sexta-feira, fevereiro 28, 2025

Dupla criativa

 


 

No livro A história secreta da criatividade, Kevin Ashton defende que, ao contrário do que se imagina, as melhores duplas criativas são formadas por pessoas muito diferentes entre si.

E dificilmente eu conseguiria imaginar pessoas tão diferentes quando eu e Bené, uma diferença que, na época da dupla, se destacava até visualmente e em termos de vestimenta. Há uma matéria conosco no jornal O Liberal em que o compadre, musculoso, está usando uma camiseta tão apertada que parece prestes a estourar no seu peito e eu, magrelo, estou usando uma camisa que parece ter pertencido a alguém pelo menos vinte quilos maior que eu.
Bené sempre foi extrovertido, o tipo que se sente bem em qualquer cenário, sendo o centro das conversas e atenções. Eu, ao contrário, sempre fui introvertido e reservado, o tipo que numa festa provavelmente vai ser encontrado lendo algum livro do proprietário.
A diferença física entre nós era visível até mesmo nas fotos de jornais
Essas diferenças se revelavam até mesmo no processo criativo. Bené, como o seu ídolo Jack Kirby, era uma máquina de ideias. Ele simplesmente jorrava conceitos e tinha uma capacidade extraordinária de pensar narrativas visuais. Quando me contava suas ideias, ele não só narrava as mesmas, mas também a forma como elas seriam visualmente apresentadas, com ângulos e planos. Mas, em comunhão com essa fornalha de ideias, também havia uma indecisão crônica. A boa ideia de manhã era considerada uma péssima ideia de tarde.
Eu, ao contrário, levo um longo tempo elaborando a trama e até mesmo burilando o texto (para quem acha que escrevo muito, isso está muito mais relacionado à disciplina do que a uma velocidade real). Cada história que crio é um verdadeiro parto, um processo que pode durar meses ou até anos, como nos casos dos meus romances. Eu não sento para escrever antes de ter todo o texto na cabeça, já muito bem definido e às vezes chego a passar longo tempo pensando em uma única frase.
Além disso, enquanto Bené se preocupa essencialmente com a ação, eu estou mais preocupado com os personagens e seus sentimentos. Enquanto Bené está preocupado que a história seja empolgante, eu estou preocupado que a história faça sentido, que toda as peças se encaixem.
Essa junção de visões é que fazia a diferença em nossas HQs, de modo que um completava o outro.
O nosso método de trabalho era o Marvel way, de uma forma que devia ser muito semelhante ao que Stan Lee e Jack Kirby faziam. Nós discutíamos a história. Uma vez estabelecidos os conceitos principais, o Bené se sentava e fazia o rafe – eu ficava impressionado com a rapidez com que ele fazia isso. A narrativa visual simplesmente jorrava da caneta. Eu, ao contrário, ficava longo tempo olhando as páginas, burilando a narrativa, pensando no que podia fazer. Quando sentava, já tinha normalmente todo o texto na cabeça, ou pelo menos boa parte dele.
Todas as características do nosso processo criativo aparecem naquela história que tanto eu quanto o Bené consideramos a nossa melhor – Refrão de Bolero. A história tinha sido criada a partir da música dos Engenheiros do Hawaii em especial do trecho: “Um erro assim tão vulgar nos persegue a noite inteira e quando acaba a bebedeira ele consegue nos achar”, que aparece na última parte. Sim, nós criamos toda uma história a partir de uma citação que só faria sentido quando o leitor lesse a última página.



(Trecho do meu livro A árvore das ideias)

2 comentários:

PLENA disse...

Querido Gian Danton,, também criei meus melhores trabalhos com duplas improváveis. Gosto muito mais de trabalhar em duplas ou grupos. As minhas ideias não gostam de andar solitárias.

Gian Danton disse...

Obrigado pelo comentário, querida amiga. Também gosto muito de trabalhar em duplas, trios. Duas cabeças pensam melhor que uma, e três pensam melhor que duas.