Grant Morrison é um dos mais importantes roteiristas de
quadrinhos da atualidade. Foi um dos primeiros a experimentar a metalinguagem
nos super-heróis, com o Homem-animal. Sua passagem por séries como Liga da
Justiça e X-men são tanto memoráveis quanto polêmicas. Polêmicas, aliás, são
também algumas de suas atitudes e declarações. Em outras palavras: é uma figura
tão interessante quanto os personagens que escreve. Daí que o lançamento do
livro Superdeuses (Seoman, 496 páginas) tem chamado tanta atenção.
O volume inicialmente era para ser uma antologia de
entrevistas dadas pelo roteirista, mas Peter McGuigan, agente do escritor,
sugeriu que o livro ficaria bem mais interessante com textos inéditos e
Morrison se viu escrevendo centenas páginas numa mistura de análise do mito dos
super-heróis com biografia e críticas lisérgicas sobre filmes, quadrinhos e
seriados.
Um dos pontos interessantes do livro é a abordagem sobre a
criação do mito dos super-heróis. Para ele, esses personagens “falam mais alto
e com mais força frente aos nossos grandes medos, nossos desejos mais profundos
e nossas maiores aspirações”.
Sua análise do surgimento mito, a partir do Super-homem, é um
dos momentos mais inspirados do livro. Segundo ele, “O Superman original era
uma reação humanista e audaciosa aos temores do período da Grande Depressão, do
avanço científico desregrado e da industrialização sem alma (...) Se as
perspectivas distópicas da época previam um mundo desumanizado, mecanizado, Superman sugeria outra possibilidade: a imagem
de um amanhã decididamente humano, que entregava o espetáculo do individualismo
triunfante exercendo sua soberania sobre as forças implacáveis da opressão
industrial”.
Essa visão é corroborada pelo fato do personagem estar sempre
destruindo máquinas, como na primeira aparição do personagem, em que ele
aparece na capa de Action Comics segurando um carro sobre a cabeça, pronto a
jogá-lo contra uma pedra.
Se Superman merece uma apaixonada análise de sua primeira
história, a outra estrela da DC, o soturno Batman, ganha de Morrison uma retrospectiva
hilária dos desastres cinematográficos. Não é difícil imaginar o roteirista
chapado com algum tipo de droga da moda assistindo a seriados, como os da
década de 1940 e se divertindo a valer com seu humor ácido: “O Batmóvel era um
conversível brega no qual Batman trocava de roupa no banco de trás enquanto o
teto fechava e presto! O roadster facilmente identificável no qual Bruce e Dick
tinham acabado de chegar, num piscar de olhos, virava o magnífico Batmóvel!
Enquanto Batman se debatia para tirar as roupas e botar a fantasia de morcego,
o dito Menino Prodígio assumia o volante ilegalmente e, quando era a vez do
devasso Robin revirar-se para entrar nos trajes, Batman fazia as honras na
frente. Era uma parceria lendária, afinal de contas”.
Um ponto que não poderia ficar de fora de um livro de
Morrison é sua antológica briga com Alan Moore, autor de Watchmen, V de
Vingança e outras séries de renome. O escocês Morrison é nitidamente fã do
trabalho de Alan Moore e tem que fazer um verdadeiro contorcionismo verbal ao
elogiá-lo ao mesmo tempo em que o critica: “Alan Moore era autodidata,
ambicioso, de uma inteligência feroz e extravagante, e o maior truque no seu
arsenal de grandes truques era parecer totalmente inovador, como se não
houvesse história dos quadrinhos anterior ao seu surgimento”.
A eterna inimizade entre os dois rende alguns dos melhores
momentos do livro, como quando Alan Moore diz que a graphic novel Asilo Arkhan,
de Morrison, é “cocô embrulhado em ouro” e Morrison afirma que Watchmen é “um
poema colegial de 300 páginas”.
Também vale destacar os trechos com as esquisitices de
Morrison, como a fase em que ele praticava magia do caos vestido de travesti.
Ou a vez em que ele mascou haxixe e se sentiu abduzido por extraterrestres que
lhe revelaram o segredo do universo – segredo que ele, gentilmente, compartilha
com os leitores do livro.
Não se espere isenção de Morrison. Ele alfineta desafetos
(como Moore), antigos amigos (como Mark Millar) e simplesmente ignora quem é da
turma de Alan Moore, como Neil Gaiman, que merece apenas uma pequena menção na
obra. Além disso, embora a Marvel rivalize com a DC na criação de mitos, ele se
concentra muito mais nos heróis da DC, provavelmente reflexo de sua traumática
passagem pelo título X-men.
Um ponto positivo da edição brasileira é que ela é traduzida
por Érico Assis, jornalista especializado em quadrinhos, que sabe do que
Morrison está falando. Isso evitou, por exemplo, que nomes de personagens fossem
traduzidos de maneira diferente da usual no Brasil.
Um ponto negativo é a capa nacional, um assunto que não
poderia ser ignorado em qualquer resenha mais séria. A capa original emula uma
sequência de quadrinhos, com um planeta sendo destruído, um foguete sendo
enviado ao espaço e o pequeno Karl-El sendo achado pelos Kents. O título e o crédito são distribuídos de
maneira elegante entre os quadros. A edição nacional deixou a elegância de
fora. Ela é dominada por um título que surge de um rasgão, em letras garrafais,
lembrando o cartaz do Superman da década de 1970, com um fundo de estrelas. A
capa original é lembrada apenas pela parte de baixo, em que aparecem um homem e
uma mulher. Sem a sequência é muito difícil deduzir que são Martha e Jonathan
Kent e que eles estão achando o superbebê. Espera-se que a capa seja repensada
para a próxima edição. Afinal, Superdeuses é leitura obrigatória para fãs de
quadrinhos e pessoas que desejam entender o fenômeno de super-heróis.
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