H.P.
Lovecraft foi o mais importante escritor de terror do início do século XX. Sua
obra encontrou tamanha reverberação naquele período conturbado e nos anos
subsequentes que muitos passaram a acreditar que seus textos se tratavam não de
literatura, mas relatos reais. Boa parte da mitologia desse universo de horror
tem sua origem no livro O chamado de Cthulhu e outros contos, lançado em 2012
pela editora Hedra como parte da coleção de obras completas do autor.
Lovecraft
nasceu numa família conturbada. Quando tinha dois anos, viu o pai ser internado
em um manicômio, onde permaneceu até morrer. A mãe jamais se recuperou da perda
e sofreu distúrbios mentais que afetaram profundamente a relação com o filho. O
futuro escritor passou a viver uma vida reclusão voltada apenas para seu
terrível mundo literário. Precoce, escreveu seus primeiros contos entre seis e
sete anos.
Em
1913, irritado com a baixa qualidade dos contos publicados na revista pulp
fiction Argosy, escreve uma carta que levou a uma intensa polêmica, ao fim da
qual acabou sendo convidado pelo editor a colaborar com a publicação. Suas
histórias, no entanto, não fizeram sucesso. Em vida ele só conseguiu publicar
um livro, A sombra de Innsmouth (que também integra a coleção da Hedra).
Sua
obra só não se perdeu graças a admiradores que em 1939 fundaram uma editora
para publicar sua obra. Mas Lovecraft só se tornou um fenômeno de vendas na
década de 1960, quando algumas editoras norte-americanas começaram a publicar
seus livros com capas chamativas e vendidas em locais de fácil acesso, como
postos de gasolina e farmácias.
O que fez com que sua obra
inicialmente fosse ignorada e depois se tornasse um verdadeiro culto foi a
forma revolucionária com que ele tratava o terror. Lovecraft trouxe para a literatura
a angústia provocada pelas descobertas científicas no início do século XX. Até
o século XIX acreditava-se que o universo era racional e totalmente
compreensível. A ciência estava a um passo de desvendá-lo. A teoria da
relatividade e a física quântica viraram o mundo físico de cabeça para baixo
mostrando que não sabíamos quase nada sobre o universo. “O universo de nêutrons, quasares e
buracos negros é estranho para nós e nós somos estranhos nesse universo”,
escreveu James Turner, na introdução do livro Tales of the Cthulhu mythos (Dell
Books).
Assim, na obra de Lovecraft, somos pouco mais que formigas
num universo eternamente ameaçado por uma entidade terrível e inenarrável,
sejam deuses antigos ou seres alienígenas que desprezam a vida humana. “A coisa
mais misericordiosa do mundo é, segundo penso, a incapacidade da mente
humana em correlacionar tudo o q sabe.
Vivemos em uma plácida ilha de ignorância em meio a mares negros de infinitude
, e não fomos feitos para ir longe”.
O impacto de sua obra é tão grande que muitos
passaram a acreditar que o Necronomicon, livro citado em seus contos, tinha
existência verdadeira. De fato, começaram a surgir diversas versões da obra, de
modo que o livro, imaginário, ganhou existência física.
Em
suma: Lovecraft se tornou, assim como Edgar Alan Poe, um escritor fundamental
para todos os fãs de terror ou de literatura de fantasia. E o volume O chamado
de Cthulhu e outros contos é uma boa porta de entrada para sua obra.
Cthulhu
é uma espécie de entidade monstruosa com corpo de dragão e cabeça de lula. Ele
seria um dos grandes antigos, seres inomináveis que teriam chegado em nosso
planeta em seus primórdios e criado o homem como forma de escárnio e servitude.
Lovecraft pronunciava seu nome de
diversas formas diferentes, dando a entender que se tratava de uma palavra que
não poderia ser reproduzida por lábios humanos. Cthulhu seria o alto sacerdote,
responsável pelo retorno dos antigos quando as estrelas estivessem alinhadas.
Embora seja o mais famoso e imagético, ele é apenas uma das criaturas de um
grande panteão de seres fantásticos que habitam o mesmo universo. Nesse
sentido, Lovecraft foi um divisor de águas: ele criou um universo no qual
ocorrem a maioria de suas histórias, uma mitologia única, de modo que é possível
perceber uma costura entre seus contos, alguns pontos em comum que revelam a
parte mais terrível de sua obra: a terrível suspeita de há algo muito grande
acontecendo à nossa revelia.
É a
fundação dessa mitologia que o leitor irá encontrar no livro O chamado de
Cthulhu... Além do conto que dá título ao volume, outros se destacam, como “Dagon”,
cujas criaturas marinhas serviram de inspiração visual para a história em
quadrinhos Neonomicon, de Alan Moore: “o contorno geral das figuras era muito
humano, apesar das mãos e dos pés com membranas natatórias, dos impressionantes
lábios carnudos e molengos, dos olhos vidrados, arregalados”.
Outro
destaque é “A música de Erich Zann”, que, se não estivesse no livro de
Lovecraft, poderia se passar facilmente como parte da obra de Jorge Luís
Borges. Nele, o protagonista encontra um velho violinista que toca para
espantar terrores da escuridão. O início não poderia ser mais Borges: “Examinei
diversos mapas da cidade com o maior cuidado, mas jamais reencontrei a Rue d´Auseil
(...) Jamais encontrei outra pessoa que tenha visto a Rue d´Auseil”. Talvez não
seja por acaso: tanto Borges como Lovecraft são herdeiros declarados de Edgar
Alan Poe.
É,
portanto, extremamente louvável a iniciativa da Hedra de trazer a coleção completa
do mestre do horror. Uma ótima chance para os fãs do terror verem um mestre em
ação. De negativo apenas o fato dos livros serem de formatos diferentes, o que
certamente deve desagradar os colecionadores.
Segundo
os Mitos, a Terra teria sido habitada, há bilhões de anos, por criaturas que
aqui teriam chegado antes que nosso planeta fosse capaz de gerar ou sustentar
vida por si próprio. Eles, e não Deus, teriam criado a vida: o próprio Homem
seria uma criação deles, gerada unicamente por escárnio e servitude.2 Em contos
posteriores, fica implícito que os Grandes Antigos seriam criadores do próprio
universo, e de todos os seres nele presentes. Isso foi suficiente para que
Lovecraft fosse considerado pelas igrejas fundamentalistas do mundo inteiro, que
acreditam na versão da criação bíblica, como blasfémio. Os Grandes Antigos
teriam Cthulhu como um de seus líderes (de acordo com os contos, seria o Alto
Sacerdote, responsável pelo ressurgimento de todos os outros quando as estrelas
estivessem alinhadas devidamente)
Lovecraft parecia estar escrevendo para o futuro, para o
homem pós-moderno. Tanto que sua obra teve pouco impacto na época, mas depois,
como uma bola de neve, foi crescendo de importância a ponto de se acreditar que
se tratava não e literatura, mas de relatos de uma realidade desconhecida. A
crença na existência do Necronomicon como um livro real demonstra como a obra
de Lovecraft se tornou um simulacro, uma ficção é mais real do que o real. E
hoje, podemos ver em sites de compras diversas versões do Necronomicon. O
livro, totalmente imaginário, ganhou existência física.
O fenômeno Necronomicon revela o
aspecto mais apavorante na obra de Lovecraft: e se, no fundo, for verdade? E se
o escritor tiver, inadvertida e inconscientemente, descoberto a verdade sobre a
realidade em que vivemos? E se formos apenas formigas, seres insignificantes,
criados por escárnio, vítimas de um poder grandioso demais para ser
compreendido?