1
Os barcos deslizavam suavemente pelo igarapé, um após o
outro. Da floresta vinham os mais variados sons: pássaros, sapos, grilos.
De tempos em tempos, uma árvore estalava com um barulho metálico.
Era o curupira testando quais delas sobreviveriam a uma tempestade, diziam.
A lua aparecia lá no alto, grande, e iluminava os poucos
trechos não dominados pela copa das árvores. Havia uma miríade de sons
indistinguíveis. Galhos se avolumavam por cima da água. Raízes surgiam da terra
e se afundavam no rio, como mãos tentando agarrar algo. De tempos em tempos, um
cipó atravessava de um lado a outro entre uma copa de árvore e outra.
Um animal passou rápido atravessando por um deles. Talvez um
macaco. Talvez.
“Vai chover”, pensou Estrondo.
Então algo tocou em seu remo. Algo duro como uma tora de
madeira. Mas ao invés de ficar para trás, de ser levado pela correnteza, subiu
na direção das outras canoas. Todos pararam de remar e olharam assustados para
a forma comprida e escura que se esgueirava pela água ao longo da formação de
canoas. Pelo pouco que emergia era uma forma arredondada tão grande que nem
mesmo três homens grandes conseguiriam abraçá-la.
A forma seguia sem fazer barulho e demorou mais de dez
minutos para passar completamente pela canoa em que Estrondo estava. “Que
tamanho tem isso?”, pensou, apavorado.
Quando ultrapassou todos os barcos, afundou.
Os homens estavam agora incapazes de remar. Alguns rezavam.
Todos olhavam para a frente, tentando divisar alguma coisa na água. Na
floresta, uma onça urrou. Um vagalume surgiu da mata e atravessou o igarapé de
um lado a outro, piscando de tempos em tempos. Todo o resto era silêncio.
Então, quando ninguém esperava, quando parecia que o que quer
que fosse tinha ido embora, a água explodiu em um jato e algo emergiu.
Os barcos balançavam com a onda que a coisa provocou.
Os homens se encolheram, apavorados, menos Chico Patuá, que
seguia na primeira canoa. Estrondo podia ver agora do que se tratava, mas
custava acreditar em seus olhos: uma enorme cabeça de cobra, maior do que o
tronco da maior árvore que ele já vira os observava, seus olhos brilhando sob a
luz da luz. A forma se aproximou lentamente, sem se desviar, na direção da proa
da canoa onde estava Chico, mas ele não se abalou. Continuou lá, impávido,
olhando de frente para a coisa.
“Vai nos atacar”, pensou Estrondo. Vai destruir todas as
canoas . Não sobrará nada de nós”.
Mas ela não atacava. Permanecia lá, parada, como que
hipnotizada. Ou como se estivesse se comunicando com Chico.
Então afundou.
2
O dia raiou.
Depois da aparição da cobra, Chico ordenara que montassem
acampamento. Dormiram nas redes penduradas nos galhos das árvores e nem mesmo
um único carapanã os perturbou.
Mal acordaram, pegaram os barcos e voltaram para os igarapés.
Chico queria chegar logo a uma fazenda onde teriam acolhida e poderiam conseguir
comida e abrigo.
Agora, ao contrário da noite, as canoas avançavam rápidas,
movidas por mãos experientes nos remos.
Foi pouco mais de uma hora que encontraram.
Toda uma área da margem estava destruída, como se algo grande
tivesse se abatido sobre ela. Árvores quebradas, galhos caídos na água, sendo
levados pela correnteza. E, em meio aos galhos, corpos.
Estrondo tentou em vão, contá-los. Eram muitos, talvez uns
trinta. Mas pareciam muitos mais pelo fato de seus corpos estarem destroçados.
Um braço passou por eles, depois uma cabeça e uma perna. O que sobrara das
roupas denunciava: eram soldados.
Estavam ali, de tocaia, esperando por eles, suas armas
apontadas para a água.
E tinham sido todos mortos. Mortos pela cobra grande.
3
Os passos ecoavam alto pelo palácio do governo. Era um homem
enorme. Suas mãos e pernas estavam acorrentadas e dois soldados o escoltavam.
Eram homens grandes, mas perto dele pareciam pequenos e raquíticos. Passaram
por janelas quebradas, portas sem caixilhos, pisaram em pedras de mármore
quebrado. O palácio do governo ainda guardava um pouco de sua imponência
anterior depois de tudo pelo qual Belém passara, mas as marcas dos bombardeios
ainda estavam bem visíveis.
Finalmente pararam, num salão grande.
