Se há algo incontestável em Neil Gaiman é que ele um ótimo
contista. Suas histórias curtas no geral são melhores do que as mais extensas. O
volume 3, Terra dos sonhos, da coleção Sandman 30 anos é uma boa oportunidade para perceber isso.
O volume, terceiro da coleção, reúne as edição de 17 a 20 da
edição original de Sandman e inclui quatro histórias: Calliope, Um sonho de mil
gatos, Sonho de uma noite de verão e Fachada.
Calliope é uma história sobre um escritor que não tem mais
ideias. Assim, ele negocia com um autor muito mais velho a posse de uma
entidade grega, a musa Calliope e partir daí sua carreira decola, fazendo com
que ele se torne um best-seller e até um diretor de cinema. A musa pede a ajuda
de Sandman, que na cronologia havia sido libertado recentemente. É uma história de terror, mas que vira de
cabeça para baixo o gênero. É também uma história em que Sandman não é o
protagonista – uma característica, aliás, de todas as quatro histórias (na última
ele nem aparece). Quando li pela primeira vez, lá no comecinho dos anos 90, o
impacto foi imediato. Havia um toque pós-moderno, com várias referências a
outras obras, como o primeiro livro do autor, o Cabaré do Dr. Caligari, uma
referencia direta ao clássico do expressionismo alemão. Havia a narrativa de
Gaiman, que flertava com o poético. E havia o desenho de Kelley Jones, com suas
figuras distorcidas e corpos esticados, que davam uma sensação de irrealidade
aos personagens, como se eles fossem de fato personagens míticos.
Impacto semelhante teve Um sonho de mil gatos. Na história um
gatinho vai para uma reunião de felinos onde uma velha gata conta como seus
filhotes lhe foram tirados e jogados no rio e como ela implorou por compreensão.
Quando dormiu, encontrou-se com um gato preto, que lhe contou que em tempos
passados os gatos dominavam o mundo e os humanos eram sua caça. Mas os humanos
sonharam com um outro mundo e mudaram tudo.
A história é um tributo de Gaiman aos gatos (ele tem várias
histórias com felinos), mas é também uma bela reflexão sobre o poder dos sonhos
e sobre os mitos, com uma abordagem que remetia diretamente a Jung. Era também
revolucionário por mostrar algo que hoje em dia é óbvio: o rei dos sonhos tem a
aparência que o sonhador espera. Se quem sonha é uma gata, ele é um gato preto.
Um sonho de mil gatos também se destacava pelo final em que o
terror surgia exatamente pela ironia. Se o desenho de Kelley Jones tinha se
adaptado perfeitamente a Calliope, em nessa história combinou ainda mais, com
destaque para o cemitério de ossos.
No número 19 da revista, Gaiman resolveu chutar o balde. Até
então Sandman era uma revista de terror, publicada no rastro do sucesso de
Monstro do Pântano. Gaiman constrói uma trama não tinha nada de terror. Na história,
Shakespeare apresenta Sonhos de uma noite de verão para uma plateia formada por
fadas e outros seres míticos. Trata-se de um pedido do próprio Sandman que
pediu duas peças ao bardo inglês (uma história posterior vai explicar o que ele
deu em troca). À certa altura, as duas instâncias (peça e personagens mitológicos)
se misturam, assim como o texto do roteirista com o do bardo. Surpreendentemente,
a editora Karen Berger aceitou o roteiro e chamou para ilustrar Charles Vess,
um especialista em fadas e seres mitológicos. A aposta deu certo. A história
ganhou o o prestigiado World Fantasy Award na categoria ficção curta. Foi a primeira
e única vez que uma HQ ganhou essa premiação.
Sonho de uma noite de verão foi, portanto, um divisor de águas.
E não só pela qualidade do texto e do desenho, mas por deixar claro que Sandman
estava muito além de qualquer gênero e todo tipo de abordagem poderia ser
experimentada.
Na comparação com as três histórias anteriores, cada uma
revolucionária à sua maneira, Fachada, com desenhos de Collen Doran, parecia
uma história menor. Pelo menos foi o que me pareceu quando li pela primeira
vez. Agora, relendo nessa nova edição, fiquei impressionado com a força do
texto de Gaiman, com sua abordagem corajosa e com a carecterização da
personagem. Na história, a Garota elemental (uma personagem obscura da DC) vive
reclusa dentro de seu apartamento depois que seus poderes saíram do controle. Totalmente
solitária, ela anseia pelo dia em que poderá ligar para falar com o responsável
pelo seu cheque na companhia. Essa história mostra a segunda aparição da Morte,
a carismática irmã de Sandman, com seu visual gótico.
A edição fecha com um item especial: o roteiro original de
Calliope, inclusive com anotações do roteirista e do editor. É extremamente
raro encontrar algum roteiro de Gaiman. Ele diz que mostrar seus roteiros seria
como um mágico mostrar como realiza seus truques. Pois bem: vale a pena ler e
descobrir como Gaiman realiza sua mágica.
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