Há uma tendência generalizada entre os críticos mal-humorados em considerar Stephen King um escritor ruim. Essa postura fundamenta-se na ideia de que tudo que faz sucesso não tem qualidade. Os grandes escritores seriam aqueles voltados para pequenos públicos.
Basta uma olhada rápida em “Carrie, a Estranha”, romance de estréia de Stephen King para perceber o óbvio: esse pessoal não sabe se divertir. Carrie é uma leitura divertida que, no entanto, não subestima a inteligência do leitor. A narrativa não é linear. A história principal é entremeada por fatos do passado e recortes de revistas de livros. Essa é uma técnica muito usada por grandes escritores pós-modernos.
King conta que, na época em que começou a escrever a história, era professor de uma escola de ensino médio. A renda não era suficiente para sustentar a família com dois filhos. Assim, para se manter, ele vendia contos de terror para revistas mensais. Quando uma das crianças aparecia com uma otite, Tabitha, a mulher do escritor, dizia: “Rápido, Steve, pense num monstro!”.
No final do ano de 1972, King teve a ideia para um conto sobre uma menina com poderes telecinéticos. A trama era baseada em uma matéria da revista Life sobre uma casa assombrada por poltergeist. Entretanto, os pesquisadores logo descobriram que o caso não tinha nada a ver com fantasmas. O centro do fenômeno era uma menina. Quando ela estava em casa, objetos saiam voando. Quando ela saia, as coisas voltavam a ficar comportadas. O mote do artigo era de que meninas na puberdade tinham despertado um poder telecinético capaz de mover objetos.
Claro, isso chamou a atenção de um escritor que ganhava dinheiro extra vendendo histórias para revistas de terror.
King, na época, morava num trailer com a família, e o único lugar disponível para escrever era próximo da máquina de lavar roupa. Ele se sentou lá, colocou a máquina sobre o colo e começou a escrever em espaço um, sem margens, para economizar papel. Quando percebeu que a história estava se tornando maior que um conto, ele a jogou fora. Afinal, ele precisava de dinheiro imediato, e uma novela era muito trabalho. Além disso, um texto desses encontraria maior dificuldade de ser publicado.
Carrie não existira se não fosse Tabitha. Ela foi até a lixeira, limpou o papel e começou a ler. Gostou e incentivou o marido a continuar escrevendo. Ele o fez apenas para agradá-la.
De fato, foi muito difícil encontrar um editor para a história, e o único que aceitou só o fez pensando no sucesso do filme “O Exorcista”.
Para surpresa geral, “Carrie, a estranha” se tornou um best seller. Virou até filme, nas mãos de Brian de Palma, o que projetou King para o Olimpo dos escritores americanos: Hollywood.
King colocou os seus próprios fantasmas na história: duas meninas, colegas de escolas, ambas já falecidas na época.
Uma delas, Tina White, era gorducha e quieta. O fato de usar sempre a mesma roupa fazia dela a vítima potencial de todas as brincadeiras sádicas dos colegas. Era ela que sempre sobrava na dança das cadeiras, era ela que sempre carregava um cartaz dizendo “Me chute” colado ao traseiro.
A outra, Sandra Irving, era filha de uma fanática religiosa e tinha ataques epilépticos. Usava roupas pudicas e antiquadas. Tudo isso fazia dela um alvo muito bom para a chacota das crianças.
Carrie White é uma mistura das duas. Filha de uma fanática religiosa, que a sufoca e a impede de ter uma vida normal, ela é humilhada na escola por ser diferente e por usar roupas estranhas.
A cena inicial do livro é particularmente significativa. Carrie está no banheiro, tomando banho com as outras meninas após as aulas de ginástica. Ela tem 17 anos e tem sua primeira mestruação. Carrie pensa que está morrendo de hemorragia. As colegas começam a gritar com ela e a jogar absorventes.
O episódio demonstra a total ignorância da menina quanto às coisas da vida. Demonstra também a rejeição das outras garotas. Mas demonstra o que Carrie tem de diferente das colegas de King. No ápice da humilhação, um lâmpada estoura, revelando que a menina tem o poder mental chamado telecinésia.
Carrie irá usar esse poder para se vingar de todos que a maltrataram e humilharam. O leitor sabe disso desde o primeiro momento. A graça não está em advinhar o final (que, em certo sentido, é óbvio), mas em perceber a textura dos eventos que vão se acumulando até provocar a catástrofe final.
Para isso, King se utiliza de fragmentos de livros, de revistas, jornais, de entrevistas de pessoas que conheceram Carrie White. As informações são jogadas ao longo da história, de maneira não linear. É como montar um quebra-cabeça.
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