No início da década de 1970, um pequeno e divertido livrinho, publicado no Chile, caiu como uma bomba no mundo dos quadrinhos infantis. “Para Ler o Pato Donald”, de Ariel Dorfman e Armand Mattelart, foi escrito num período em que o governo de Salvador Allende se debatia para sobreviver às pressões do imperialismo norte-americano.
A idéia de Dorfman e Mattelart era justamente denunciar a ideologia imperialista que dominava as aparentemente inocentes histórias infantis de Disney.
A primeira descoberta dos autores foi com relação à vida familiar. Não há nenhum vínculo familiar direto nas histórias de Pato Donald e Companhia. Todos são tios ou sobrinhos de alguém.
Recentemente um desenhista espanhol descobriu uma HQ, escrita e desenhada por Carl Barks (o criador do Tio Patinhas e de boa parte dos personagens de quadrinhos da Disney), em que aparecem os pais de Donald. Tudo indica que essa história foi escondida por Disney, que queria que os personagens se identificassem com ele (Disney tinha dúvidas se era um filho legítimo e se considerava órfão).
Além de não ter laços familiares diretos, os personagens são movidos apenas pela ambição do dinheiro. Não há relações de amizade desinteressada, apenas relações comerciais.
O amor de Margarida, por exemplo, é exemplificado na conversação abaixo, reproduzida no livro:
Margarida: Se você me ensina a patinar esta tarde, darei uma coisa que você sempre desejou.
Donald: Quer dizer...?
Margarida: Sim... A minha moeda de 1872.
Sobrinho: Uau! Completaria nossa coleção de moedas, Tio Donald!
O exemplo demonstra que nas histórias da Disney as relações são sempre de interesse e quase sempre interesse financeiro.
No mundo de Disney, Patópolis representa os EUA e todos os povos não americanos são mostrados de forma depreciativa.
Os povos não civilizados, metáfora do Terceiro Mundo, são como crianças. Afáveis, despreocupados, ingênuos, felizes, têm ataques de raiva quando são contrariados, mas é muito fácil aplacá-los com quinquilharias. Aceitam qualquer presente, até mesmo os seus próprios tesouros. Alguns fazem artesanato. Não os compre, aconselham Dorfman e Mattelart, poderá consegui-los gratuitamente mediante algum truque.Desinteressados, esses povos bárbaros entregam todas as suas riquezas em troca de qualquer bugiganga, seja um relógio de um dólar ou bolhas de sabão.
Embora seja muitas vezes agente do imperialismo, Donald é também vítima desse mesmo imperialismo.
O Tio faz e desfaz dele e obriga-o a viajar às regiões mais longínquas do planeta e jamais o recompensa satisfatoriamente.
Alguns estudiosos posteriores se perguntaram porque Donald não se rebela contra a tirania do Tio. A resposta é simples: ele tem esperança de um dia herdar a riqueza de Patinhas.
Da mesma forma, a América Latina tem a esperança de se tornar um país desenvolvido. Criou-se até a expressão países em desenvolvimento para expressar essa vontade.
Mas o Tio Patinhas nunca morre. Aliás, é bastante provável que ele sobreviva ao sobrinho, pois é sempre Donald que se arrisca nas missões perigosas.
Criticado por muitos e elogiado por outros tantos, o trabalho de Dorfman e Mattelart deixou frutos, influenciando toda a pesquisa latino-americana de comunicação.
Muitos pesquisadores se debruçaram sobre os jornais, as revistas, a televisão e cinema e demonstraram o quanto essas mídias estão impregnadas de ideologia imperialista.
Quanto aos autores, tiveram trajetórias opostas. Mattelart voltou para a Europa, tornou-se um “pesquisador sério” e aparentemente rejeitou seus primeiros escritos.
Dorfman exilou-se nos EUA na época do ditadura Pinochet, tornando-se um autor de teatro, cinema e literatura. Seus escritos são sucesso de público e de crítica. O filme “A Morte e a Donzela”, com roteiro de Dorfman, é uma das obras-primas do cinema norte-americano da década de 90.
¨Para ler o pato Donald¨ começou a ser seriamente questionado por pesquisadores quando se descobriu que os autores haviam alterado as falas de alguns quadrinhos. Além disso, entrevistas feitas com Carl Barks mostram que, provavelmente, o conteúdo ideológico de direita tenha mais a ver com as convicções do desenhista do que com pressões patronais. Barks odiava Karl Marx.
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