quinta-feira, fevereiro 19, 2015

O mundo petrificado




A questão da realidade sempre foi um dos meus temas mais caros. Escrevi contos, uma novela (O anjo da morte), artigos acadêmicos e esse é o tema principal de minha tese. Afinal, o que é o real? Como podemos distingui-lo da ficção, da fantasia e até de alucinações? Essas são questões que me interessam e que norteiam tanto minha produção literária quanto acadêmica.
Vasculhando minha biblioteca encontro o livro que provavelmente angariou meu interesse pelo assunto. O pequeno livreto de bolso, em papel jornal, foi comprado em um sebo de Curitiba, no dia 04 de janeiro de 1995. O título original era “The New Words of Fantasy”, mas a antologia, organizada por Terry Carr, foi batizada no Brasil como “A era de Aquário”, provavelmente em referência à característica new age, comum a todos os contos.
Dos textos, li alguns e esqueci e simplesmente pulei outros. Um, entretanto, me chamou atenção: “O mundo petrificado”, de Robert Shecley. O texto fala de um homem, Lanigan, que acorda de um sonho cada vez mais recorrente e terrível. Ele teme que este mundo de sonhos substitua o mundo real e é essa perspectiva que o apavora. Nós o acompanhamos em sua ida ao psicólogo. O escritor, habilidoso, vai nos dando pequenas pistas: o relógio de ouro torna-se de chumbo, as horas simplesmente pulam, o concreto se liquefaz sob os pés do vizinho, uma torrente de água corta sua rua e um barco a vapor com chaminés amarelas cruza os céus.
O psicólogo se vê diante de um desafio, única solução possível de cura: provar para o paciente que o mundo em que vivem é real, mais real do que seu sonho que vai cada vez mais tomando conta da realidade.
“Sabemos que uma coisa existe porque nossos sentidos nos dizem que ela existe”, explica o psicólogo. “Como constatamos a retidão de nossas observações? Comparando-as com as impressões sensoriais de outros homens”. Ou seja: a realidade é aquilo que a maioria das pessoas concorda que é.
Lanigan desmaia e acorda. Quando sai do consultório, percebe que o ciclo se completou: finalmente, o mundo terrível de seu sonho se tornou o mundo real. Um mundo petrificado, sem vida. Nele, o banco da esquina seria sempre um banco, nunca se transformaria num mausoléu, num avião ou nos ossos de um monstro pré-histórico. Seu relógio seria sempre de ouro e jamais se transformaria em chumbo. Barcos jamais singrariam o céu verde ou púrpura.
A habilidade do escritor nos tira o chão sob os pés, fazendo com que reflitamos sobre o que é o real, pois nos identificamos com o protagonista e acreditamos, durante todo o conto, que as torrentes de água singrando ruas, ou o morcego que sai do paletó do psicólogo eram alucinações, quando na verdade, eram aquilo que o homem enxergava como real, ou o que era real em uma realidade paralela.
Bons textos mexem conosco, nos fazem olhar perdidos para o nada, absortos com pensamentos que nunca tivemos ou ideias que nunca cogitamos. O pequeno conto de Robert Shecley cumpre muito bem essa função.

quarta-feira, fevereiro 18, 2015

Buenos Aires: guia de viagem

Visitar Buenos Aires pode ser uma experiência interessante. Embora seja um país colado ao nosso, tem grandes diferenças culturais. Recentemente tive a oportunidade de conhecer a capital portenha. Compartilho aqui algumas de minhas impressões. 

A primeira coisa que chama atenção do turista é a diferença gastronômica. A comida argentina é muito diferente da brasileira. Ao contrário do Brasil, onde todo prato vem com acompanhamento de arroz e feijão, na Argentina o arroz é pouco comum. Feijão é praticamente impossível de ser encontrado (eu não vi em nenhum restaurante). Um prato típico argentino é carne com batata frita. E não é pouca carne: é um pedaço enorme, que ocupa quase todo o prato. Se for churrasco, é carne repleta de gordura. Os amantes de carne devem adorar. 

