Durante muitos anos, a visão positivista do conhecimento colocou a ciência no topo de uma pirâmide. Logo abaixo dela, vinham conhecimentos tidos como inferiores, como a filosofia, a religião e o empirismo (chamado de conhecimento vulgar). Atualmente, filósofos e cientistas começam a concordar que existem outras forma de explicar o mundo, tão importantes quanto a ciência. Uma dessas formas, cada vez mais valorizadas, é a arte. Em filmes, quadros, livros e até histórias em quadrinhos podem estar a chave para compreender o homem e o mundo em que vivemos.
Edgar Morin acredita que a arte é um elemento essencial para analisar a condição humana. No livro A cabeça bem-feita ele diz que os romances e os filmes põem à mostra as relações do ser humano com o outro, com a sociedade e o mundo: ¨O romance do século XIX e o cinema do século XX transportam-nos para dentro da História e pelos continentes, para dentro das guerras e da paz. E o milagre de um grande romance, como de um grande filme, é revelar a universalidade da condição humana¨. Assim, em toda grande obra, seja de literatura, poesia, cinema, música, pintura ou escultura, há um profundo pensamento sobre a condição humana.
Entretanto, essa maneira de ter contato com o mundo representado pela arte foi marginalizado durante décadas.
Preconceito
O círculo de Viena, importante grupo de intelectuais do início do século XX, acreditava que a imaginação era um corpo estranho à ciência, um parasita que devia ser eliminado por aqueles que pretendem fazer uma pesquisa séria.
Numa época em que o ciência era tida como a única forma válida de explicar o mundo, isso equivalia a uma sentença de morte contra a imaginação e a criatividade. Edgar Morin, no livro Introdução ao pensamento complexo explica que a imaginação, a iluminação e criação, sem as quais o progresso da ciência não teria sido possível, só entrava na ciência às escondidas. Eram condenáveis como forma de se chegar a um conhecimento sobre o mundo.
A valorização da criatividade e imaginação só aconteceu muito recentemente. O filósofo Karl Popper, por exemplo, ao observar as pesquisas de Einstein, que ele considerava o mais importante cientista do século XX, percebeu que toda descoberta desse cientista encerrava um ¨elemento irracional¨, uma¨ intuição criadora¨.
O trabalho de Thomas Kuhn, ao demonstrar os aspectos sociais e históricos na construção do conhecimento científico, abriu caminho para que a arte fosse resgatada como forma de conhecimento. Afinal, se o cientista é influenciado pelo mundo em que vive, ele também é influenciado pelos romances que lê, pelos filmes que assiste e até pelas músicas que ouve.
No Brasil, um livro importante para a aceitação da arte como forma de conhecer o mundo foi A Pesquisa em arte, de Silvio Zamboni. Na obra, o autor argumenta que a arte não só é um conhecimento por si só, como também pode constituir-se em importante veículo para outros tipos de conhecimentos, pois extraímos dela uma compreensão da experiência humana e de seus valores.
Intuição
A aceitação da arte como conhecimento implica na necessidade de compreender como ela se desenvolve. Sabe-se que existe um lado racional na produção artística, mas também existe um componente não racional e, portanto, difícil de ser verbalizado.
Uma das obras mais relevantes para a compreensão desse processo é o livro Desenhando com o lado direito do cérebro, de Betty Edwards. Baseando-se em pesquisas científicas sobre a constituição do cérebro, ela percebeu que na maioria das vezes o cérebro esquerdo é dominante na maioria das pessoas, o que dificulta a livre expressão da criatividade, já que o lado esquerdo é racional, lógico e analítico, enquanto o lado direito é intuitivo e criador.
Uma outra forma de compreender o fenômeno é relacionar o raciocínio com o consciente e a intuição com o inconsciente. Quando se pensa que algo foi esquecido, na verdade essa informação passou para o inconsciente, sendo lembrada em momentos específicos. O psicólogo Carlo Gustav Jung dizia que a intuição nos faz ver o que está acontecendo nos cantos mais escondidos de nossa mente. O filósofo Bergson afirmava que, através da intuição, problemas que julgamos insolúveis vão se resolver, ou, antes, se dissolver, seja para desaparecerem definitivamente, seja para colocarem-se de outra maneira.
