sábado, novembro 06, 2010

Quem paga a música escolhe a dança?


Marisa Lajolo [1]

Caçadas de Pedrinho”, de Monteiro Lobato, está em pauta e é bom que esteja, pois é um livro maravilhoso .
Narra as aventuras da turma do sítio de Dona Benta primeiro às voltas com a bicharada da floresta próxima  e, depois, com uma comissão do governo encarregada de caçar um rinoceronte fugido de um circo. Nos dois episódios prevalecem o respeito ao leitor, a visão crítica da realidade, o humor fino e inteligente.  
    Na primeira narrativa, a da caçada da onça, as armas das crianças são improvisadas e na hora agá  não funcionam. É apenas graças à esperteza e inventividade dos meninos que eles conseguem matar a onça e arrastá-la até a casa do sítio. A morte da onça provoca revolta nos bichos da floresta e eles planejam vingança numa assembléia muito divertida : felinos ferozes invadem o sítio e –de novo- é apenas graças à inventividade e esperteza das crianças ( particularmente de Emília) que as pessoas escapam de virar comida de onça. 
Na segunda narrativa, a fuga de um rinoceronte de um circo e seu refúgio no sítio de dona Benta leva para lá a Comissão que o governo encarregou de lidar com a questão. Os moradores do sítio desmascaram a corrupção e o corpo mole da comissão, aliam-se ao animal cioso da liberdade conquistada e espantam seus proprietários. E, batizado Quindim, o  rinoceronte fica para sempre incorporado às aventuras dos picapauzinhos.
Estas histórias constituem o enredo do livro que parecer recente do Conselho Nacional de Educação (CNE), a partir de denúncia recebida,   quer proibir de integrar  acervos com os quais programas governamentais compram livros para bibliotecas escolares . O CNE  acredita que o livro veicula conteúdo racista e preconceituoso e que os professores não têm competência para lidar com tais questões. Os argumentos que fundamentam as acusações de racismo e preconceito são  expressões pelas quais  Tia Nastácia é referida no livro, bem como a menção à África como lugar de origem de animais ferozes.
Sabe-se hoje que diferentes leitores interpretam um mesmo texto de maneiras diferentes. Uns podem morrer de medo de uma cena que outros acham engraçada. Alguns  podem sentir-se profundamente tocados por passagens que deixam outros impassíveis.  Para ficar num exemplo brasileiro já clássico, uns acham que Capitu ( D. Casmurro, Machado de Assis, 1900)   traiu mesmo o marido, e outros acham que não traiu, que o adultério foi fruto da mente de Bentinho.  Outros ainda acham que Bentinho é que namorou Escobar .. !
É um grande avanço nos estudos literários esta noção mais aberta do que se passa na cabeça do leitor quando seus olhos estão num livro. Ela se fundamenta no pressuposto segundo o qual, dependendo da vida que teve e que tem, daquilo em que acredita ou desacredita, da situação na qual lê o que lê, cada um entende uma história de um jeito.  Mas essa liberdade do leitor vive sofrendo atropelamentos. De vez em quando, educadores de todas as instâncias – da sala de aula ao Ministério de Educação-   manifestam desconfiança da capacidade de os leitores se posicionarem de forma correta  face ao que lêem .
Infelizmente, estamos vivendo um desses momentos.
Como os antigos diziam  que quem paga a música escolhe a dança, talvez se acredite hoje ser correto que  quem paga o livro escolha  a leitura que dele se vai fazer. A situação atual tem sua (triste) caricatura no lobo de Chapeuzinho Vermelho que não é mais abatido pelos caçadores, e pela dona Chica-ca que não mais atira um pau no gato-to. Muda-se o final da história e re-escreve-se a letra da música porque se  acredita que leitores e ouvintes sairão dos livros e das canções abatendo lobos e caindo de pau em bichanos . Trata-se de uma idéia pobre,  precária e incorreta que além de considerar as crianças como  tontas, desconsidera a função simbólica da cultura. Para ficar em um exemplo clássico, a psicanálise e os estudos literários ensinam que  a madrasta malvada de contos de fada não desenvolve hostilidade conta a nova mulher do papai, mas – ao contrário-  pode ajudar a criança a não se sentir muito culpada nos momentos em que odeia a mamãe, verdadeira ou adotiva...