Outra diferença cultural é no café da manhã. Num hotel brasileiro, o café da manhã normalmente inclui frutas cortadas em fatias (melão, abacaxi, mamão, manga, etc), sucos naturais, café, leite, pão, bolos, queijo e presunto. Um café da manhã argentino é baseado principalmente em doce. Tudo é doce. De fruta, apenas sala de fruta, com muita laranja e um outro pedaço de outra fruta (diga-se de passagem, é uma laranja deliciosa, mas você enjoa depois do segundo dia). Os hotéis colocam na mesa até algo parecido com brigadeiros (eu não experimentei). Para um brasileiro comum é muito açúcar, inclusive no suco. Uma boa dica é experimentar o medialuna (um folheado no formato de meia-lua), desde que ela não seja caramelizada. Diabéticos devem ter sérios problemas na Argentina. 

Na cidade existem atrações básicas, o tipo de coisa que nenhum turista pode perder. Na minha opinião, a feira de San Telmo entra nessa categoria. É uma feira enorme que acontece aos domingos, próxima à casa rosada, que pega várias ruas. Na feira é possível comprar os mais variados produtos argentinos, artesanato, livros ver shows de tango. Sem falar que há vários restaurantes em volta. É programa para o dia inteiro. Na feira de San Telmo fica o famoso banco de praça com a personagem Mafalda, parada obrigatória para os turistas. Mas prepare-se para a fila: sempre há muita gente querendo fotografar com a personagem. Um pouco mais abaixo há uma estátua de Izidoro, personagem clássico da HQ portenha, menos famoso que a Mafalda, mas que vale uma conferida. Aliás, na esquina da estátua da Mafalda há uma lanchonete que vende lanches temáticos baseados no universo criado por Quino e lembranças. 

Feira de San Telmo.


Aliás, Mafalda é uma verdadeira febre na Argentina. Na feira é possível encontrar de tudo relacionado à personagem, desde livros de tiras a camisas e travesseiros. 

Para os fãs de quadrinhos vale conhecer o personagem Eternauta, que se tornou símbolo da luta contra a ditadura depois que seu autor, o roteirista Hector Oeterheld, foi morto pela ditadura militar. Na feira é fácil achar livreiros vendendo álbuns do Eternauta e até camisas do personagem. 

 

Outra local famoso é a Ricoleta. A praça tem uma pequena feira (com menos variedade e preços bem mais altos que a feira de San Telmo), mas o que vale mesmo é uma visita à igreja e principalmente ao belíssimo cemitério. Os túmulos são verdadeiras obras de arte. É ali que está o corpo de Evita, mas não há qualquer identificação específica. Ocorre que ele foi enterrado junto com seus parentes. Assim, procure pelo túmulo da família Duarte, seu sobrenome de solteira. 

Cemitério da Rocoleta.


Gostando ou não do peronismo, vale uma visita ao Museu Evita. É o melhor museu que visitei na capital portenha e uma aula de história. Implantado numa casa que servia de abrigo para mulheres desamparadas (uma casa de passagem), o museu foi estruturado de forma que você vai entrando de sala em sala e conhecendo a vida de Evita desde sua infância até sua morte. É possível, por exemplo, ver trechos de seus filmes, ouvir áudios de seus discursos, conhecer suas obras sociais. O Museu é acima de tudo o retrato de uma história de amor. Peron era tão apaixonado e fascinado por Evita que, ao ser eleito presidente da Argentina pela primeira vez, fez questão de tirar a foto oficial ao lado de sua esposa. A imagem de seu último discurso quando Evita, já com câncer, encosta a cabeça no peito do marido, é emocionante. O uso de recursos áudio-visuais aliados à própria estrutura da casa criam uma espécie de imersão que poucas vezes vi em um museu. 

Museu de Belas Artes

 

Próximo da Ricoleta fica o Museu de Belas Artes, que vale uma visita. Embora o acervo não seja tão impressionante quanto o do MASP, por exemplo, há várias obras importantes da história da arte. O Museu vale inclusive pelo próprio prédio. Aliás, para quem gosta de arquitetura, Buenos Aires é um paraíso. O centro histórico é marcado por belíssimos prédios nos mais variados estilos, do neo-clássico ao gótico, passando pelo art-noveau. É uma verdadeira miríade de estilos. O Congresso Nacional, todo em estilo neo-clássico, por exemplo, é visita obrigatória, mesmo que seja apenas para observar sua fachada. 

Não há como falar em Buenos Aires sem falar em tango. Muitos hotéis oferecem pacotes que incluem translado, jantar (com entrada, prato principal e sobremesa) e show. Os preços são acima de 160 reais por pessoa. Deve agradar quem gosta muito de carne. Pessoalmente, não achei que jantar valeu a pena. O show, por outro lado, é realmente maravilhoso. 

