quinta-feira, fevereiro 05, 2009

Lobato contra modernistas: a guerra que não existiu

Uma das histórias mais contadas nos cursos de letras e em grande parte dos livros de literatura é a guerra que teria sido travada entre Monteiro Lobato e os autores modernistas. Lobato é mostrado como retrógrado, ultrapassado e inimigo de posições revolucionárias. Sua produção literária de contos é vista como pobre, de um regionalismo de pouco calibre. O criador do Jeca Tatu é tido, no máximo, como um escritor infantil importante. Mas essa guerra com os modernista teria realmente existido? Essa é a pergunta que muitos intelectuais têm feito e a resposta parece não ser tão óbvia quanto foi durante muito tempo.
A exposição Anita Mafalti
A suposta guerra entre Monteiro Lobato e os modernista teria começado em 1917, com a publicação, no jornal O Estado de São Paulo, de uma crítica de Lobato à exposição de Anita Mafalti. Esse texto, intitulado Paranóia ou mistificação, foi incluído posteriormente no livro Idéias de Jeca tatu.
Lobato começou elogiando Anita: ¨Essa artista possue um talento vigoroso, fora do comum. Poucas vezes, através de uma obra torcida em má direção, se notam tantas e tão preciosas qualidades latentes. Percebe-se, de qualquer daqueles quadrinhos, como a sua autora é independente, como é original, como é inventiva¨, mas acrescenta que, seduzida por teorias modernas, ela deixou sua arte descambar para um novo tipo de caricatura.
Lobato aproveita também para cutucar os que se dizem encantados com esse novo tipo de arte, pois esses descobrem na tela intenções inacessíveis ao vulgo e conclui, ironicamente: o público é uma besta e eles um grupo genial de iniciados.
O escritor reservou especial atenção a uma tela do cubista americano Bolynson, um carvão representando uma figura em movimento, que foi colocado na exposição como exemplo do caminho segundo por Mafalti. ¨Aqueles gatafunhos não são uma figura em movimento; foram, isto sim, um pedaço de carvão em movimento¨.
Essa crítica, publicada em 1917, ecoou por muitos anos fazendo, inclusive que muitos ainda acreditem que Lobato havia criticado a Semana de Arte Moderna, um evento ocorrido cinco anos depois. Também por conta desse texto, muitos tentaram desqualificá-lo como crítico e renegar suas idéias sobre arte e cultura.
Na verdade, Lobato não direcionava sua crítica à inovação, mas ao estrangeirismo. Nacionalista radical, o escritor não admitia que se fosse procurar nas vanguardas européias um norte para a arte brasileira. Para ele, isso impediria a criação de um ideal estético nacional, colocando-nos sempre como macacos imitadores dos povos colonialistas.
Outro fator importante é a personalidade independente de Lobato (resumida na frase de Shakespeare, que ele adorava citar: ¨isto acima de tudo: sê fiel a ti mesmo¨) que não admitia reduzir a arte às regras de uma escola artística.
Por fim, Lobato procurava sempre atingir, com sua literatura, um público o mais amplo possível, numa proposta de democratização das artes. O oposto disso seriam as obras herméticas e aristocráticas, que Lobato enxergava no quadro de Bolynson.
A semana de arte moderna
No livro Furacão no Botocúndia, Carnem Lúcia de Azevedo, Márcia Camargos e Vladmir Sachetta argumentam que o preconceito contra Lobato, motivado pelo episódio Mafalti foi a única razão pela qual Lobato ficou fora da Semana de Arte Moderna, já que Lobato seria o líder natural deles. Afinal, no campo das idéias sociais, políticas e econômicas, ele foi o praticante mais sistemático da agenda modernista. Mas nas artes, os modernistas foram bater às portas de Graça Aranha, que pouco tinha a ver com o movimento.
Lobato fez graça com a situação: ¨Se eu tivesse participado da Semana, talvez me tivessem contaminado com a inteligência nela manifestada. Preferi ficar na minha burrice¨, escreveu ele, dispondo-se a participar de uma segunda Semana, aumentada, na qual ficaria com o cargo de papa, logo abaixo do Papão Oswald de Andrade.
Aliás, a relação entre Lobato e Oswald sempre foi das mais amistosas. Ambos tinham espírito independente e um grande senso de humor. Oswald chamava Lobato de ¨O Gandhi do modernismo¨ e dizia que o autor do Jeca só não participou da Semana por causa do nacionalismo: ¨sua luta significava a repulsa ao estrangeirismo afobado de Graça Aranha, às decadências lustrais da Europa podre, ao esnobismo social que abria seus salões à Semana¨.
Lobato jamais perdeu contato com os modernistas, muitos dos quais eram publicados por sua editora. Além disso, ele se correspondia regularmente com nomes como Di Cavalcanti, Graça Aranha, Oswald e Mario de Andrade e Sérgio Millet.
Coerente com sua opinião de que Anita era uma grande artista, Lobato chamou-a para ilustrar a capa dos livros ¨O Homem e a morte¨, de Menotti Del Picchia e ¨Os condenados¨, de Oswald de Andrade, ambos lançados por ele. O livro ¨Idéias de Jeca Tatu¨ teve como capa O Homem Amarelo, quadro de Anita Mafalti.
Além disso, Lobato nunca escreveu contra a Semana. Na verdade, o que parece ter acontecido foi um episódio de ciúmes, por conta de um artigo no qual Lobato creditava a Semana à Oswald de Andrade.
A morte de Lobato
No artigo ¨Nosso dualismo¨, publicado no em e reunido no livro ¨Na Antevéspera¨, Lobato diz que ¨O futurismo apareceu em São Paulo como fruto da displicência dum rapaz rico e arejado de cérebro: Oswald de Andade¨. Segundo Lobato, Oswald era um turista integral que, por sua visão cosmopolita tinha capacidade de perceber a cristalização mental da inteligência brasileira. Para tirar o país desse marasmo, ele teria recorrido ao processo da atrapalhação e exemplifica com o caso da peninha. Um sujeito propõe a outro uma advinhação: ¨Qual é o bicho que tem quatro pernas, come ratos, mia, passeia pelos telhados e tem uma peninha na ponta da cauda?¨. Como ninguém adivinhasse, ele explicou: ¨É o gato!¨. ¨Mas e a peninha?¨. ¨Está aí só para atrapalhar¨. O processo de atrapalhação teria dado uma sacudida na cultura brasileira, mas, segundo Lobato, a coisa teria dado errado quando outros autores resolveram transformar esse processo num dogma: ¨Oswald sempre repeliu os sectários e sempre refugiu de transformar sua colher de mexer, hoje colher de pau-brasil, em paradigma, em maracá sagrado. E passa a vida a criar cismas dentro do grupo, a renegar sumos pontífices¨.
Mário de Andrade responde com o texto ¨Post-scriptum Pachola¨no qual chega a anunciar a morte de Monteiro Lobato, que ele recebia com o coração sangrando e os olhos mojados de lágrimas. É de se perguntar se em seu texto não havia um tanto de ciúmes, por Lobato ter creditado a Semana a Oswald e não a ele.
O autor do Jeca, entretanto, não fez caso. Em carta ao jornalista Flávio Campos, Lobato diz que Mário, por seu talento, tem direito a tudo, ¨até de meter o pau em você e em mim. Eu tenho levado pancadinhas dele. Certa feita matou-me e enterrou-me. Em vez de revidar, conformei-me, e sem mudar minha opinião sobre ele. Mário é grande. Tem o direito de nos matar à moda dele¨.
Lobato sempre esteve mais alinhado com os ideais modernos do que com a tradição. Seu movimento pelo petróleo brasileiro e pela industrialização está mais próximo do futurismo do que da tradição intelectual brasileira, que se prendia aos bons tempos do café . Sua obra infantil é moderna ao extremo, inclusive em termos de linguagem, ao aproximar a literatura da fala coloquial. Suas várias editoras sempre foram inovadoras e tiveram papel importante na divulgação dos autores modernistas. Até mesmo no campo social Lobato se revelava revolucionário, defendendo, por exemplo, que os jovens fizessem uma espécie de ¨estágio¨, morando com seus futuros conjugues antes de casarem.
Mesmo Mário de Andrade, provavelmente o maior responsável pela disseminação da idéia de que Lobato era inimigo dos modernistas, mesmo ele admitiu o alinhamento desse autor com os ideiais daquele movimento: ¨Quanto a dizer que éramos, os de São Paulo, uns antinacionalistas europeizados, creio ser falta de sutileza crítica. É esquecer todo o movimento regionalista aberto justamente em São Paulo e imediatamente antes, pela Revista do Brasil, é esquecer todo o movimento editorial de Monteiro Lobato¨.

