domingo, julho 26, 2020

Mineirices


Quando entrevistava o mestre Cláudio Seto para meu livro Grafipar, a editora que saiu do eixo, comentei com ele que Minas é o local do Brasil mais parecido com o Japão em termos de cultura – ao que ele concordou.
No Japão há uma espécie de dívida de gentileza. Se alguém nos faz um favor, ficamos em dívida com essa pessoa e devemos em outro momento, retribuir esse favor. Sônia Luyten me contava que quando foi fazer doutorado no Japão certa vez recebeu uma encomenda que era para a vizinha e entregou assim que ela chegou. No dia seguinte, a vizinha bateu-lhe na porta com um presente em retribuição à gentileza de ter recebido a encomenda.
Eu cansei de ver isso na minha infância e vejo isso quando visitos meus parentes mineiros. É uma gentileza tão grande que às vezes chega a ser constrangedora. Você não sai sem tomar um cafezinho - e esse cafezinho logo se transforma num verdadeiro banquete de quitandas. 
Seto conta que comprava dinheiro com o dinheiro dos ovos. Ele sempre acompanhava sua avó à granja do tio para comprar ovos. Chegavam lá eram tratados da melhor forma possível e, ao final, quano a avó queria pagar, o tio não aceitava. Paga, não paga, paga não paga, a velhinha deixava o dinheiro em algum lugar. Quando o tio descobria, corria atrás deles para devolver o dinheiro. Como a avó se recusava a receber, as notas acabava parando nas mãos do Seto, que usava para comprar gibis.
Mas isso, claro, tem o outro lado, tanto em Minas quanto no Japão: a pessoa só aceita uma favor, uma gentileza de alguém na qual ela confia. Afinal, ela não vai querer ficar devendo um favor para alguém que não é confiável. Por essa razão que recusar uma gentileza é tão ofensivo: significa que a pessoa considera que o outro não é confiável e, portanto, não quer ficar em dívida com ele.
Durante anos, embora tenhamos saído de Minas, a guardiã das tradições mineiras era minha avó. Enquanto morei com ela, nunca perdi o “uai” e sempre comia angu em todas as refeições.
Minha avó foi uma das pessoas mais admiráveis que já conheci. Estudou apenas até a quarta-série, mas escrevia melhor que vários estudantes universitários. Quando eu trabalhava em jornal e trazia os exemplares para casa, ela devorava da primeira à última página. Foi a única pessoa que conheci que leu a Bíblia de cabo a rabo mais de uma vez. Hoje em dia, a pessoa lê um versículo e já sai dizendo que leu a Bíblia.
E foi com ela que aprendi mais uma parte da cultura mineira que lembra muito o modo japonês de ser: a honra.
Ela sempre me dizia:
- Meu filho, pobre não tem nada, só tem a própria honra.
Exemplo disso aconteceu quando ela aceitou fazer, de graça, um vestido para uma vizinha.
Minha avó era costureira prendada, do tipo de costurava para esposa do prefeito, vereador e cobrava bem, mas para a vizinha, que era amiga, se recusou a cobrar (mais uma vez a história da gentileza mineira – imagina se ela ia cobrar de uma amiga!).   
Quando recebeu o vestido, a vizinha reclamou:
- E a minha tesoura?
- Como assim, que tesoura?
- Quando levei o vestido, levei também uma tesoura nova. Cadê a tesoura?
Minha avó insistiu que não tinha visto tesoura nenhuma e nem precisava, pois tinha tesoura em casa. E a outra instindo:
- Cadê a tesoura?
Resumo da ópera: minha avó foi até a loja, comprou uma tesoura nova e levou para a vizinha, ainda na embalagem. Preferiu ficar no prejuízo a ser chamada de ladra.
No dia seguinte a vizinha achou a tal tesoura e veio devolver a que recebera. Minha avó recusou. Deixou a vizinha com as duas tesouras. Mas também nunca mais falou com ela. Ela não poderia ser amiga de alguém que desconfiava de sua honestidade. Como ela sempre dizia: “Pobre não tem nada, meu filho, só tem a própria honra”.

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