Mas, para quem quiser apenas o show, uma opção melhor é o Centro Cultural Jorge Luís Borges, que oferece espetáculos de tango ao preço em média de 70 reais por pessoa. Aliás, o local vale a visita. Além de mostras de arte, há uma exposição dedicada ao mais importante escritor argentino e um dos mais importantes do século XX, onde é possível ver curiosidades, como seus livros, um desenho infantil (de um tigre) e outros. 

Ainda sobre tango, é possível ver shows gratuitos no Caminito. O local tem várias galerias de artesanato e restaurantes e bares que oferecem espetáculos o dia inteiro. O preço da comida é salgado, mas é possível ver as apresentações de tango mesmo sem ser cliente, já que eles acontecem na frente dos restaurantes. Outra atração é o Museu Histórico Nacional, bastante amplo, instalado num prédio de belíssima arquitetura. O único defeito é que o Museu se dedica apenas a fatos antigos, da época da independência da argentina. Fatos como a ditadura e a guerra das Malvinas são só mencionados. 

Museu de Ciências Naturais.


Há ainda o Museu Argentino de Ciências Naturais com uma incrível coleção de fósseis de dinossauros. Um aspecto negativo é que é um museu do tipo antigo, contemplativo. Não há, por exemplo, toda a interatividade do Museu de ciências da PUC, em Porto Alegre, por exemplo (depois que voltei para o Brasil descobri que existe o Museu de Ciências, no bairro da Ricoleta, que tem essa característica de interatividade). 

Para quem gosta de ler, Buenos Aires é um paraíso. Há diversas livrarias e muitos sebos. A avenida Corrientes (uma das que cortam o Obelisco) tem praticamente um sebo ou livraria a cada quarteirão, ou mais. Eu consegui, por exemplo, vários números da coleção do jornal Clarin de clássicos dos quadrinhos, além de livros Jorge Luís Borges em capa dura a preço baixo (menos de 10 reais cada). 

Mas, como toda cidade, Buenos aires tem seus aspectos negativos. Um deles são os golpes aplicados contra turistas. O mais conhecido deles é o do câmbio. Em ruas de comércio, como a Florida, é possível encontrar diversas pessoas oferecendo câmbio. Consta que muitos deles trocam real, dólar ou euro por pesos falsos. Assim, o ideal é fazer a troca em casas de câmbio oficiais e nunca trocar muito dinheiro de uma vez só. Também é comum se aproveitarem da diferença da língua e da moeda para passarem troco errado ou cobrarem produtos que não foram consumidos (aconteceu comigo). 

Até mesmo o translado hotel-aeroporto pode ser um problema. No meu caso me foi oferecido translado pelo próprio hotel, ao preço de 330 pesos. Paguei no balcão do hotel e recebi um recibo que, vendo depois, não tinha nem mesmo o nome do atendente do hotel. No dia da viagem, ao chegarmos no aeroporto de Ezeiza, o motorista (não era um taxi e não havia qualquer identificação no veículo) me disse que eu tinha que lhe pagar 450 pesos. Mostrei o recibo do hotel e ele disse que não tinha nada a ver com o que eu havia pago ao hotel e que só liberaria as malas diante do pagamento de 450 pesos. Depois que paguei, pedi recibo, ao que ele incialmente recusou. Depois de uma longa discussão (e a preocupação de perder o vôo), consegui um recibo que constava apenas o primeiro nome do motorista e nenhuma outra identificação.

Minha sugestão para quem viaja para Buenos Aires é não usar o serviço de translado do hotel. O ideal é combinar com um taxista credenciado (os taxis oficiais têm uma placa com todas as informações sobre o veículo e o condutor), pagar antes da corrida e pedir recibo. Isso pode evitar muita dor de cabeça. 


Texto originalmente publicado no Digestivo Cultural.

HQM Editora lança coletânea com as tiras mais engraçadas do boêmio mais escroto dos botecos!

 
Prepare-se para dar muitas risadas! O livro “Edibar”, do cartunista Lucio Oliveira, é uma coletânea de mais de 250 tirinhas que fazem o maior sucesso na internet desde 2012. Cada tira ultrapassou os mil compartilhamentos no Facebook entre internautas brasileiros, angolanos, moçambicanos, cabo-verdianos e portugueses.“Parece que as pessoas que acompanham a página ficam de plantão esperando uma nova postagem do Edibar", ironiza o autor.
 