Artigo originalmente publicado na revista Discutindo Literatura, n. 20, da editora Escala.

4 comentários:

Fabio disse...

Muito bom o texto sobre um assunto que muitos aqui em São Paulo fazem questão de obscurecer.
Parabéns.

D.Ramírez disse...

Não irei falar de Monteiro nem de suas obras, pq ja sabemos tudo de bom sobre ele, mas elogiar seus blogs Danton. O da grafipar, embora nao tenha colaborado com ela, fez parte de uma parte de vida. Muito boas recordações.
Voltarei, para ver com calma.
Abraços

Gian Danton/Ivan Carlo disse...

Oi Fábio,
pois é. Essa visão de que o Lobato foi contra a Semana de arte moderna está tão difundida que a maioria das pessoas formadas em letras odeia o Lobato. Ele nunca escreveu contra a semana, além de ter sido o editor da maioria dos modernistas! Talvez a crítica à Anita tenha sido muito pesada, de fato, e talvez Lobato tenha tentando compensar isso chamando-a para ilustrar as capas dos livros de sua editora... É necessário reabilitar urgentemente esse grande escritor que foi Lobato.

Ramirez,
acho que a Grafipar fez parte da vida de muita gente. Agradeço os elogios.

Vivian Lima disse...

Esse texto foi a luz pra mim e a salvação da moral de Monteiro Lobato no meu conceito ! Nas escolas, os professores só divulgam essa versão meio errônea da relação de Lobato com o modernismo. Agora está tudo esclarecido.
Obrigada