sábado, novembro 25, 2017

Neil Gaiman – o escritor dos sonhos


Até há pouco tempo, as histórias em quadrinhos eram consideradas uma subliteratura e acreditava-se que nenhum escritor sério se ocuparia de escrever gibis. O sucesso de Neil Gaiman, um escritor vindo dos quadrinhos, tem mudado a forma como as pessoas encaram essa nova mídia.
Gaiman fez parte de uma geração de artistas britânicos que, na segunda metade da década de 1980, sacudiu os comics americanos. Naquela época, vários artistas, entre desenhistas e roteiristas, invadiram a DC Comics e, embora trabalhassem com personagens menores, fizeram com que eles vendessem tão bem quanto as maiores estrelas da casa, como Batman e Superman.
Neil Gaiman sempre foi fã de quadrinhos e escrevia textos, em jornais locais, sobre o assunto. Quando soube que os editores da DC Comics, uma das mais importantes editoras dos EUA, estavam visitando a Inglaterra em busca de talentos, aproveitou a chance para mostrar seu trabalho em conjunto com o amigo Dave Mckean. Para isso, ele escolheu uma personagem obscura da década de 1970, que não interessava a nenhum artista famoso na época: a Orquídea Negra.
A minissérie de luxo Orquídea Negra se tornaria um sucesso e revolucionaria o mercado com sua arte fotográfica e texto poético; mas, antes que fosse publicada, os editores sugeriram que Gaiman escrevesse um título mensal. Gaiman começou então sua carreira em Sandman, sendo Dave Mckean responsável pelas memoráveis capas. A primeira seqüência delas mostrava uma prateleira de madeira na qual o artista juntava cacarecos, desenhos e colagens. Ninguém nunca tinha visto aquilo numa história em quadrinhos e muitos certamente compraram Sandman pela primeira vez por causa das capas. Mas o que fez com que eles continuassem a comprar foi o texto excelente de Gaiman.
Em Orquídea Negra e Sandman, Neil Gaiman elevou os quadrinhos a um nível literário poucas vezes alcançado. Qualquer um que botasse os olhos naqueles gibis sabia que estava diante de um grande escritor. O autor trazia conceitos, técnicas e abordagens da literatura, fazendo com que intelectuais se tornassem fãs de Sandman. Até mesmo as mulheres, que normalmente são avessas aos comics americanos, acabaram se rendendo a Sandman. Nas filas de autógrafos, especialmente no Brasil, havia geralmente mais mulheres que homens.
O trabalho em Sandman angariou para Gaiman vários prêmios literários. Assim, muitos se perguntaram como Gaiman se sairia num livro.   


Lugar nenhum
A primeira incursão de Gaiman na literatura foi uma parceria com Terry Pratchett no livro Belas maldições (1990), lançado no Brasil pela Bertrand Brasil. Nessa obra, um anjo e a serpente que tentou Eva no Paraíso são mandados à Terra para preparar o apocalipse, mas acabam gostando tanto do planeta que resolvem sabotar o plano. Interessante que os dois autores atualizaram vários conceitos, como por exemplos os quatro cavaleiros do apocalipse. Estes trocaram os cavalos por motos. Guerra é uma bela mulher que distribuiu seu atributo por onde passa; Fome é um executivo do ramo dos alimentos, que criou uma marca de comida que não engorda, mas também não alimenta. Peste aposentou-se com a invenção da penicilina, dando lugar à Poluição.
A primeira incursão solo de Gaiman na literatura foi Lugar Nenhum, escrito em 1996 e lançado no Brasil em 2007 pela Conrad.
Lugar Nenhum é adaptação de uma série de TV escrita por Gaiman para o canal britânico BBC. O personagem principal é Richard Mayhew, um jovem escocês que leva uma vida normal em Londres. Tem um bom emprego, mas meio chato, e namora uma garota ideal, embora meio chata.
Mas um dia ele encontra uma garota ferida na rua e, após socorrê-la, sua vida muda completamente. Seus colegas e até sua namorada o ignoram, como se ele não existisse, e seu apartamento é alugado para estranhos. Ele não consegue nem mesmo pegar um táxi. É que ele passou a fazer parte da Londres de Baixo, onde vivem os tipos mais excêntricos: assassinos letrados, monges negros, nobres decadentes, falantes de ratês e muitos outros. Agora, para recuperar sua vida de volta, Richard precisa ajudar Door, a garota esfaqueada, a descobrir quem matou sua família.
Gaiman preferiu, em seu primeiro romance, seguir a mesma linha fantástica que o caracterizou em Sandman. Ele decidiu pisar em terreno conhecido e que domina como ninguém. Vale lembrar que muitos afirmam que Harry Potter é uma cópia de Os livros da magia, obra em quadrinhos escrita por Neil Gaiman.
Se em Sandman e Orquídea Negra, Gaiman trouxe para os quadrinhos técnicas e temas literários, em Lugar Nenhum ele faz o caminho inverso. Trouxe para a literatura os avanços alcançados por ele nas HQs As semelhanças narrativas são óbvias.
 Está ali, também, em Lugar Nenhum, os pequenos contos em meio às histórias maiores, que caracterizavam o roteiros de Gaiman. Em Lugar Nenhum acompanhamos, por exemplo, a história de Anaesthesia, uma garota que acompanha Richard pelo perigoso caminho até o Mercado Flutuante, onde ele deverá se encontrar com Door. A mãe de Anaesthesia ficou louca e ela foi mandada para morar com uma tia, que morava com um homem: "Ele me machucava. Fazia outras coisas também. No fim, eu contei pra minha tia e ela começou a me bater. Disse que eu estava mentindo. Disse que ia me entregar para a polícia. Mas eu não estava mentindo. Então eu fugi. Era meu aniversário". Com o tempo a menina foi se tornando invisível às pessoas, e um dia, quando acordou, fazia parte da Londres de Baixo.
A história da menina mostra a preocupação de Gaiman de construir um perfil até mesmo para os personagens menores. Cada um tem sua história de vida, sua personalidade e até seus cacoetes. As descrições detalhadas fazem com que, com o tempo, o leitor comece a ver essa outra Londres como um mundo ainda mais real do que aquele em que vivemos. São poucos os escritores que conseguem nos mergulhar assim em um mundo construído por eles.

