sábado, setembro 15, 2012
O grande besouro
Eu ligo a TV. A moça no telejornal nos diz para ficarmos calmos e exibe seu sorriso cativante. É um sorriso tão verdadeiro quanto uma nota de três reais, mas ainda assim as pessoas acreditam. Ou fingem acreditar.
Eu olho à minha volta: o retrato na parede. Amigos de infância. A água escorrendo de nossos cabelos, o sol forte banhando a praia. Os livros na estante, um deles um presente de uma antiga namorada, a dedicatória desaparecendo na página amarelada. Uma antiga fotografia de minha mãe, a cor de seu vestido se esvanecendo. Um brinquedo antigo guardado há muitos anos, seu plástico quebradiço.
Olho para fora, pela janela: não há bicicletas nas ciclovias, não há pedestres nas calçadas. Os ônibus circulam vazios por ruas desertas. O frio de Curitiba talvez seja o motivo, mas acho que não. No fundo, as pessoas sabem.
Embora a moça da TV e seu sorriso de três reais nos digam para ficarmos calmos, todos sabem.
Tudo isso deixará de existir em breve. Em breve sobrará apenas a memória deste mundo, nada mais. Talvez nem mesmo a memória. Talvez a história nos varra da face da terra a ponto de jamais desconfiarem que aqui estivemos.
E, no entanto, eu fui avisado, embora tenha me recusado a dar ouvidos.
Isso foi há quantos meses? Dois? Três?
Na época eu precisava viajar toda semana para São Paulo e passava muito tempo na rodoviária. Gostava de chegar adiantado, comprar a passagem e sentar em uma das cadeiras para ler um livro. Era uma espécie de ritual ao qual eu me apegava semanalmente.
Gostava de locais isolados e costumava me levantar quando outras pessoas sentavam por perto. Assim, quase o fiz quando percebi que alguém ocupava o banco ao meu lado. Era um mendigo e o mau-cheiro exalava dele forte e insistentemente. Usava um amontoado de roupas, algumas de verão, outras de inverno, de forma totalmente caótica: camiseta sobre jaqueta, blusa de lã sobre camiseta. Ao redor do pescoço, um cachecol colorido quase tornado preto pela sujeira. Ele abriu a boca, sorrindo, e de seus dentes podres escapou um bafo pestilento, que me fez virar a cabeça.
Tentei levantar, mas ele me segurou pelo braço:
- Você precisa ouvir! Por que ninguém me ouve?
Ele me olhou nos olhos e percebi que não me largaria. Eu teria que me sentar e ouvi-lo. Quando fiz isso, ele largou o meu braço e tossiu:
- Ninguém me ouve. Eu sei porque ninguém me ouve. Eles manipulam as pessoas. Todos estão sendo manipulados. Eu sou o único a perceber isso. É por isso que estou assim. Foi por isso que eles me fizeram perder o emprego, a esposa...
Ele tossiu e sorriu dentes estragados e carne podre.
- Nem sempre eu fui assim, moço. Nem sempre eu fui um mendigo fedido. Eu era uma pessoa normal... até descobrir a verdade... Ouça, estamos sendo invadidos. Eles estão nos preparando para a vinda do grande besouro. O grande besouro, ouviu? Estão usando aquilo ali.
O mendigo apontou um dedo sujo para a televisão na lanchonete da rodoviária. Lá dentro, a imagem de uma mulher tremia em tubos catódicos.
- Eles estão nos preparando, nos transformando em carneirinhos que seguem para o abate sem perguntar para onde estão indo. Eles fazem isso em todos os planetas-alvo. Depois invadem e retiram tudo que há de valioso no planeta. Os habitantes locais são transformados em escravos e colocados para trabalhar até a morte. São como gafanhotos. Por onde passam, destroem tudo. Depois deles, o caos. Não me pergunte como eu sei isso. Eu simplesmente sei. Um dia acordei e descobri o plano deles... e começou a minha ruína. Agora vivo assim. Eles enviam raios para me provocar dor de cabeça, fazem com que minha pele coce... querem me torturar, mas logo irão me matar. Escreva o que estou falando, eles vão me matar. De um jeito ou de outro, vão me matar. E ninguém vai saber o que está acontecendo. Oh, meu Deus, que coceira...
Ele colocou a mão sob a roupa e começou a se coçar. Fez isso e levantou, para meu alívio. Parecia ter esquecido de mim. Eu o acompanhei com o olhar, temendo que ele voltasse, mas não fez isso. Continuou caminhando na direção da saída, preocupado apenas em coçar-se.
Mal colocou os pés na rua, foi atropelado por um carro. Com o impacto, seu corpo pulou para cima do capô. O motorista parou e saiu do carro, preocupado, mas já não havia muito o que fazer. O pobre coitado estava caído no chão, morto, as mãos sobre o corpo como se quisessem ainda se coçar até o último suspiro.
Na época considerei que o mendigo um louco, mas não demorou muito para que suas palavras fizessem sentido. Eles estão entre nós e a moça da televisão nos olha com seu olhar tranquilizador.
Eu vou até a janela e olho para cima. A nave é imensa a ponto de colocar a maior parte de Curitiba sob a sombra. Dizem que há uma dessas sobre cada uma das grandes cidades do país.
Eu a observo e um calafrio percorre a minha espinha: ela tem o formato de um besouro!
Esse conto foi originalmente publicado na antologia Invasão Alienígena, organizada por Ademir Pascale. Para baixar o e-book, clique aqui.
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