sábado, junho 01, 2019

Nosso Lar


Nosso Lar é um dos grandes best-seller brasileiros. Escrito pelo espírito André Luís, através do médium Chico Xavier, popularizou a literatura espírita com a história de um médico em uma colônia espiritual. Publicado em 1944, o livro  já vendeu mais de... e gerou uma versão cinematográffica assinada por Wagner de Assis (A Cartomante).
Bastante conhecido, o enredo do livro inicia com o narrador chegando ao Umbral após a sua morte. O relato lembra muito as descrições do inferno católico, com o protagonista assediado por formas diabólicas, rostos Álvares e expressões animalescas. Ele sofre ali por oito anos, até finalmente ser levado para a colônia espiritual de Nosso Lar. A grande falta do médico, que o leva ao Umbral, é o ceticismo e o orgulho, que fazem com que ele demore tanto a pedir ajuda.
Uma vez na colônia, André Luís é iniciado nos mistérios da vida espiritual, da cura, da comunicação com os vivos, etc.
Há, em todo o livro, um excesso de adjetivos que atrapalham a leitura: o aposento é confortador, as luzes cariciosas. Mas essa característica, hoje considerada um vício de linguagem, era comum na maioria dos autores antigos. Fora isso, o livro passaria tranquilamente por uma boa obra de ficção científica da primeira metade do século 20.
A linguagem antiquada foi facilmente resolvida na versão cinematográfica com uma bem pensada atualização. Mas a história apresentava um outro problema, um certo caráter de"diário de viagem", que torna difícil sua adaptação para a sétima arte. Um filme precisa ter uma trama, com conflitos e uma estrutura narrativa que caminha na direção da resolução do conflito.
Em Nosso Lar, todos são bons demais e não existe uma possível figura de vilão. Da mesma forma, não há um destino que represente o conflito, já que os personagens gozam de livre-arbítrio. Em suma: não há quase nenhum conflito visível na obra original.
Como transportar isso para o cinema sem que o resultado seja duas horas de sono?
O diretor Wagner de Assis optou por focar a narrativa no conflito interno dos personagens (apenas sugerida no livro), especialmente André Luiz e Eloísa, uma moça que aparece rapidamente no livro se lamentando de ter morrido antes de casar e de saber que seu noivo encontrou uma nova esposa.
André Luiz luta contra a arrogância, o egoismo e o ceticismo (e, no final do filme, contra o ciúme), e Eloísa quer a todo momento voltar para seu noivo. Boa parte da narrativa se sustenta nessa sustentação. André será capaz de ultrapassar seus conflitos internos, e, dessa forma, ajudar a moça, fazendo com a que a trama paralela se una à principal num roteiro bem costurado.
Ou seja: o diretor optou por uma inteligente estrutura narrativa, que prende o expectador exatamente pela identificação. Alguns talvez se identifiquem com André, outros com Eloísa.
Se o roteiro é competente e enxuto, a direção é outro ponto forte. Os efeitos especiais são grandiosos (o filme custou 20 milhões de reais, boa parte deles gastos com efeitos), mas usados em favor da narrativa. Não há efeitos apenas pelo efeito, como Hollywood muitas vezes tem feito. Entretanto, muitos que assistiram à fita comentaram que gostaram de ver esse nível de efeitos num filme nacional de FC ou fantasia.
O diretor também trabalha muito bem a imagem, em ótimas cenas sem diálogos, como no reencontro de André Luiz com sua esposa. Com pouquíssimas falas, toda a tensão da situação é repassada aos expectadores.
Há algumas cenas que chamam atenção dos mais atentos: quando começa a II Guerra Mundial, a colônia espiritual recebe centenas de desencarnados. A maioria deles usando a estrela de Davi (judeus), mas há também pessoas com outros símbolos usados em campos de concentração, o que se relaciona com os ensinamento de Chico Xavier de que o sofrimento liberta. A mesma cena traz um conteúdo de tolerância religiosa que se reflete também na cena da sala do governador, cujas paredes ostentam símbolos das principais religiões terrenas.
Sobre a questão da II Guerra, Chico conta, no livro, que os nazistas, ao morrerem na guerra, fugiam dos que iam resgatá-los, chamando-os de "fantasmas da cruz". Esse ponto, no entanto, não foi explorado pelo filme.
Outro aspecto curioso da versão cinematográfica é inverter o paradigma convencional do ser humano com relação à dualidade vida-morte. Em Nosso Lar, vemos personagens chorando e lamentando a partida de entes queridos que vão reencarnar. Nesse ponto o roteiro foi particularmente eficiente ao mostrar que vida e morte são apenas dois lados da mesma moeda em um ciclo de reencarnações. Chega, inclusive, a brincar com isso, como na cena em que uma senhora reclama que o marido estava sempre muito doente, “Mas morrer que é bom, nada!”.
Nosso Lar conta com uma equipe internacional:  o fotógrafo suíço Ueli Steiger (“Dia depois de amanhã”, “Godzilla”, “10.000 a.C”), os canadenses da Intelligent Creatures para os efeitos especiais (“Watchmen”), a diretora de arte brasileira Lia Renha ( “A muralha”, “Hoje é dia de Maria”, “Auto da Compadecida”), e o músico  Philip Glass (“As horas”, “O ilusionista”).
É um filme que irá agradar tanto os espíritas quanto não espíritas ou simples simpatizantes da doutrina. Mesmo aqueles que foram assisitir Nosso Lar apenas como um filme de ficção científica provavelmente irão gostar. Prova disso é que em apenas 5 dias  já ultrapassou a marca de um milhão de expectadores.

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