O livro Os melhores contos brasileiros
de ficção científica (Devir) foi uma das publicações de gênero mais comentadas
do ano de 2007. Uma das questões polêmicas foi a inclusão do conto “O imortal”,
de Machado de Assis, na coletânea. Segundo alguns críticos, o texto estava
deslocado, já que não se tratava de FC. A polêmica levou o organizador, Roberto
de Souza Causo, a produzir mais uma publicação, focada exatamente em textos que
testam as fronteiras do gênero.
A discussão sobre o “O imortal”,
inclusive ocupa a maior parte da introdução. “A ousadia não pretendia, porém,
afirmar Machado como autor de FC propriamente dita, mas com um escritor que, à
parte suas tendências principais, teve contato com ideias, estilos e temas que
iam além”. Causo contesta também os que argumentaram que o texto de Machado era
fantasia, e não FC, denunciando uma espécie de elitismo: “Se O Imortal é um
conto fantástico, mantém-se a aura literária de prestígio; porém, se é um conto
de ficção científica, supostamente há um enfraquecimento dessa aura”.
A discussão sobre a relevância
literária da FC parece ultrapassada em vista dos grandes escritores que já se
dedicaram ao tema, de Edgar Alan Poe a Ray Bradbury, passando por Monteiro
Lobato e Isaac Asimov. Mas a discussão sobre as fronteiras do gênero é rica e
pertinente. Causo argumenta que “a
ficção científica é ampla o bastante para incorporar características de outros
gêneros, sem necessariamente deixar de ser FC”.
Os melhores contos brasileiros de
ficção científica – fronteiras (2009, 186 p.) foi organizado justamente para
provar essa tese. São 14 textos tanto de autores tradicionalmente ligados à FC,
como Bráulio Tavares quanto de outros inesperados, como Lima Barreto.
Aliás, Lima Barreto abre o volume, com
“A nova Califórnia”. No conto, um químico de renome internacional se estabelece
na pequena cidade de Tubiacanga e se esmera em conseguir alcançar o objetivo da
alquimia: a produção de ouro. Sua pesquisa irá colocar a cidade em polvorosa
Trata-se de uma fábula sobre a ganância humana. Embora não seja uma FC
clássica, o conto traz um dos temas prediletos desse gênero: o estudo do
impacto da ciência sobre o comportamento das pessoas. Ademais, a prosa
deliciosa de Barreto já vale a leitura.
Outra alegoria que se destaca no livro
é “A vingança de Mendelejeff”, de Berilo
Neves, o primeiro escritor brasileiro a se dedicar sistematicamente à FC, com
ênfase na sátira social. O conto dialoga com os pulp fiction ao mostrar o vilão
como um cientista ensandecido que inventa uma máquina capaz de tirar o oxigênio
do ar. Embora tenha um ar “pulp”, a história vai além ao fazer referência à
corrente determinística segundo o qual somos vítimas de nossos impulsos.
Outro pioneiro da FC brasileira que se
destaca é Afonso Schmidt, autor de “Delírio”. Muito popular em sua época, Schimidt
flertava com o espiritismo e a teosofia, uma relação que se reflete no conto
escolhido para a coletânea. Em “Delírio”, três homens estão morrendo em um
hospital. A história que começa no plano físico, termina no plano espiritual. A
prosa poética vai muito além do comum em histórias em ficção científica e
parece uma antecipação do estilo Bradbury. Sem dúvida um dos grandes momentos
do livro.
Outro clássico da FC nacional, André
Carneiro, comparece na coletânea com o conto “O homem que hipnotizava”. Por
suas características, a ficção científica é perfeita para textos que queiram
trabalhar os limites da realidade. Várias obras tratam do assunto, entre elas
os filmes da série Matrix. O conto de Carneiro segue essa linha e não
decepciona. No final, o leitor se pergunta que realidade é mais concreta: a dos
objetos físicos ou a mental, uma questão que já é levantada por cientistas como
o chileno Humberto Maturana.
Entre os clássicos, o de maior destaque
sem dúvida é Jerônymo Monteiro. Pioneiro da ficção de gênero no Brasil,
Monteiro passou pela radionovela e pela ficção policial. Quando, na década de
1990, a revista Isaac Assimov Magazine resolveu criar um concurso de contos de
ficção científica, o nome óbvio para o prêmio foi o de Jerônymo. Só pelas
credenciais, esse autor já merecia presença obrigatória no volume, mas o conto
“Um braço na quarta dimensão”, publicado originalmente no único de livro de
contos do autor, “Tangentes da realidade”, de 1969, é leitura deliciosa e
intrigante. Escrito de forma coloquial e sem artificialismos, parece que
estamos ouvindo o narrador contar um caso real de um homem dotado de um poder
que acaba se revelando uma maldição.
Fugindo do estilo mais característico
da FC, Marien Calixte fez um conto poético em “O visitante” que mistura discos
voadores com erotismo num resultado interessante e poético. Roberto Causo, na
apresentação do autor, aponta que ele tem “ele tem uma das prosas mais
elegantes dentro os nossos escritores de ficção científica”, o que é ratificado
por “O visitante”.
Jorge Luiz Calife e Bráulio Tavares,
dois dos mais badalados autores de FC do Brasil colaboram com os melhores
contos do livro. Em “Uma semana na vida de Fernando Alonso Filho”, Calife
mostra as atribulações de um brasileiro em Vênus enquanto o planeta é
transformado em uma nova Terra, para recebimento de colonos. Adepto da FC hard,
o autor usa o conhecimento científico atual para compor o cenário de sua
história. O plano de terraformização, inclusive é chamado de Projeto de Sagan,
em homenagem ao famoso astrônomo e divulgador científico. Mas o texto vai além
da questão puramente científica, adentrando no impacto psicológico que
condições extremas provocam no protagonista.
Braulio Tavares, autor, entre outros
livros importantes, do volume Ficção científica da coleção Primeiros Passos, mostra
uma realidade em que o ser humano alcançou o espaço, mas apenas para entrar em
uma guerra perpétua com outra raça. O texto “Mestre-de-armas” lembra “O Jogo do
exterminador”, de Orson Scott Card, na visão crua da guerra.
No geral, os contos da coletânea foram
muito bem escolhidos e dão uma visão abrangente da FC nacional em suas várias
fronteiras. Um livro que interessa aos fãs e não fãs.
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