A intuição surge quando o raciocínio lógico e a observação empírica falham em processar nosso contato com o mundo. A intuição surge repentinamente, sem a necessidade de qualquer percepção que passe pelos sentidos. Ela registra-se ao nível do inconsciente.
Casos de intuições são relatados nas mais diversas culturas e são tantos que desafiam uma catalogação. Após grandes acidentes aéreos é comum descobrir casos de pessoas que iam viajar naquele avião, mas, sem nenhuma explicação racional, decidiram voltar para casa.
A intuição e o uso do lado direito do cérebro não são exclusivos dos artistas. Cientistas, por exemplo, usam a intuição e a criação para elaborarem hipóteses. Entretanto, na arte, a intuição e a criação são fundamentais.
A intuição criadora, segundo os psicanalistas neofreudianos, estaria vinculada não ao inconsciente, mas ao pré-consciente, já que pode ser acessada quando ocorre um relaxamento da parte racional. Os artistas teriam essa capacidade plenamente desenvolvida, o que lhes permitiria criar obras que são importantes intuições da condição humana.
Discos voadores
Numa tarde de outubro de 1957, o futuro escritor Stephen King, então com 10 anos, estava em um cinema na cidade de Stratford, Conencticut. O filme chamava-se A invasão dos discos voadores. Na tela, os ocupantes de naves extra-terrestres eram criaturas velhas e extremamente maldosas, com seus corpos nodosos e cara enrugadas. Eles traziam raios mortais, destruição em massa e a guerra total.
Quando o filme se aproximava do clímax, as luzes acenderam e o gerente subiu ao palco. Ele parecia nervoso e pálido. ¨Eu gostaria de lhes comunicar que os russos acabam de colocar um satélite m órbita: ele se chama Sputinik¨, disse.
Um silêncio mortal tomou conta da platéia. Logo o filme recomeçou, com a voz gutural dos extraterrestres se espalhando por todos os lados: ¨Olhem para o céu... um aviso virá dos céus... olhem para o céu...¨.
King pela primeira vez sentiu medo ao saber que os russos tinham um mecanismo no espaço, talvez sobre sua cabeça. Mas na tela tudo acabou bem. O mocinho descobriu uma arma secreta e os discos voadores foram derrotados. Os alto-falantes anunciaram em todas as eqüinas: ¨Perigo superado... perigo superado¨ e o medo mais profundo daquelas crianças, o de uma guerra nuclear, foi extirpado. Segundo King, foi um momento mágico de reintegração e segurança. Ele concluiu que inventamos horrores imaginários para poder suportar os horrores verdadeiros.
Assim, as salas de cinema na década de 1950 eram imensos divãs de analistas, onde as pessoas faziam uma sessão coletiva de catarse, do medo da terceira guerra mundial. Não é por outra razão que esse tipo de filme se tornou extremamente popular na época.
Loucos tiranos
Processo semelhante aconteceu na Alemanha da década de 1920. Nessa época proliferaram os filmes expressionistas, com vilões em busca do poder. Exemplos disso são O Consultório do Dr. Caligari, em que um psicólogo usa de seus conhecimentos para induzir um sonâmbulo a praticar crimes e Dr. Marbuse (Fritz Lang, 1922), em que um vilão assume diversas personalidades e lidera um bando de assassinos que aterrorizam a cidade.
Siegrifried Kracauer no livro De Caligari a Hitler: uma história psicológica do cinema alemão explica que os filmes de uma nação refletem a mentalidade desta de uma maneira mais direta que qualquer outro meio artístico. Isso acontece por dois motivos. Primeiro, porque tais filmes nunca são produto de uma só pessoa. Segundo, porque são destinados a multidões de indivíduos anônimos e fazem sucesso por revelar processos mentais ocultos. Assim, os filmes expressionistas eram protótipos da loucura e tirania que tomaria conta da Alemanha na década de 1930, sob a égide do nazismo, o que jogaria o país e o mundo em uma guerra desastrosa. Da mesma forma que os vilões do cinema, Hitler teria colocado o povo alemão numa espécie de hipnose que libertaria seu lado mais cruel.
