Em 1969 a revista Gente
(uma espécie de Caras argentina) resolveu publicar quadrinhos, reflexo direto
da popularidade da nona arte no país portenho. Para isso chamaram o maior
roteirista do pais, Hector Oesterheld, que decidiu por uma releitura de seu
clássic de FC, O Eternauta, mas agora desenhado pelo revolucionário Alberto
Breccia.
A versão anterior da
história já tinha vários aspectos de metáfora política. Exemplo disso era o que
o roteirista chamava de herói coletivo: a situação nunca era resolvida por uma
pessoa, um herói, mas por um grupo. Mas em 1969 Oesterheld estava muito mais
envolvido com política e tornou as metáforas muito mais claras.
Na história original, a
Terra era invadida por extraterrestres em um programa de extermínio em escalas,
começando por uma neve mortal. Na nova versão, as grandes potências fazem um
acordo com os invasores e entregam a América do sul em troca de não serem
molestados.
“Estamos na situação dos
incas ou dos astecas lutando contra os europeus... o inimigo vem de outro
sistema solar. Conseguiu convencer, sabe-se lá como, os Estados Unidos, a
Rússia e as outras grandes potências a dividirem a terra com eles”, diz um dos
personagens à certa altura.
Até mesmo a neve ganha
nítidos contornos de metáfora política: “Os países que nos exploram, as grandes
multinacionais, já eram nossos invasores... suas neves mortais eram a miséria,
o atraso, nossos próprios egoísmos manipulados do exterior”.
Por outro lado, nunca vemos
os invasores de fato, mas seus lacaios, seres recolhidos em outros planetas,
controlados por um implante que os obriga a obedecer. No final, até mesmo
humanos são usados assim. Mais uma metáfora: a dos que se voltam contra seu
próprio povo para defenderem os exploradores.
Hábil como poucos,
Oesterheld consegue transformar essa grande metáfora política em um triller
irresistível, explorando não só a luta pela sobrevivência e a guerra contra os
exploradores, mas também os pequenos dramas, como do casal que abre a janela da
casa para ser exposto aos flocos de neve e assim, morrerem juntos. Escritor
fenomenal, Oesterheld conduz o leitor pela narrativa, como um guia de museu de
aponta aqui e ali pequenos detalhes que o leitor teria ignorado no grande
quadro geral. E seu texto é simplesmente irretocável.
Para completar o roteiro e
o texto brilhantes, temos o desenho de Alberto Breccia.
Breccia é simplesmente um
dos mais revolucionários desenhistas de quadrinhos de todos os tempos e nessa
obra parece ainda mais inspirado. Há de tudo: quadros totalmente calcados no
claro-escuro, quadros hachureados, aguadas, fotografias... Breccia parecia
disposto a se superar a cada sequência, inclusive na composição inspirada.
Na página em que um dos
personagens sai da casa e morre sob efeito da neve mortal, o quadro preto
apenas com a figura e a neve em branco começa com quase toda a largura da
página e vai diminuindo, representando a vida se esvaindo do personagem.
Quando os primeiros
extraterrestres surgem, a imagem é um emaranhado de hachuras, claro-escuro e
aguada, como que para preservar-lhes o ar de mistério. Em contraparte aos
invasores, as mulheres são todas belíssimas.
Entretanto, o diretor da
revista não gostou. É possível que ele tenha desgostado do conteúdo político
numa revista que abria diversas páginas para entrevistar Rockfeller. Mas a
desculpa oficial é de que o desenho não era bom. Para reforçar esse argumento
foi usada inclusive uma carta de leitor (que, acredita-se, tenha sido escrita
pelo próprio editor).
Para não deixar a história
incompleta, Oesterheld é obrigado a apressar a narrativa. O texto, até então
equilibrado, transforma-se em grandes blocos, sumarizando diversos
acontecimentos em um único quadro.
Ainda assim, O Eternauta
1969 é um clássico absoluto, uma ótima amostra de como o quadrinho argentino
foi durante algum tempo um dos melhores do mundo. Esse clássico, até então
inédito aqui, foi finalmente publicado no Brasil este ano pela editora Comic
Zone. Capa dura, papel de boa qualidade, item essencial na estante de qualquer
colecionador de quadrinhos.
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