Não deixa de ser curioso notar que esta pasteurização pretendida para os livros infantis e juvenis  coincide com o lamento geral  – de novo, da sala de aula ao Ministério da Educação—pela precariedade da leitura praticada na sociedade brasileira.    Mas, como quem tem caneta de assinar cheques e de encaminhar leis tem o poder de veto, ao invés de refletir e discutir,  a autoridade veta . E veta porque, no melhor dos casos e muitas vezes com a melhor das intenções,  estende suas reações a certos livros a um numeroso e anônimo universo de leitores  . .  
No caso deste veto a “Caçadas de Pedrinho”  ,   a Conselheira Relatora Nilma Lino Gomes  acolhe denúncia de Antonio Gomes da Costa Neto que entende como manifestação de preconceito e intolerância  de maneira mais específica a personagem feminina e negra Tia Anastácia e as referências aos personagens animais tais como urubu, macaco e feras africanas ;  (...) aponta menção revestida de estereotipia ao negro e ao universo africano , que se repete em vários trechos do livro analisado   e exige da editora responsável pela publicação a inserção no texto de apresentação de uma nota explicativa e de esclarecimentos ao leitor sobre os estudos atuais e críticos que discutam a presença de estereótipos na literatura.
Independentemente do imenso  equívoco em que, de meu ponto de vista, incorrem o denunciante e o CNE que aprova por unanimidade o parecer da relatora, o episódio torna-se assustador pelo que endossa, anuncia e recomenda de patrulhamento da leitura na escola brasileira. A nota exigida  transforma livros em produtos de botica, que devem circular  acompanhados de bula com instruções de uso.  
O que a nota exigida  deve explicar ?  o que significa esclarecer ao leitor sobre os estudos atuais e críticos que discutam a presença de estereótipos na literatura  ? A quem deve a editora encomendar  a nota explicativa ?  Qual seria o conteúdo da nota solicitada ? A nota deve fazer uma auto-crítica ( autoral, editorial ? ) , assumindo que o livro contém estereótipos ? a nota deve informar ao leitor que “Caçadas de Pedrinho” é  um livro racista ?  Quem decidirá se a nota explicativa cumpre efetivamente o esclarecimento exigido pelo MEC ? 
As questões poderiam se multiplicar. Mas não vale a pena. O panorama que a multiplicação das questões delineia é por demais sinistro .  Como fecho destas melancólicas maltraçadas aponte-se que qualquer nota no sentido solicitado – independente da denominação que venha a receber, do estilo em que seja redigida, e da autoria que assumir- será um desastre. Dará sinal verde para uma literatura autoritariamente auto-amordaçada.  E este modelito   da mordaça de agora talvez seja  mais pernicioso  do que a ostensiva queima de livros em praça  pública, número medonho mas que de vez em quando entra em cartaz na história desta nossa  Pátria amada idolatrada salve salve.  E salve-se quem puder ... pois desta vez  a censura não quer determinar apenas  o que se pode ou não se pode ler, mas é mais sutil, determinando como  se deve ler o que se lê  !



[1] Prof. Titular (aposentada) da UNICAMP; Prof. da Universidade Presbiteriana Mackenzie;  Pequisadora Senior do CNPq.; Ex Secretária de Educação de Atibaia (SP);  Organizadora ( com João Luís Ceccantini)  do livro  de Monteiro Lobato livro a livro (obra infantil) , obra que recebeu o Prêmio Jabuti 2009 como melhor livro de Não Ficção.  


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