Antecipação espacial
A arte constantemente não só analisa a sociedade de uma época, como antecipa suas realizações. Exemplo disso são as histórias em quadrinhos de Flash Gordon e Buck Rogers.
A tira de Buck Rogers surgiu pela primeira vez em janeiro de 1929. Na primeira história os leitores dos jornais conheciam um piloto que adormecia por inalação de um gás radioativo e acorda no ano de 2419, numa época em que a América tinha sido invadida por orientais e os americanos resistiam escondendo-se nas florestas.
Logo na terceira tira, a heroína Wilma apresenta a Buck Rogers uma mochila anti-gravitacional que lhe permite dar saltos tremendos. Para direcionar o saltos, os homens usavam o recuo de pistolas, o mesmo método que seria usado posteriormente pelos astronautas norte-americanos.
Em 1984, quando os primeiros astronautas passearam no espaço sem estarem ligados à nave, muitos se lembraram que a cena era muito parecida com aquela tira de Buck Rogers: havia a mochila e o recuo da arma sendo usado para direcionar o astronauta.
Flash Gordon surgiu pela primeira vez nos jornais em 7 de janeiro de 1934. Desenhado pelo talentoso Alex Raymond, logo entrou na galeria dos personagens que antecipavam descobertas científicas. Raymond, ao contrário dos criadores de Buck Rogers, não tinha a consultoria de um grupo de cientistas, o que provavelmente o deixou solto para suas intuições tecnológicas.
Flash Gordon antecipou o forno microondas, mostrou mil e uma utilidades para o raio laser, e até antecipou o uso da mini-saia pela mulheres.
A própria NASA admitiu num boletim oficial que as histórias em quadrinhos do personagem foram usadas para solucionar problemas de suas cosmonaves. Uma visão atenta nas fotos do projeto Apolo permitem perceber influências no formato das naves e até no traje dos astronautas, especialmente se compararmos com a fase de Flash desenhada por Dan Barry.
Mas Flash Gordon não foi só antecipação. A série representou bem um momento da história em que as pessoas tinham total confiança na ciência, na tecnologia e no racionalismo. Essa época ficou conhecida como modernidade. Hoje, num período pós-moderno, é fácil perceber os componentes modernos nas tiras do personagem. Os cientistas eram mostrados sempre como pessoas boas, que traziam soluções para os problemas da humanidade. Até mesmo quando estava relacionada a projetos militares, a técnica era vista como algo bom. Numa das histórias, por exemplo, Flash vai parar em um planeta semelhante à Idade Média terrestre. Os humanos ajudam um grupo de rebeldes ensinando-os a fazer armas de fogo. O líder agradece-os pelo conhecimento que levaram ao planeta: ¨Conhecimento para pensar e fazer coisas! Conhecimento que nos trará a verdade, e a verdade nos tornará livres!¨, diz ele, apontado para um arsenal de armas.
Hoje, filósofos pós-modernos criticam a relação entre ciência e militarismo, que já estava implícita nas tiras de Flash Gordon.
Júlio Verne
No campo das antecipações, também a literatura se destaca. Exemplo disso são os romances de Júlio Verne, também exemplos perfeitos da crença absoluta na técnica e na ciência. Verne não só antecipou descobertas científicas, como, principalmente ajudou a popularizar essa forma de conhecimento, inspirando vários cientistas. A relação de Verne ao influenciar e ser influenciado por cientistas, mostra como essa troca é mais complexa do que se imagina.
Verne publicou seu primeiro romance científico, Cinco Semanas Num Balão, em 1863. Há apenas cinco anos havia sido publicado o livro A Origem das Espécies, de Darwin. Há pouco tempo Pasteur divulgara suas descobertas, que derrubavam a teoria da geração espontânea e lançava a teoria dos vermes como causadores de doenças. As descobertas científicas ocorriam numa sucessão cada vez mais rápida. Entretanto, o povo, o cidadão comum, ainda via a ciência como uma desconhecida. A própria palavra ciência era relativamente nova em 1868. A ciência estava além do alcance do homem comum. Pouco havia sido escrito que ele entendesse, ou de um modo que o tentasse à leitura. Era costume, naquele tempo, deixar a ciência aos inventores e químicos com suas máquinas esquisitas e estranhos tubos e recipientes.