Mais eficaz que Rivotril, “Edibar” e companhia saltam das telas dos computadores para as páginas deste volume com trivialidades do dia a dia, comprovando do começo ao fim que rir ainda é o melhor remédio. O livro traz prefácio do jornalistaMarcelo Alencar.
 
Lucio Oliveira nasceu em Apucarana, norte do Paraná, em 1973. Cresceu debruçado sobre papéis e lápis de cor. Trabalhando como desenhista desde 1986, já passou por várias etapas como cartunista, ilustrador e chargista, além de ter ministrado aulas de desenho técnico no Sesi e Senac. Viveu por dois anos na Inglaterra onde cursou Arquitetura e mergulhou fundo no mundo das artes plásticas. Hoje Lucio dedica-se exclusivamente na produção das tiras e ilustrações de Edibar e companhia para vários jornais e revistas espalhados por todo o Brasil.
 
Já nas melhores bancas e livrarias de todo o Brasil. 

Caso não encontre na banca mais perto de sua casa, adquira pela internet:
- Comix Book Shop: http://zip.net/bhqKzQ
- Loja HQM: http://zip.net/bmqMMq

A loja física da Comix fica na Alameda Jaú, 1998, em São Paulo. Fone 11-3088-9116.

Participe você também da página do Edibar da Silva no Facebook, que já conta com mais de 380 mil seguidores: https://pt-br.facebook.com/edibardasilva.
 
Edibar – As tiras mais engraçadas do boêmio mais escroto dos botecos
De Lucio Oliveira
Formato 16,5 x 24 cm

quarta-feira, fevereiro 11, 2015

O que é um bregueiro?

Ser bregueiro está muito além de gostar de um determinado tipo de música. A música apenas faz parte do pacote. Ser bregueiro é uma filosofia de vida, um modo de ser baseado no desrespeito ao outro. O bregueiro jamais escuta música em som baixo. O bregueiro jamais joga lixo no lixeiro, mas no quintal do vizinho, na rua ou no rio. O bregueiro jamais usa fone de ouvido, especialmente se estiver no ônibus ou no avião. O bregueiro nunca foi educado pelos pais (ou foi educado para sempre se dar bem à custa dos outros) e desconhece o significado das palavras "Por favor", "Obrigado", "Com licença". O bregueiro é um adepto da lei de Gerson e acredita que sempre se deve levar vantagem em tudo.

Eventos acadêmicos de quadrinhos

Houve uma época em que a academia tinha grande preconceito contra quadrinhos. Pesquisadores torciam o nariz para estudos sobre a nona arte e eram poucos os TCCs, dissertações e teses sobre o assunto. Hoje em dia, a pesquisa sobre o assunto se torna cada vez mais sólida, não só com muitos trabalhos, mas principalmente com muitos congressos com simpósios voltados para quadrinhos. Participar desses encontros é sempre uma experiência única, especialmente para quem está iniciando na área. Além da grande variedade de trabalhos apresentados, de temas diversos, também vale a pena pela interação com outros pesquisadores.
Para facilitar para quem pretende participar, relaciono abaixo alguns eventos de quadrinhos:



3as Jornadas Internacionais de histórias em quadrinhos - Na USP, em São Paulo, de 18 a 21 de agosto de 2015. Conheça o site do evento. Deadline 13.04.2015

II Encontro da Aspas - Associação dos pesquisadores em arte sequêncial. Em Leopoldina, de 29 a 30 de maio de 2015. Conheça o blog da ASPAS

 5º colóquio Filosofia e Quadrinhos (Rio de Janeiro). Deadline 31.01.2015. Data do evento não divulgada ainda.  

terça-feira, fevereiro 10, 2015

Uma breve história do quadrinho paraense


Capitão Gralha finalmente terá suas histórias republicadas

Capitão Gralha, a genial criação de Francisco Irwenten, pioneiro dos super-heróis no Brasil, finalmente será republicada, agora pela editora Quadrinhópole. O álbum será lançado no Festival Internacional de Quadrinhos.

Rua de lazer?

