga, enorme, era uma exibida e teimava em pular para fora da camisa. Seu andar tinha o rigor quacquacqueano dos patinhos na lagoa: barriga inclinada para a baixo e a região glútea inclinada para cima, com os pezinhos de menina se movimentando lá embaixo.
Já que não tinha coragem de realizar seu sonho, contentava-se em estragar os dos outros. Costumava dizer que era um crítico e estava ali para criticar.
- E criticava?
Desbundava. Nos debates, após as apresentações, bastava que ele abrisse a boca a pronunciasse o fatídico “Eu vejo erros!” para que os atores estremecessem.
Seu olhar de rancor conseguia encontrar erros mínimos, que passavam despercebidos para todos os outros. Sérgio eram também um profundo pensador e havia criado para si uma teoria de teatro tão flexível e ao mesmo tempo tão ortodoxa que lhe permitia criticar qualquer um, dos pobres atores de periferia aos grandes astros nacionais.
Ignora-lo era pior. Quando percebia que não estavam levando a sério suas críticas, entrava em pânico. Não era justo. Aquela era o único momento em que ele brilhava e não podiam, de forma alguma, tirar-lhe essa glória! Recomposto da mágoa, ele se levantava, deslizava seus pezinhos pelo salão, cortava a palavra dos outros, apontava nervosamente o dedo e gritava sua máxima:
_ Isso não é teatro! Vocês estão brincando de fazer teatro! Isso não é teatro!
Pronto! Estava feito. Agora era a Ursa Maior, brilhando intensamente por todo o teatro e cegando com sua luz todos os hereges que ousavam discordar dele. Para melhor efeito, ele se sentava de quando em quando, para, de repente, estourar no meio da frase de alguém:
- Isso não é teatro!
Tumultuar era-lhe uma delícia!
Um dia leu uma frase de Augusto Boal que o deixou particularmente preocupado: “Qualquer um pode fazer teatro, até mesmo os atores”.
Ora, se qualquer um podia fazer teatro, por que ele – justo ele! – não podia? Isso era especialmente irritante.
Nesse dia, Sérgio deslizou seus pezinhos pela repartição, coçando a cabeça e fazendo retângulos imaginários no chão. Pensou primeiro em diminuir a importância de Boal. Bastava para isso recorrer à sua infalível máxima: “Isso não é teatro!” e tudo estaria resolvido. Boal não fazia teatro, não sabia o que era teatro e, portanto, não podia ensinar nada a ele... bom... muito bom... mas nem tanto. Se Augusto Boal não fazia teatro, que fazia? Não, não convinha discordar dele... era famoso demais, respeitado demais... e, quem sabe, talvez Boal tivesse razão e qualquer um podia fazer teatro... até... ele!
Era isso! Ia tomar coragem e realizar seu sonho. Imaginou-se fulgurante no palco, olhando de cima os pobres espectadores, a quem só restaria assistir boquiabertos. Não havia dúvidas: seria um sucesso! Anos e anos de crítica teatral tinham lhe dado experiência o bastante para fazer o melhor espetáculo possível.
O problema era encontrar um grupo. Sérgio dizia que os que os que existiam estavam por demais viciados “pelos erros que se espalhavam como uma peste pelos espaços cênicos”. Não. Ele cortaria o mal pela raiz. Descobriria uma terra ainda virgem para plantar nela os frutos do que considerava o verdadeiro teatro.
A notícia se espalhou. Sérgio, o crítico, estava montando uma peça e a apresentaria à cidade para mostrar a todos o que era um teatro sério. Quanto ao elenco, alguém indicou-lhe um grupinho de colégio, repleto de fedelhos em fraudas.
Convence-los a se deixar dirigir foi moleza. Bastou alguns termos técnicos e uma conversa fiada sobre marcação e expressão corporal para que os pobres coitados tivessem que recolher o queixo do chão.
De posse da trupe, o grande dilema foi escolher a peça a ser encenada. Passou nisso um mês, matutando. Não descobriu, por fim, nenhum autor nacional que estivesse à sua altura. Não montaria nada menor que Shakespeare. Decidiu, então, montar Sonhos de uma noite de verão.
Sérgio nunca pensou que fosse tão difícil e desgastante montar uma peça. Os vinte uma atores dificilmente podiam ser reunidos num só dia; o dinheiro saía aos borbotões de seus bolsos para gastos que iam da passagem dos atores ao lanche que os miseráveis exigiam quando o ensaio se alongava.
O cenário, mandou-o fazer por um cenógrafo paulista de passagem pela terra. Mas acabou não gostando. Foi obrigado a pagar, entre ameaças de prisão e troca de gentilezas de ambas as partes. Jogou tudo fora e se concentrou na tarefa de produzir, ele mesmo, com ajuda de alguns carpinteiros, o cenário. Como não queria cair no mesmo erro da cenografia, desenhou pessoalmente a roupa de cada personagem, acompanhando passo a passo sua confecção.
Mais alguns gastos com pequenos detalhes, e secou a mina. Teve de pedir emprestado a amigos para cobrir a sonoplastia, a iluminação, o frete do caminhão que traria a cenografia... Para pagar a chamada na TV, foi obrigado a recorrer a uma agiota com jeito vampiresco que fazia antever um futuro preocupante.
Finalmente chegou o dia da estréia. Após um ano de árduos ensaios, de noites sem sono, de aborrecimentos sem fim, havia afinal chegado o grande dia.
O teatro lotou. Todos estavam curiosos para ver como seria a grande obra do crítico. Tratava-se de um momento histórico.
Tocaram as três sinetas e Sérgio, que tinha reservado para si o papel de Auberon, entrou. Parou no foco e olhou para a platéia. Então uma revolução começou a acontecer dentro dele, a começar pelas pernas, que bambearam de todo. Ele abriu a boca, gaguejou as primeiras palavras do texto, piscou seis vezes e caiu para trás, completamente fulminado de medo.
Virou mártir. Os amigos inventaram a história de que ele havia tido um ataque cardíaco durante o espetáculo e escreveram nos jornais, louvando a bravura daquele grande herói cênico, e explicando sua contribuição para o teatro regional, nacional e (quem sabe?) internacional. Seu nome foi cantando como de um campeão de Olimpíada, analisaram as possíveis contribuições de seu legado, o apnhado kitch da cenografia, o surrealismo do figurino...
Sérgio, curiosamente, nunca mais pisou num palco. O mais perto que chegava deles era nos debates, aos quais voltou com fúria redobrada:
- Isso não é teatro!
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