segunda-feira, janeiro 25, 2010

Superbrinquedos duram o verão todo

Você é real?
Eu sou real?
Imagine um garotinho de cinco anos tendo a percepção de que não é um ser humano de verdade. Esse é o princípio base do conto “Superbrinquedos duram o verão todo”, de Brian Aldiss, publicado no livro homônimo pela Companhia das Letras.
“Superbrinquedos”já mereceria uma lida apenas por suas qualidades literárias. Mas há um motivo a mais. O conto inspirou Stanley Kubrick e Steven Spielberg a criarem Inteligência Artificial, um dos melhores filmes do ano e desde já um dos clássicos da ficção científica.
O conto narra a história de um garotinho, David, que tenta ser amado pela mãe. O final, que deve ter sido surpreendente na época, perde muito do impacto para quem assistiu ao filme: David não é um menino de verdade, mas um robô criado para entreter uma mulher que não pode ter filho em decorrência do controle de natalidade (os casais para terem filhos são sorteados como numa loteria).
A história chamou a atenção de Kubrick. Aldiss passa todo o Prefácio explicando sua relação com o genioso cineasta.
Aldiss mencionou os três filmes de ficção cientifica de Kubrick (Doutor Fantástico, 2001 e Laranja Mecânica) em seu livro Billion Year Spree (Orgia do Ano Bilhão) no qual considera o cineasta o grande escritor de ficção científica de sua época.
Kubrick, que adorava elogios, telefonou para Aldiss. Depois se encontraram em um restaurante.
Aldiss conta que Kubrick era um perfeito Che Guevara: botas pesadas, traje verde-oliva, boinas enterradas na cabeça e barba.
Em 1982 os dois estavam conversando sobre Guerra nas Estrelas e sobre como histórias bobas podem ser tornar uma forma de arte quando surgiu a idéia de fazer um filme de ficção científica. A idéia era produzir um filme capaz de arrecadar tanto quanto Guerra nas Estrelas, mas, ao mesmo tempo, permitir ao diretor manter sua reputação de homem com consciência social.
Kubrick tinha na cabeça a idéia de que “Superbrinquedos” daria um ótimo filme. Aldiss não concordava, mas, em dificuldades financeiras, acabou vendendo os direitos sobre a história e foi trabalhar com o cineasta no roteiro.
Todos os dias uma limosine aparecia na sua porta e ele era levado ao castelo Kubrick. Este aparecia todo amarfanhado, dizendo: “Vamos tomar um pouco de ar, Brian”.
E saíam para o quintal. Mal haviam dado alguns passos, Kubrick já estava resfolegando e eles voltavam para dentro.
Aldiss considera um indício funesto o fato de ter recebido de Kubrick um exemplar ricamente ilustrado da história de pinóquio. “Nunca, jamais, em sã consciência, reescreva contos de fada”, escreve o autor.
Ao longo do processo de criação, Aldiss foi produzindo novos contos, em continuação ao primeiro: “Superbrinquedos quando vem o inverno”e “Superbrinquedos em outras estações”. Os três contos juntos deveriam conter os contornos do que seria o filme. “Nada de Nova York inundada, nada de Fada Azul. Apenas um drama muito intenso e poderoso de amor e inteligência”.
Todos nós sabemos que não foi esse o caminho seguido pelo filme. Spielberg transformou o conto em uma versão hi-tech do mito de Pinóquio e uma jornada em busca da humanidade e do amor de uma mãe.
Se Aldiss estava certo ou não, é uma questão para o leitor decidir. Mas a leitura dos três contos que deram origem ao filme é, sem dúvida, saborosa.
O mesmo pode-se dizer dos outros contos que compõe a coletânea. Reduzir o interesse do livro a “Superbrinquedos” é uma injustiça ao autor (embora, obviamente a Companhia das Letras tenha tido o a idéia de lançar esse livro em decorrência do suceso do filme).
As histórias revelam um humor ácido e, às vezes, negro. É o que acontece, por exemplo, em “Sem Cabeça”. Nesse conto um homem decide fazer uma autodegolação em público para arrecadar dinheiro para as crianças famintas da Turcomênia. O fato vira assunto de discussão e de exploração da mídia, com uma audiência estimada em quase dois bilhões de pessoas e certamente muitos lucros para as emissoras.
Em “I.I.I” lemos o anúncio publicitário de uma empresa de exploração espacial e o extermínio de espécies inteligentes é mostrada como mérito financeiro: “Inteligentes ou não, os flabbers com certeza eram bastante saborosos e muito ajudaram a humanidade – graças à poderosa subsidiária da I.I.I., a Latador”.
Num campo que tem grandes expoentes, Aldiss encontrou um caminho próprio. Se Assimov é o rei das tramas bem elaboradas e da divulgação científica, se Bradbury é o mestre da ficção científica poética, Aldiss é um especialista em transformar a F.C. em crítica social.

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