A preocupação com a leitura parece cada vez mais urgente num país como o Brasil. Há tempos não se consegue formar uma geração de leitores, mas a situação parece ter piorado. A escola, que deveria ser a grande incentivadora da leitura, está provocando dois fenômenos preocupantes: o analfabetismo funcional e a fobia de livros.
Os analfabetos funcionais são aqueles que frequentaram a escola mas, por falta de contato com a leitura e a escrita, foram perdendo a capacidade de compreensão do mundo das palavras. Luzia de Maria, no livro Leitura e colheita, conta que realizava uma oficina de leitura quando disse que um analfabeto funcional era aquele que não conseguia entender revistas como Veja, Isto e Época, e três professoras da plateia disseram: "eu".
A fobia de livros é perfeitamente percebida quando se ouve alguém dizer que tem dor de cabeça quando começa a ler. É como se o organismo reagisse patologicamente a uma experiência traumática.
Certa vez, eu lecionava um curso de histórias em quadrinhos para crianças da periferia de Belém e perguntei a elas qual era a diferença entre um gibi e um livro. Eu esperava que elas apontassem a ilustração como diferença, pois é possível publicar um livro sem desenhos, mas não é possível o mesmo com uma HQ. A resposta, dada por uma menina, surpreendeu-me: "O livro é chato; história em quadrinho é divertida".
Na cabeça dela, o livro era algo lido por obrigação puramente escolar, sem nenhum prazer ou contato com a vida.
A grande pergunta que surge é: onde a escola errou? Por que, ao invés de despertar os alunos para a magia da leitura, ela os afastou dessa mesma magia?
Esse desvio no caminho tem sua origem na noção de leitura que acompanha a maior parte da vida escolar. Nas escolas ainda predomina a visão do livro como objeto sagrado, típica da Idade Média. Nessa época, os escritos eram encadernados em couro, com ornamentação de metais preciosos. As Bíblias que existiam nas igrejas ficavam presas por correntes. O livro era um objeto caro, raro e distante.
Com a invenção da imprensa, surge aquilo que Marshall McLuhanchamou de "Galáxia Gutenberg". É inaugurado o pensamento linear e a visão cartesiana de mundo.
É também a época das gramáticas normativas. Esses gramáticos viam na palavra escrita o lugar de acerto, de uma linguagem correta, a linguagem dos bons doutos. A linguagem oral, ao contrário, era o lugar do erro, do caos, da inconstância. Orientados pelo pensamento cartesiano, esses gramáticos se interessaram apenas pela ordem expressa da palavra escrita.
Na escola, essa visão separou a fala e a escrita como ações contrárias, e os textos perderam contato com a vida real. Sua utilização na sala de aula privilegiava não o entendimento, não a atribuição de significado, mas a capacidade de decodificar os signos e de identificar classes gramaticais ou sintáticas.
Assim, alfabetizado era aquele capaz de ler um texto em voz alta, ou tirar dele os substantivos, os verbos ou identificar as construções sintáticas. Pouco interessava se a pessoa estava conseguindo atribuir significado ao que lia.
Isso não faz parte de um passado remoto. Dia desses, meu filho trouxe um dever de caso que era a "interpretação" de um texto. A tal interpretação consistia apenas em descobrir encontros vocálicos no texto. Ou seja, a narrativa era apenas uma espécie refinada de tortura, com pouquíssima utilidade prática e sem nenhum significado.
Rubem Alves diz que tem calafrios quando sabe que um de seus textos está sendo utilizado para isso. Enquanto escreve, nenhum escritor pensa em verbos, substantivos, ditongos, hiatos ou algo do gênero.
Certa vez utilizaram um texto meu, sobre McLuhan, em um vestibular. Fui resolver as questões relacionadas ao meu texto e errei algumas. No texto eu explicava a teoria do filósofo canadense segundo a qual o homem inventou extensões de seu próprio corpo para melhorar seu desempenho. Uma das questões perguntava o que não era extensão do corpo humano. A resposta, segundo os elaboradores da prova, era roupa, porque eu não citava o vestuário em meu texto. Entretanto, uma compreensão correta do artigo levaria a identificar que o conceito era ampliável também para as roupas, afinal, elas são uma extensão da pele. O exemplo mostra que até a interpretação de um texto pode ser transformada em um ato mecânico, de retirar informações de um conjunto de palavras, sem a necessidade de entender seus conceitos.
A falta de sentido desses exercícios é exemplificada num fato simples: gramática nenhuma jamais transformou alguém em escritor. Escrever é um ato criativo e pensar em hiatos e ditongos enquanto se escreve é provavelmente a melhor forma de se ter um bloqueio.
Tenho um livro infantil, Os Gatos, publicado por uma editora de Curitiba. Na época a editora estava iniciando na área de literatura infantil e chamou um gramático para revisar os originais. A revisão tornou o texto totalmente incompreensível para uma criança e a editora foi obrigada a chamar uma professora de literatura infantil para refazer a revisão. Para o gramático, era mais importante que o livro fosse escrito nos moldes renascentistas da gramática normativa. Se haveria compreensão por parte da criança, pouco importava.
Só existe uma maneira de tomar gosto pela leitura: lendo. Só existe uma forma de aprender a escrever bem: escrevendo. Nunca conheci um grande autor que não fosse um leitor voraz e um escritor compulsivo.
Enquanto o texto for encarado apenas pelos seus aspectos gramaticais, enquanto a interpretação for a simples decodificação, sem a possibilidade de variedade de leituras ou de interpretação, a escola será sempre a criadora de analfabetos funcionais e de pessoas que têm dor de cabeça à simples visão de um livro.
Texto originalmente publicado no Digestivo Cultural.
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