Havia um homem ali, de terno, sentado em uma cadeira de
espaldar alto. Tinha ar imponente e falavam o português do Rio de Janeiro e não
a língua geral. O homem acorrentado os olhava em desafio, sem baixar a cabeça.
Ao lado dos dois, um soldado já na casa dos quarenta anos, cabelos grisalhos,
atarracado, mas atlético. Ao contrário
dos dois homens de terno e do prisioneiro, tinham a tez amorenada. Usava uniforme militar, com insígnia de
sargento.
- Podem ir. – ordena o homem de terno, com um gesto
displicente.
Os dois soldados se entreolharam:
- Senhor, tem certeza? Digo, este homem já matou...
- Vão embora. O sargento Elmano ficará conosco.
Um dos soldados deu de ombros e girou nos calcanhares, saindo
da sala. O outro o imitou.
O homem acorrentado deu um passo na direção das cadeiras.
Elmano levou a mão à arma, tenso.
- Sabe quem eu sou? – perguntou ele.
O homem de terno pegou uma pasta e abriu, folheando os
documentos ali dentro de maneira despreocupada.
- Aqui diz, Dom
Rodrigo, é isso?
- É como me chamam. – respondeu o outro. Sua voz era potente
como um trovão.
- Segundo este documento, o senhor... hm... vejamos... matou
pelo menos cinco mulheres.
- Eram minhas esposas. – respondeu o outro, como
justificativa.
O outro franziu a testa:
- Aparentemente só uma era. Em todo caso, o senhor acabou
sendo preso pelos assassinatos... Mas foi libertado quando os baderneiros
cabanos invadiram a...
- Eles libertaram todos os detentos como forma de diminuir a
resistência oficial. – explicou o sargento.
- Obrigado pela explicação, sargento. - respondeu o homem de
terno, olhando com desagrado para Elmano. Mas, vejamos, depois os próprios
cabanos o prenderam. Vejamos aqui, segundo relatos, o senhor levou uma moça
portuguesa perdida para uma casa abandonada e a matou esganada depois de
violentá-la. Não contente com esse episódio, entrou em uma outra casa, agora de
uma família simples, e sodomizou uma mulher que ali encontrou, matando-a
esganada. E já estava no terceiro crime quando foi finalmente pego pelos
cabanos e novamente aprisionado. Isso está correto?
O homem fez um muxoxo:
- Talvez esteja faltando uma ou outra morte ai.
Deu um outro passo à frente.
Elmano voltou a levar a mão à arma. Não saberia dizer se
conseguiria atirar antes que o homem gigantesco avançasse contra um dos seus
superiores, mas ao menos tentaria.
- E certamente não constam as mortes que ainda virão. –
sorriu ele.
- Oh, disso eu tenho certeza. – respondeu o homem de terno. O
senhor sente prazer em matar, não é mesmo?
- Cada um tira prazer do que pode. – respondeu o gigante e
inclinou-se na direção dos dois. Por que me trouxeram aqui?
- Vamos lhe fazer uma proposta. Mas antes...
O homem de terno fez um gesto para que Elmano se aproximasse.
- Por favor, retire os grilhões desse homem.
O sargento titubeou:
- Senhor, tem certeza?
- É o que estou mandando. Não se pode negociar com um homem
acorrentado.
O gigante sorriu, trincando os dentes:
- Sim, não se pode negociar dessa forma. Não seria correto.
Elmano se aproximou e usou a chave para retirar os grilhões.
Depois voltou para sua posição ao lado do homem de terno.
- Então, qual a sua proposta?
- Queremos que nos livre de um inconveniente.
- E o que eu ganho com isso?
- Se fizer isso, terá sua liberdade e sua fazenda de volta.
Além disso, posso garantir que esse pode ser um inconveniente que temos em
comum.
- E onde está esse inconveniente?
- Está pelos rios e igarapés, espalhando por lá a semente da
sedição.
-
Hm. E terei liberdade para usar os meus métodos?
- Nós o chamamos por causa dos seus métodos. Colocaremos um
grupo de soldados sob seu comando. O sargento Elmano irá com você. O senhor
está livre por enquanto. Vá e se prepare o mais rápido possível para a viagem. Em
breve outra pessoa lhe dará mais detalhes, alguns dos quais, tenho certeza, lhe
serão de grande interesse.
Elmano já ia saindo com o gigante, quando o homem de terno o
chamou:
- Sargento?
- Sim, senhor.
- Garanta que a missão seja um sucesso. Que os objetivos
sejam alcançados. E quando isso acontecer, mate-o!
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