Interessante notar que nos livros do autor de Vinte Mil Léguas Submarinas a ciência não aparece apenas como um apoio da narrativa. Verne profetiza um mundo onde ciência e técnica fazem parte do dia-a-dia do cidadão comum.
Não há dúvida nenhuma, no entanto, de que primeiro romance de Verne, Cinco Semanas num Balão, foi baseado em fatos científicos da época. Verne era colaborador da revista Museu das Famílias, para a qual escrevia textos de divulgação científica. Esse trabalho o obrigava a passar longas horas na Biblioteca Nacional, consultando livros, revistas e toda sorte de documentos da época. Além disso, o escritor era amigo de Nadar, cientista e fotógrafo e entusiasta do vôo e do mais pesado que o ar.
O balão de Cinco Semanas, assim como o aparelho voador de Robur, o Conquistador, eram nada mais que a concretização literária dos sonhos de Nadar.
O escritor, que se deixou influenciar por cientistas e fundamentou seus livros no conhecimento científico da época, influenciou também ele os cientistas e técnicos. Vários cientistas e inventores declararam que tiraram sua inspiração dos livros de Verne.
Verne mostrou em seus livros diversas realizações que só se tornaram realidade tempos depois: os aviões, os helicópteros, os submarinos, a viagem à lua. Nesse último item, ele intuiu até mesmo o lugar de onde sairia o foguete: o estado norte-americano da Flórida.
Seriados
Mais recentemente, seriados têm discutido a condição humana tão bem que têm chamado a atenção da ciência.
O seriado Arquivo X, sucesso durante anos nas televisões de todo o mundo, mostrou como poucas outras obras a condição do homem pós-moderno. Na modernidade, a humanidade e acreditava piamente na ciência e na razão. Havia a idéia de que a ciência e técnica nos levariam a um mundo perfeito, o sonho de Júlio Verne. Mas a modernidade não realizou suas promessas. Se por um lado, a medicina aumentou a expectativa de vida da população, a industrialização fez proliferar os casos de câncer. Essa mesma ciência foi usada pelos nazistas nos campos de concentração, em experiências cruéis e no assassinato em massa. E foi a ciência e a tecnologia que criaram a bomba atômica, um artefato capaz de destruir toda a vida humana no planeta. Assim, a pós-modernidade é justamente uma crítica à visão ingênua sobre a ciência. Em muitos sentidos, essa crítica se transformou num resgate dos saberes tradicionais, inclusive religiosos.
O homem pós-moderno vive, portanto entre o ceticismo da ciência e a crença em coisas que não podem ser provadas cientificamente, como a magia, as simpatias, o horóscopo, os discos voadores. Essa dualidade é representada pelos dois personagens principais da série Arquivo X: a agente Sculy é a cética, que só acredita naquilo que pode ser provado cientificamente. Seu parceiro, Mulder, ao contrário, tem no escritório um pôster com um disco voador e os dizeres: ¨Eu quero acreditar¨.
Outro seriado de grande sucesso é Lost, sobre sobreviventes de um desastre de avião presos em uma ilha misteriosa. Logo nos primeiros episódios, revela-se que alguns dos sobreviventes na verdade não estava no avião. Eram ¨Os outros¨, um grupo de pessoas que se infiltra entre os sobreviventes com objetivos escusos e chegam a raptar alguns dos protagonistas.
Da mesma forma que os filmes de discos voadores sintetizaram o medo de uma invasão russa durante os anos 1950, Lost sintetiza o medo do homem ocidental no mundo pós-11 de setembro. A referência óbvia é o desastre de avião, que, cogitava-se, poderia ter acontecido por causa de um atentado. Uma referência mais sutil são os outros. Esses são os terroristas, que vivem entre as outras pessoas, sem levantar suspeitas, até o momento de agirem.
Dessa forma, a arte cria uma maneira de explicar o mundo que não só antecipa inovações científicas e tecnológicas, mas também analisa a sociedade e o homem de uma forma que outros conhecimentos não conseguem. Como diz Edgar Morin, no livro A cabeça bem-feita: ¨em toda grande obra, de literatura, de cinema, de poesia, de música, de pintura, de escutura, há um pensamento profundo sobre a condição humana¨.