Contos
Gaiman é um ótimo contista, o que faz de seus livros de contos itens obrigatórios na coleção de qualquer fã. No Brasil foram lançados duas dessas coletâneas.
Em Fumaça e espelhos (lançado no Brasil pela Via Lettera), Gaiman mostra todo o seu potencial para histórias fantástica, que prendem a atenção do leitor. Até mesmo uma pequena narrativa, incluída na introdução, destaca-se. Nela, um casal recebe de presente de casamento uma história em um envelope. Trata-se de uma perfeita descrição da cerimônia. Quando teve o primeiro filho, a esposa abriu o envelope e o que estava ali era uma versão distorcida dos dois anos felizes que os dois haviam passado juntos. No papel, a mulher havia recebido uma mordida na face, resultando numa cicatriz muito feia. E começou a beber para suportar a dor. A narrativa vai avançado e logo o leitor desconfia que o presente é exatamente esse: tudo de ruim que poderia acontecer na vida do casal acontece ali, na história.
O conto dá a tônica da coletânea.
Outro grande destaque é Procurando a garota. Nesse, um rapaz de 19 anos se apaixona por uma menina em uma foto da Penthouse. Charlotte era diferente das outras. Era sexo. Vestia sexualidade como um véu translúcido, como um perfume intoxicante. Anos depois, ele vê a mesma garota na revista, agora com outro nome, mas ainda com 19 anos. Inicia-se então uma busca por essa menina que encarna a sensualidade e que, provavelmente, está lá, em todos os lugares, todos os tempos, deslizando pelas fantasias dos homens, sempre uma menina. No conto, resumem-se todos os elementos que compõe o estilo de Gaiman: os arquétipos, o fantástico invadindo a vida de pessoas normais e a poesia.
Em Coisas Frágeis,  Gaiman resolveu fazer uma homenagem aos escritores que o influenciaream. A obra é dedicada a Ray Bradbury, Harlan Ellison e Robert Scheckley.
Ray Bradbury notabilizou-se por trazer a poesia para a ficção científica. "A Vez de Outubro", segundo conto da coletânea, tem influência óbvia desse autor norte-americano. Na história, os meses do ano se reúnem ao redor de uma fogueira, comendo lingüiças assadas e bebendo sidra. A estrutura ¨pessoas reunidas para contar histórias¨ é um verdadeiro fetiche para Gaiman, que já a usou diversas vezes em Sandman.
            "Um Estudo em Esmeralda" surgiu de um pedido de Michael Reaves, que estava editando uma coletânea. O organizador queria um texto que juntasse Sherlock Holmes com
Lovecraft. Gaiman viu-se em apuros. Afinal, Lovecraft lidava com o irracional, a loucura, enquanto Conan Doyle apreciava a racionalidade em suas histórias. Apesar da incongruência de estilos, Gaiman fez um bom trabalho. Foi a partir desse conto que o autor se tornou membro do Baker Street Irregulars, um grupo de entusiastas de Sherlock Holmes fundado em 1934 por Christopher Morley e que já teve em seus quadros gente famosa, como Franklin D. Roosevelt e Isaac Assimov.
Um dos pontos altos de Coisas Frágeis é "Golias", um conto escrito para o site de Matrix, explorando o universo da série. Gaiman leu o roteiro do primeiro filme, antes que ele fosse lançado no cinema e escreveu essa narrativa. Nela, a Terra está sendo atacada por uma forma de vida alienígena e a única forma de salvar o planeta é despertando um dos humanos escravizados pela Matrix. Gaiman brinca com a idéia de tempo psicológico, fazendo uma história que, surpreendentemente, tem final feliz. Mesmo que uma felicidade virtual. "Golias" tem o mesmo nível do primeiro filme e é superior aos outros dois da trilogia.
"O Pássaro-do-Sol" tem jeito de deliciosa sobremesa. É um conto sobre um grupo de pessoas, o Clube Epicuriano, que dedica sua vida a experimentar pratos inusitados. Foi escrito como presente de aniversário para a filha de Gaiman, quando ela fazia 18 anos. Ele pretendia imitar o estilo de R. A. Lafferty. "Suas histórias eram incríveis, estranhas e inimitáveis ― logo na primeira frase, você já sabia que estava lendo um conto de Lafferty". O resultado foi um conto saboroso e diferente.
Stardust
Stardust talvez seja a mais famosa obra de Gaiman, depois de Sandman. Mistura de quadrinhos com literatura, essa história teve origem em outubro de 1991. Gaiman estava numa festa, com vários escritores, desenhistas e editores quando aproveitou para fazer uma proposta para Charles Vess, um desenhista especializado em fantasia com o qual ele gostaria muito de trabalhar.
Gaiman contou a história de uma cidade do século XIX separada por um muro. Do lado de cá, era uma cidade normal, do lado de lado, um mundo de magia. O personagem principal era um garoto que atravessava o muro para trazer para moça um presente: uma estrela cadente (que, do outro lado, transformava-se numa linda mulher). Contou também sobre as bruxas, que queriam a estrela para renovar sua beleza e vários outros interessados na estrela.
Vess ficou empolgado, pois era o tipo de história na qual ele gostava de trabalhar, mas não queria fazer uma história em quadrinhos. Sua proposta era fazer algo que há muito tempo não era feito para o público adulto: um livro ilustrado, com uma figura em cada página.
Gaiman concordou que seria divertido fazer a história na forma de livro, mas pensou que ninguém se interessaria em publicar. No final das contas, a própria DC acabou publicado a história com uma minissérie de luxo, com miolo e capa de boa qualidade, em 1997. A acolhida do público foi tão boa que a série acabou sendo reunida em um único volume em 1997. Recentemente, o livro foi publicado numa forma mais convencional, num livro sem ilustrações, ainda com bastante sucesso.
Se a carreira de Stardust já era vitoriosa na literatura, tornou-se realmente espetacular com o lançamento de um filme, com elenco e orçamento milionário.