Ontem tivemos uma rua de lazer aqui na rua. Em qualquer lugar do Brasil, rua de lazer é uma oportunidade de esportes, cultura, jogos, brincadeiras com as crianças, leitura, contação de histórias. Minha esposa chegou até mesmo a contribuir, achando que era algo assim e até pesquisou aqui procurando jogos de dama e xadrez para as crianças. No final, a tal rua de lazer era apenas uma aparelhagem, muita música alta e cerveja. Minha irmã fez o aniversário da minha sobrinha aqui e os convidados nem mesmo podiam conversar entre si. 
Moro há quinze anos e já tentei todos os métodos legais. Já cansei de chamar a polícia ambiental, que nunca vem e quando vem, pede desculpas e pergunta se pode baixar o volume. Já fui no Ministério Público, já fui na polícia. Já mudei de casa, já mudei de bairro. Tudo que consegui foram várias ameaças e o parabrisa do meu carro quebrado por um vizinho que não gostou de eu tê-lo denunciado. A situação não chegaria a isso se não houvesse uma conivência de grande parte da população e principalmente das autoridades. 

Sabe-se que políticos eleitos são aqueles favoráveis a essa situação ou, no mínimo, omissos. São quinze anos tentando e nada. Sinto-me refém dos bandidos bregueiros. Refém em minha própria casa. O que me resta é reclamar, na esperança, cada vez mais vã, de que um dia as pessoas se conscientizem e tentem mudar essa situação e eu deixe de ser uma voz no deserto. Mas sempre que reclamo sou visto como o traidor, a pessoa que não gosta de onde mora, como chato, preconceituoso e rabugento. Para os bregueiros eu sou apenas um chato que deveria se acotumar que as coisas são assim mesmo e nunca vão mudar.

sábado, fevereiro 07, 2015

O cão da meia-noite

No final do século XIX e início do século XX a literatura brasileira era dominada pelos parnasianos. Um dos princípios dessa corrente literária era a linguagem empolada, difícil, afastada do populacho. Monteiro Lobato foi o primeiro a se revoltar contra essa maneira de escrever - a ponto de se recusar a ser chamado de escritor, pois associava o nome à "alta literatura" e, por tabela, aos parnasianos. Para Lobato, a literatura devia falar a língua do povo, repetir suas gírias e modos de dizer. Posteriormente, essa proposta seria levada a cabo pelos modernistas, mas ninguém conseguiu encarnar a proposta de Lobato de maneira tão completa e perfeita como Marcos Rey. O grande autor de livros juvenis, cujo pai era encadernador na gráfica lobatiana, conseguiu como ninguém apanhar o jeito de falar de toda gente e transformá-lo em palavra impressa. Ótimo exemplo disso é o livro de contos O cão da meia-noite (Global editora, 216 páginas). 

No volume, Rey conta histórias de pessoas normais que acabam sendo envolvidas em algum tipo de drama. Algo em comum em todos eles é iniciar com um episódio cotidiano, pitoresco (como amigos que se encontram num bar, ou um homem que resolve adotar um cachorro), que vai se tornado mais e mais complexo ao correr das páginas. 

No primeiro conto, "Eu e meu fusca", vemos o que parece ser o relato apenas de um garoto viciado em seu carro, mas que logo se torna uma história policial no melhor estilo serial killer (provavelmente um dos primeiros textos ficcionais sobre o assunto escritos no Brasil). Todo narrado em primeira pessoa, o texto repete as gírias das ruas da década de 1960.

Em "O bar dos cento e tantos dias" um redator publicitário desempregado conhece um boêmio que lhe dá dicas de empregos (quase sempre furadas) enquanto lhe ensina a "observar o espetáculo da cidade" e seus personagens - um exercício que certamente o autor fez à exaustão, a se tirar pela fauna presente nesse livro. 

No conto que dá título ao livro vemos um homem que encontra um cachorro de rua e resolve leva-lo para casa e cuidar dele. Ocorre que se trata de um cão de rua, incapaz de viver preso. O que começa como um simples gesto de carinho acaba se tornando uma obsessão assassina e acabamos tendo mais uma história policial. Para entender "A escalação" é interessante saber que Marcos Rey foi roteirista de cinema, mais especificamente da pornochanchada, o que lhe permite falar com muita propriedade do assunto. No texto, um produtor cinematográfico reúne o elenco de seu novo filme, mas joga psicologicamente com cada um deles de modo a sempre ganhar. Ali temos desde o roteirista que aceita qualquer salário porque é perseguido pela ditadura e ninguém quer lhe dar emprego até a atriz decadente em busca de um papel que a traga de volta à cena. 

