Um dos gêneros literários mais importantes do século XX são as
distopias. Três dos mais importantes livros do século são nesse gênero: 1984,
de George Orwell, Fahrenheit 451, de Ray Bradbury e Admirável Mundo Novo, de
Adous Huxley. Uma obra que merece constar nessa lista é O conto da aia, de
Margaret Atwood.
Escrito em 1985, o livro foi redescoberto diante do cenário
político atual dos EUA. Foi transformado em uma premiadíssima série do serviço
de streaming Hulu.
Mas o que diferencia O conto da aia de seus similares distópicos
mais famosos? Essencialmente, o olhar feminino. Tanto o livro de Orwell quanto
de Bradbury quanto o de Huxley foram escritos por homens e tinham homens como
protagonistas. Margaret Atwood não só escreveu uma distopia com uma
protagonista feminina: ela criou uma distopia cujas principais vítimas são
mulheres.
Na história, os EUA são dominados por um grupo religioso
puritano, que impõe uma rígida disciplina sobre as mulheres. Na história, um
desastre em uma usina nuclear, associado a outros fatores, fez com que boa
parte das mulheres se tornassem inférteis.
Mães solteiras, ou mulheres divorciadas ou casadas com homens
separados são sequestradas e transformadas em mães de aluguel dos comandantes do
regime. São obrigadas a usarem um vestido vermelho, que as identifica, e uma
aba branca, que limita a visão, da mesma forma que é feito com cavalos. Sua
função é ter relações com os comandantes cujas esposas são estéreis. O fruto
dessas relações será posteriormente criado pelo casal. Se conseguir gerar um
filho, a aia estará livre de se tornar uma Não-mulher e ser mandada para as
colônias para onde são enviadas as mulheres inférteis, os gays, pessoas ligadas
à indústria pornô e outros. O principal trabalho dessas colônias é limpar
material radioativo, de modo que poucos duram mais que três anos.
A protagonista é sequestrada enquanto tentava fugir com o marido
e a filha – e boa parte da angústia do livro é ela não saber o que lhes
aconteceu.
O horror, em O conto da aia, está nos detalhes. Apesar da rígida
rotina, em que uma palavra errada ou um gesto equivocado pode levar mulheres
para a tortura ou para as colônias, o que mais impressiona são os detalhes, os
pequenos gestos que demonstram a que essas mulheres foram reduzidas.
Em determinado ponto da história, por exemplo, uma das aias
consegue conceber uma criança. Todas as aias da região são levadas ao hospital,
assim como todas as esposas de comandantes. As esposas seguem em um carro
luxuoso, enquanto as aias seguem em uma caminhonete com bancos de madeira. No
hospital, as esposas se regalam com um banquete comemorativo enquanto para as
aias é servido suco em pó – e a protagonista se sente feliz porque alguém se
lembrou de colocar um pouco de álcool na bebida. “Somos úteros de duas pernas,
apenas isso: receptáculos sagrados, cálices ambulantes”, diz ela à certa
altura.
Outros detalhes são igualmente impactantes, em especial as
pequenas coisas que antes a protagonista podia fazer e agora lhe são
terminantemente proibidas, tornadas pecados, como poder falar quando quiser, usar
sandália no verão, ler uma revista no consultório de um médico...
O livro mostra como essas mulheres, submetidas a uma forte
doutrinação são dominadas pelo complexo de Estocolmo: em determinado ponto elas
começam a achar que o modo de vida que lhes foi imposto é o mais seguro, elas
começam a gostar da prisão nas quais foram aprisionadas. Quando, em determinado
ponto, ela consegue folhear uma revista feminina, ela se repreende por não se
sentir má ao fazê-lo.
É interessante notar como, na trama o que começou pequeno vai se
alastrando. Quando o regime se instala, as pessoas ligadas à pornografia e
prostituição simplesmente somem. A protagonista vai comprar cigarros, a moça da
loja comenta o assunto e diz que se sente até mesmo aliviada com isso, afinal é
apenas o pessoal que trabalha com pornografia. No dia seguinte, a moça não está
mais lá. No começo, todas as pessoas ligadas a uma religião parecem não sofrer
com o novo regime, mas logo quackers, batistas e católicos começam a se
enforcados e pendurados no muro para que todos vejam o que acontece com que não
segue a religião oficial. No começo, todos os casamentos religiosos são
aceitos, mas logo qualquer mulher que não tenha se casado na religião oficial
poderá ser sequestrada e transformada em uma aia. Ou seja: se o totalitarismo não
for barrado logo no início, ele logo engole até mesmo aqueles que apoiaram
inicialmente o regime ou se acharam isentos de sua intervenção.
Da mesma forma que 1984 foi essencial na época em que foi
escrito, O conto da aia se torna fundamental, numa época em que começa a se
delinear um novo tipo de totalitarismo.
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