Estamos cercados de
narrativas. Das novelas aos grandes romances, passando por lendas e histórias
em quadrinhos, as narrativas acompanham o homem há milênios e são um item
cultural importante na distinção entre humanos e outros animais. Foi para
ajudar a explicar essas histórias que Yves Reuter escreveu A Análise da
Narrativa - o texto, a ficção e a narração.
A análise à qual se refere
Reuter tem duas características. A primeira delas é interessar-se pelas
narrativas como objetos lingüísticos. Assim, a forma como foram construídas ou
a sua forma de comunicação não são objetos de análise. A segunda é a idéia de
que, apesar da diversidade de histórias, há formas básicas e princípios de
composição que podem ser percebidos.
Achar esses núcleos comuns,
essas formas nas quais são feitas todas as narrativas foi objetivo de vários
pensadores, a começar por Aristóteles em seus textos sobre o teatro grego.
Mas Reuter restringe seu
resgate a autores mais modernos, como Umberto Eco, Roland Barthes, Claude
Brémond e Vladmir Propp.
A teoria de Propp, por
exemplo, parte da idéia de que existem 31 funções que constituem a base comum
sobre qualquer história.
Para quem leu os livros de
Harry Potter, ou assistiu aos filmes, algumas funções são facilmente
identificáveis nessa história:
1 - Afastamento - um dos
membros da família parte ou morre (a saga de Potter começa com a morte dos
pais).
2 - Marca - o herói recebe uma
marca provocada normalmente por um ferimento. Essa marca o ajudará
posteriormente (Potter recebe uma marca na forma de raio).
3 - Partida - o herói deixa
sua casa (as aventuras de fato começam quando Potter parte do lar dos tios em
direção à escola de magia).
4 - Interdição - o herói se
defronta com uma ordem ou uma proibição (quem já leu os livros de Potter sabe
que sempre há algum tipo de proibição: não entrar em uma sala, ou não andar
pelos corredores à noite).
5 - Recepção do objeto mágico
- o herói recebe um ou mais objetos mágicos.
6 - Transgressão - a ordem não
é atendida (a insistência de Potter em desobedecer proibições e a tendência do
diretor da escola de perdoá-lo tem sido, inclusive objeto de crítica. Muitos
pais têm dito que o bruxinho é um incentivo à desobediência).
7 - Engano - o agressor tenta
enganar a vítima para apoderar-se dela ou de seus bens (Essa é fácil. Valdemort
sempre se disfarça de alguém bom para prejudicar Potter).
8 - Cumplicidade - a vítima se
deixa enganar e involuntariamente ajuda seu inimigo (se você leu Harry Potter,
não há mais o que dizer).
9 - Descoberta - o falso herói
é desmascarado.
10 - Vitória - o agressor é
vencido.
Claro que pulei 21 funções e
tirei outras do lugar, mas é surpreendente como elas se encaixam na história do
bruxinho inglês. Das duas, uma: ou Rowling leu toda a obra de Popp e escreveu
sua história baseando-se na teoria do narratólogo russo, ou Propp realmente
conseguiu alinhavar algumas características comuns a muitas histórias. A
primeira hipótese é muito pouco provável. É mais certo que existam certos
arquétipos, certos princípios básicos das histórias que sejam compartilhados
por nós através do inconsciente coletivo e apareçam nas histórias que lemos ou
vemos nas telas do cinema.
Além dos interessantes
capítulos sobre a teoria da narrativa, o livro de Reuter ganha fôlego ao falar
do texto e suas relações com o mundo e outros textos.
Todo texto remete ao mundo.
Por mais ficcional que seja uma narrativa, ainda assim, ela remeterá a
categorias e objetos que já conhecemos. Mesmo um escritor de ficção científica,
ao descrever um extraterrestre, o fará comparando-o a animais ou objetos por
nós conhecidos. Reuter dá como exemplo as descrições de ETs feitas por H.G.
Wells, em A Guerra dos Mundos: "Dois grandes olhos sombrios me examinavam
fixamente. O conjunto da massa era redondo e possuía, por assim dizer, uma
face: sob os olhos havia uma boca, cujas bordas desprovidas de lábios tremiam,
agitavam-se e deixavam escapar uma espécie de saliva".
O realismo é uma das formas
mais constantes da relação entre o texto e o mundo. Aqui não se fala da escola
literária (em específico), mas da tentativa de fazer o leitor acreditar naquilo
que está lendo, comum a quase todas as escolas literárias.
A forma de dar realismo ao
texto muda de geração para geração e o que é realista hoje pode parecer
totalmente irreal daqui a algumas décadas (uma forma de perceber isso é
assistir filmes de ficção científica do início do século XX). Mas existem
alguns recursos interessantes, levantados por Reuter, para criar o realismo.
Um deles, naturalizar a
narração, foi muito usado no século XVIII. Consistia em justificar a origem da
história. Geralmente isso era feito com um preâmbulo ao leitor, no qual se
explicava que o livro havia sido escrito por outra pessoa e muitas vezes
detalhava a forma como se teve acesso aos originais. Umberto Eco usou esse
recurso em O Nome da Rosa, ao atribuir a autoria a um monge da Idade Média.
Até mesmo romances da chamada
literatura de massa se utilizam desse recurso. J. J. Benitez jura até hoje que
os livros da coleção Operação Cavalo de Tróia foram escritos por um militar
norte-americano que, teria, realmente, voltado ao passado para se encontrar com
Jesus. Lembro de um livro que encontrei na biblioteca da escola quando pequeno
que mostrava naves espaciais. As ilustrações eram acompanhadas de textos que
tratavam as naves como coisas do passado. Tipo: "Essa nave foi muito usada
quando os humanos começaram a se aventurar para fora do sistema solar".
Claro que o texto era só uma desculpa para as ótimas ilustrações serem vendidas
como livro, mas ele realmente me convenceu e eu acreditava que havia entrado em
algum dobra espacial através da qual havia chegado em minhas mãos um livro de
um futuro distante.
Mas os textos não fazem só
referência ao mundo. Eles também fazem referência a outros textos. Essas
referências podem ser caracterizadas, por exemplo, pela intertextualidade. É o
que ocorre quando temos um texto dentro do outro. As formas mais comuns são as
citações, em que os escritores se divertem fazendo referências a outros
autores. O livro O Nome da Rosa, por exemplo, é repleto de referências aos
textos de Jorge Luís Borges.
Outra forma de
intertextualidade consiste em apropriar-se de aspectos pouco explorados de
histórias clássicas. Quem lê quadrinhos conhece muito bem esse recurso. Em
Batman Ano 1, Frank Miller se aproveitou das brechas deixadas por Bob Kane para
recontar a origem do Homem Morcego. Miller fez o mesmo com o Demolidor. Umberto
Eco, aliás, tem um texto excelente em que explica porque os super-heróis da DC
nunca envelheciam: suas histórias eram contadas sempre no vácuo deixado por
outra aventura. Assim, o personagem ficava preso em um círculo vicioso que o
impossibilitava de envelhecer.
Yves Reuter é doutor em letras
e professor da Universidade Charles-de-Gaule-Lille III. Em A Análise da
Narrativa ele faz um resgate aprofundado da narrativa, sem, no entanto se
tornar cansativo. Seu texto é fácil e fluente e vai agradar não só professores
de Literatura, mas todos que se interessam por entender um pouco melhor as
histórias com as quais convivemos diariamente, seja em livros, em histórias em
quadrinhos, nos cinemas, ou até nas páginas de jornais.
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