Muito difícil escolher o melhor conto num livro de pérolas como esse, mas se fosse necessário, eu escolheria "O adhemarista". O mote é simples, quase irrisório: um taxista que faz campanha para Adhemar de Barros num texto narrado por um amigo igualmente taxista. Nada demais. Mas Marcos Rey nos revela neste conto uma verve psicológica, um talento para coletar tipos e a capacidade de escrever como as pessoas de determinada época falavam de maneira ímpar. Saca só: 

"Aquela foi a semana mais quente que o Moa (Moacir) viveu na puta da vida. Nós, do ponto, é que sabíamos. Quente, digo, em toda parte. No carro, na rua, na sede do partido, na Lila, em casa. O homem estava envenenado, com fé em Deus e pé na tábua, dormindo só uma três horas por noite. Foi também a semana do papo, da lábia, da saliva, dia e noite de campanha, amarrando votos, aliciando os indecisos. Nunca vi na life um cabo eleitoral com tanta corda, tanta garra, tanto embalo".

Não bastasse a ótima análise do tipo fanático, que transforma política em torcida de futebol e coloca a eleição acima de tudo, Marcos Rey ainda constrói sua narrativa como um verdadeiro suspense policial, em que o mistério não é saber quem é o assassino, mas quem irá ganhar a eleição. 

"Soy loco por ti, América!", repete o tema de "A escalação". Nele, vemos uma festa de granfinos e estrelas do cinema e da televisão no dia anterior ao golpe militar. Regada a lança-perfumes, a festa, que começa tímida, torna-se um verdadeiro circo, com direito a gay enrustido, que de repente se interessa por uma atriz, para desespero de seu parceiro assumido, a atriz que humilha o produtor que a recusou antes da fama e anfitrião que filma tudo. 

Em "Traje de rigor" encontram-se no bar quatro homens muito diferentes: um publicitário (cujos slogans, como "Mil a vista e o resto a perder de vista", lhe renderam um ótimo salário), um jornalista decadente, que parece interessado unicamente em vender um revólver para qualquer um que encontre, um velho cantor igualmente decadente e um homem de família, com filho doente em casa, que quer apenas levar uma lata de leite em pó para casa. Esses quatro juntam-se numa inesperada jornada pela noite de São Paulo que a vai se revelando mais e mais surpreendente a capa página (o homem de família, por exemplo, acaba se mostrando o mais bôemio). 
Finalmente, em "Mustangue cor-de-sangue" acompanhamos o relato de um redator de um programa infantil estrelado por um anão que no dia-a-dia é um devasso e, na ocasião, resolve transar justamente com a vedete pela qual o escriba é apaixonado. O conto oscila entre as tentativas do anão e as fugas da moça, interessada em um contrato na TV e os planos do intelectual para salvá-la e, ao mesmo tempo, tirar sua casquinha da moça. Daria uma ótima pornochanchada, como muitas das que foram escritas por Marcos Rey para a boca do lixo na década de 1970. Aqueles que, quando crianças e adolescentes se deliciaram com as histórias de Marcos Rey para a coleção Vaga-lume irão se deliciar ao descobrir esse outro lado do escritor.

Texto originalmente publicado no Digestivo Cultural.

sexta-feira, fevereiro 06, 2015

A jornada do herói

Publicado em 1949, O herói das mil faces foi um livro que revolucionou o estudo sobre as mitologias e religiões. Influenciado por Freud e Jung, Joseph Campbell vasculhou dezenas de culturas em busca de semelhanças entre seus mitos e os significados dos mesmos. O resultado foi esquematizado em doze passos, seguidos pela maioria dos protagonistas das narrativas analisadas. O resultado, além do impacto sobre o estudo mitológico, teve uma consequência inesperada: esse esquema foi usado por George Lucas para construir o roteiro de Guerra nas Estrelas. Esse fato deixou claro que o livro servia não apenas para explicar mitologias antigas, mas funcionava bem para analisar narrativas contemporâneas. 

