A Cabanagem foi a
mais sangrenta guerra civil da América Latina. Foram 35 mil mortos, 30% da
população da região amazônica. Entretanto, é uma das menos conhecidas revoltas
do período regencial. Uma ótima obra para os interessados no assunto é A
miserável revolução das classes infames, de Décio Freitas (editora Record).
Décio conta que o
livro é baseado em cartas que lhe foram entregues por um amigo espanhol.
Escritas meio em francês, meio em bretão, eram redigidas por um revolucionário
francês que participara da revolta paraense.
Já nos finais da
revolução francesa, muitos indíviduos do grupo que perdia o poder, ao invés de
serem guilhotinados, eram simplesmente enviados para a Guiana francesa. Era a
“guilhotina seca”.
Quando Napoleão
chegou ao poder, continuou a prática e quando este foi derrotado, seus inimigos
fizeram o mesmo. Dessa forma, na Guiana Francesa podia-se encontrar desde
jacobinos veteranos da revolução francesa a pessoas perseguidas por Napoleão.
Entre os
revolucionários enviados para a Guiana está Jean-Jacques Berthier, expulso da
França com apenas 14 anos. E este é o autor das cartas que servem de base para
o livro. Assim, os principais fatos do conflito amazônico são esmiuçados do
ponto de vista desse personagem. As cartas, no entanto, parecem ser só uma
estratégia de verossimilhança. Da mesma forma que Umberto Eco inventou que O
nome da Rosa não era um romance, mas a tradução de um texto real da Idade
Média, Décio aparentemente inventa que
seu livro é resultado das cartas recebidas de um amigo e traduzidas a grande
custo do bretão.
Mas se o personagem é
fictício, os fatos históricos narrados no livro são reais. O autor pesquisou a
fundo o período e lança uma nova luz sobre a revolta.
A começar por algo
que fica claro durante toda o obra: a cabanagem foi a nossa revolução francesa.
A relação é, de fato, direta.
Quando Napoleão
invade Portugual, D. João e a corte portuguesa são obrigados a fugir para o Rio
de Janeiro. Mas, em retaliação, D. João manda invadir a Guiana Francesa com o
apoio dos ingleses.
A conquista é fácil,
mas vai ter grandes consequências. Na época, a colônia francesa estava repleta
de revolucionários jacobinos. Como eram inimigos de Napoleão, os portugueses
são tolerantes com eles e alguns até são levados a Belém para ajudar na
construção de um palacete para o governador. Outros vão por conta própria.
Além disso, os
soldados brasileiros que participaram do conflito têm contato direto com as
ideias dos revolucionários. Em pouco tempo, Belém não só estava cheia de
jacobinos, mas também de soldados brasileiros com ideias revolucionárias.
Décio faz uma
descrição ampla de Belém e das condições sociais do Pará à época.
O Pará era dominado
pelos portugueses e pelos mestiços de principais famílias. Aos negros restava a
escravidão e aos índios, chamados tapuios, a miséria. Era comum, por exemplo o
sequestro de meninais tapuias destinadas à lascívia dos endinheirados. São as
“índias de corda”: seus captores furam suas orelhas pela qual passam uma corda
que prende uma às outras. Se tentarem fugir, provocam dores atrozes nas outras.
O governador,
corrupto, pensa em uma só coisa: enriquecer mesmo que à custa de saquear o povo
local.
A língua mais falada
não é o português, mas a língua geral, o Nheengatu, língua indígena baseada no
tupi e criada pelos jesuítas.
Um fato que antecipou
e, de certa forma provocou a revolta da cabanagem, foi o massacre do Brigue
Palhaço.
Quando o Brasil se
tornou independente, o Pará não aderiu. Afinal, a capital paraense era mais próxima
de Portugal do que do Rio e comércio era todo com a Europa.
D. Pedro manda um
mercenário inglês, Lorde Greenfell, para providenciar a adesão do estado ao império
brasileiro.
Greenfell faz um
acordo com as principais famílias, que aceitavam aderir à independência em
troca de manter o status quo.
A população pobre se
revolta: esperava-se que a adesão do Brasil à independência mudasse alguma
coisa na situação política e social do estado, mas continua tudo como estava.
A rebelião estoura:
as pessoas saem às ruas saqueando os comércios dos portugueses. A repeensão,
efetuada pelo mercenário é cruel e aleatória. Ele envia seus soldados, que
recolhem todos que encontram na rua e, sem qualquer julgamento, os aprisiona no
porão de um navio, o Brigue Palhaço.
Eram 256 pessoas
aprisionadas em um espaço mínimo, num calor extremo, sem água ou comida. A
ideia era matá-los de fome e sede, mas quando o gemido agonizante dos
aprisionados começou a incomodar os soldados, Greenfell mandou dar tiros a esmo
no porão. Não deu certo. Os gritos de agonia continuaram. A solução foi
radical: jogar cal no porão, asfixiando os prisioneiros. De todos, apenas uma
pessoa sobreviveu.
Essa tragédia
marcaria para sempre a história do Pará e seria, anos mais tarde, o estopim
para a revolta dos cabanos.
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