Em Fahrenheit 451, escrito em 1953, Ray Bradbury nos coloca a interessantíssima questão do futuro e do controle da sociedade por um governo ou uma classe. Trata-se de uma distopia (utopia ao contrário), como 1984, de George Orwell. No universo dos dois livros, ler é uma atividade proibida. O título Fahrenheit 451 se refere justamente à temperatura em que o papel arde e se consome. O personagem principal é um bombeiro encarregado não de apagar incêndios, mas de queimar livros.
É interessante notar que há uma diferença de apenas cinco anos entre um livro e outro. Apesar da proximidade de assunto e tempo, há diferenças básicas entre as duas obras. Diferenças de motivos. Orwell escreveu 1984 baseado na sua experiência na Guerra Civil Espanhola, onde foi perseguido pelos stalinistas, enquanto lutava contra os fascistas e via a história ser mudada pelas versões oficiais. Bradury nunca foi à guerra, mas experimentou as agruras de um dos momentos mais terríveis da história americana: o machartismo. No início da década de cinqüenta, os EUA foram invadidos por uma febre anti-comunista. Grandes escritores foram perseguidos, Charles Chaplin teve de deixar o país para não ser preso. Bradbury, nessa época, já era um escritor famoso e trabalhava esporadicamente para a editora de quadrinhos EC Comics.
A EC foi, provavelmente, a primeira editora de quadrinhos a manter uma atitude crítica perante o mundo. Fazia propaganda pacifista em plena Guerra Fria e fazia troça do modo de vida norte-americano. Bradbury sentiu o cheiro acre das revistas da EC sendo queimadas em praça pública, viu amigos sendo presos, pessoas de bem sendo humilhadas. Viu toda uma nação se levantar, insana, pedindo a cabeça de homens que nem conheciam. É, Bradbury tinha motivos para escrever Fahrenheit 451. Além de um protesto, o livro é também um tratado sobre o ato de ler. Bradbury defende que os livros trazem em si três aspectos. O primeiro deles é a vida. Livros devem ser repletos de vivências. E nesse sentido não é só a vivência do autor, mas também a do leitor, suas tristezas e alegrias, que ficam impregnadas nas páginas dos livros. O segundo aspecto é o lazer. Nem o mais pedante dos intelectuais negaria que lê porque se diverte enquanto o faz. O terceiro aspecto seria justamente a capacidade de transformação, de ação consciente a partir da reflexão em cima dos dois primeiros aspectos.
Se o livro representa a libertação, em Fahrenheit 451, a alienação é representada pela televisão, assim como em 1984. Mas Orwell morreu em 1949, bem antes que a TV tivesse ampla difusão. Bradbury, ao contrário, viveu o período de ascensão da telinha. Talvez por isso, em Fahrenheit 451 a tv não é imposta às pessoas. Elas a assistem por livre e espontânea vontade. Aliás, a proibição de leitura também não foi imposta pelo governo. Foram as próprias pessoas que não só deixaram de ler, como passaram a ter medo de quem lia. Numa sociedade unidimensional as pessoas devem ser niveladas pela média. Pessoas que lêem, pessoas que escrevem, pessoas que fazem poemas e outras que fazem da sua própria vida um poema... todos esses tipos são perigosos para o cidadão comum, para o pai de família barrigudo, que passa os domingos bebendo cerveja e assistindo televisão.
É interessante analisar os protagonistas dos dois livros. Montag, de Fahrenheit 451, é um puro instinto, chegando a tomar atitudes quase suicidas. Já Winston, de 1984, é totalmente racional. Sua subversão é testada cuidadosamente, como alguém que anda no escuro, tateando a parede. Mesmo assim, a subversão de Winston, em certo sentido, é maior, já que ele não só lê, como escreve. Aliás, o que é proibido aos subordinados, é permitido à classe dominante. Beaty lê, Big Borther escreve. Afinal, informação é poder. Tanto que os escribas do antigo Egito tinham poder quase equivalente ao Faraós. Seria até de se perguntar se o pessoal do partido interno, em 1984, praticava sexo, já que o sexo também é um ato político.
As classes dominantes precisam providenciar maneiras de reprimir o instinto de liberdade do ser humano. O povo é continuamente submetido a uma rotina estressante. Além do trabalho, as filas enormes, os ônibus que chegam sempre atrasados e lotados. Quando há revolta, ela é uma reação imediata e sem sentido, voltada quase sempre para quem não é responsável pelo sofrimento do povo. Temos aí, então, as portas de vidro quebradas nos hospitais, as pedras jogadas nos ônibus, nos trens destruídos. Quando acontece a reação, ela é sempre voltada para os representantes mais inferiores da autoridade, como o cobrador de ônibus ou a enfermeira. No dia seguinte, tudo volta ao normal. No tempo livre, é necessário ocupar a cabeça das pessoas. Em Fahrenheit 451 o meio mais utilizado para evitar o uso criativo e reflexivo do tempo livre é a televisão. Na obra de Bradbury, mulheres de palha conversam com a TV, repetindo frases escritas previamente. Não há atividade criativa. Em 1984, o povo é mantido sob estrita vigilância, seja através da teletela (uma televisão que também transmite a imagem de quem a está assistindo), dos helicópteros ou da polícia do pensamento.
Bradbury propõe a leitura como opção. Para ele, somos o que lemos. Isso fica claro quando o personagem principal de seu romance encontra um grupo de subversivos que vagueia pelas antigas linhas de trem. Como não podiam correr o risco de levar livros consigo, eles simplesmente os decoravam e depois queimavam, esperando pelo dia em que ler não fosse mais proibido. A partir daí, cada um passava a ser responsável pela obra que decorara. Uma tremenda metáfora do ato de ler.
Sem comentários:
Enviar um comentário