Deuses americanos
Outro livro de sucesso de Gaiman foi Deuses Americanos, lançado no Brasil pela Conrad. Nele, um homem sai da prisão depois de três anos e descobre que não tem para onde ir, pois sua mulher morrera num acidente e ele não tinha dinheiro ou casa. Então ele é abordado por um homem que lhe dá um serviço pouco comum: ser segurança de um deus. É quando o personagem se vê no meio de um guerra entre deuses astecas, sumérios, africanos e nórdicos, além de entidades relacionadas ao mundo moderno.
Gaiman continuou o tema ¨deuses vivendo junto a humanos¨ em Os Filhos de Amansi (Conrad), considerado por muitos críticos sua obra-prima. O volume conta a história de um tímido americano que vive como pacato contador em uma empresa londrina. Quando seu pai morre, o rapaz descobre que ele era Anansi, uma divindade trapaceira e brincalhona da mitologia africana e sua vida muda completamente.
O livro chegou a primeiro lugar na lista dos mais vendidos do New York Times.
Mais recentemente, Gaiman resolveu investir em literatura infantil com o livro Coraline (2002), uma assustadora fantasia para crianças (o escritor admitiu que está treinando as crianças para aprenderem a gostar de seus livros desde pequenos), com ilustrações de seu parceiro Dave McKean. A obra conta a história de uma menina que se muda para um prédio antigo e descobre um apartamento que deveria estar vazio, mas na verdade está cheio de criaturas estranhas. Do outro lado da porta há um mundo mágico onde há brinquedos incríveis e vizinhos que nunca falam seu nome errado. Mas ela logo descobre que aquele mundo é tão mortal quanto encantado. O livro foi adaptado como animação pela Pandemonium Films e está sendo  distribuído pela Disney.

O resultado tem sido não só uma boa aceitação do público, mas também o aplauso da crítica. Gaiman é um autor premiado. Em 1991, faturou o Fantasy World Award pela revista Sandman. No ano seguinte o regulamento foi alterado, impedindo que quadrinhos concorressem, de modo que Gaiman é o único roteirista de quadrinhos a já ter conseguido um prêmio. Em 2002 ele foi agraciado com o Hugo, por Deuses Americanos. No mesmo ano ele levou para casa o Nebula, outro grande prêmio de ficção-científica e fantasia. Em 2003, o Nebula veio por conta de Coraline. Em 2004, ele ganhou o prêmio Hugo pelo conto Um estudo em esmeralda. Além dos prêmios literários, Gaiman faturou 13 prêmios Eisner por seu trabalho com quadrinhos.  

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