O primeiro passo do herói é o chamado à aventura. O herói é tirado de sua vida pacata e sem perigos por algum acontecimento que o chama à ação. "Um erro - aparentemente um mero acaso - revela um mundo insuspeito, e o indivíduo entra numa relação de forças que não compreende, que estão acima dele". Esse chamado, que pode ser uma simples aventura, como em O Senhor dos Anéis, ou uma busca religiosa, esconde uma verdade sobre o despertar do eu. É também um momento de separação dos pais e de um novo renascimento, que levará à vida adulta. O agente que anuncia a aventura pode ser sombrio ou aterrorizador, ou uma figura misteriosa. Em Promethea, de Alan Moore (talvez a história em quadrinhos que melhor ecoa questões mitológicas), a heroína é atacada por um Smee, uma espécie de demônio, o que a faz se transformar na heroína mitológica. 


Vale lembrar que, de início, o herói recusa o chamado e esse é o segundo passo. Não por acaso, Robinson Crusoé inicia com uma preleção sobre os benefícios de uma vida de classe média, sem aventuras ou dramas. Segundo Campbell, "a recusa é essencialmente uma recusa a renunciar àquilo que a pessoa considera interesse próprio". Vale lembrar, em Guerra nas Estrelas, a indecisão de Luke em seguir a aventura ou permanecer na vida pacata com seus tios. Estes, aliás, o advertem sobre os perigos da jornada. Na maioria dos mitos, o herói adere ao chamado, seja Frodo sendo obrigado a fugir com o anel, seja Luke impulsionado a salvar a princesa, seja Robinson embarcando em um navio. Aceita a aventura, o herói geralmente conta com um auxílio sobrenatural. Os jovens de Caverna do Dragão, por exemplo, contam com o auxílio do misterioso Mestre do Magos. Esse guia fornece os amuletos e os conselhos que o herói precisa para continuar a jornada, mas, como o Mestre dos Magos, não interfere diretamente na aventura. Em Guerra nas Estrelas esse papel é exercido por Obi Wan Kenobi e posteriormente por Yoda. A jornada é do herói e é ele que deve seguir esse caminho. 
 


O quarto passo é a passagem pelo limiar. Em Promethea esse momento é retratado na ida da personagem para a Imatéria. Em Crônicas de Narnia é o guarda-roupa, que dá passagem a todo um universo mágico. "Além desses limites, estão as trevas, o desconhecido e o perigo, da mesma forma como, além do olhar paternal, há perigo para a criança", escreve Campbell. O limiar representa a ida para o inconsciente, repleto de libido e de ameaças de violência. EmPromethea, a protagonista, ao passar para a Imatéria, encontra uma chapeuzinho vermelho que segura uma arma, fala palavrões e um imenso e apavorante lobo. Todos imagens arquetípicas. 

O quinto passo é a entrada no ventre da baleia, as provações e encontro com os inimigos. Nessa fase é comum o autoaniquilação. O corpo do herói pode ser cortado, desmembrado e ter suas partes espalhadas pelo mundo, como Osíris, que é morto por seu irmão Set. Essa fase representa o renascimento espiritual do herói, o desapego do ego, uma vez que essa é uma jornada de transformação. Nessa fase também é comum encontrar metáforas da mãe ou o pai, muitas vezes transformados em vilões. Luke, por exemplo, descobre que Darth Vader é seu pai. Como a jornada é um processo de individuação, o herói precisa matar a influência dos pais sobre ele. 

O passo seguinte é a apoteose, no qual o herói obtém vitórias. Muitas vezes esse passo é representado por um casamento sagrado, como Flash Gordon se casando com Dale Arden, pela sintonia com o pai-criador, pela própria divinização (Osiris sendo recomposto). Se as forças se mantiverem hostis a ele, essa fase é representada pelo roubo por parte do herói daquilo que ele foi buscar, como Prometeu roubando o fogo. 

Terminada essa etapa, cabe ao herói voltar para casa. Pode ser uma volta simples, abençoada pelos deuses, ou uma volta difícil, como a de Ulisses ou a dos protagonistas da Caverna do Dragão (um mito que ficou incompleto, uma vez que eles nunca retornaram). 

Em todo caso, o herói volta transformado e maduro e essa transformação se reflete no mundo, como Promethea provocando o fim do mundo que conhecemos e, com isso, construindo um mundo melhor.

Em suma: o herói das mil faces se torna essencial para os que querem entender melhor as mitologias, antigas e novas, apesar de Campbell nem sempre ser direto e muitas vezes se perder em alguns discussões não diretamente relacionadas ao tema. Apesar disso, o livro se destaca pela leitura intrigante e pela prosa fluída de seu autor, que exemplifica suas ideias com mitos de diversas parte do globo.


Texto originalmente publicado no Digestivo Cultural.