Há algum tempo recebi pela internet a capa de um disco do
Tom Zé. A imagem mostrava um belo olho humano encimado pelo texto “TOMZÉTODOSOSOLHOS”.
Fiquei surpreso ao saber, através do remetente, que a imagem era, na verdade, a
foto de um ânus. Procurando no meu arquivo de revistas Caros Amigos, encontrei
um trecho da entrevista com Tom Zé (Caros Amigos, 31, p. 34) em que ele
confirmava a informação: “Em 1973 fiz o disco chamado Tom Zé Todos os Olhos,
que tem um cu na capa”. Como eu e todas as pessoas que tiveram contato com o
disco - inclusive os censores - puderam confundir uma parte tão desprestigiada
do corpo humano com o olho, o chamado espelho da alma?
A resposta, parece-me, está na semiótica, até porque o autor
da capa, o poeta Décio Pignatari, é uma das maiores autoridades sobre o assunto
no Brasil.
Semiótica é a ciência que estuda os signos. Signo é tudo
aquilo que substitui alguma coisa. Se falo mesa, o signo linguístico mesa está substituindo
o objeto mesa.
Há três tipos básicos de signos: ícones, índices e símbolos.
Os ícones são semelhantes à coisa representada. O desenho de
uma mesa é semelhante ao objeto mesa e qualquer um pode perceber isso.Poucas
pessoas precisam de explicações quando vêm uma foto, por exemplo. Os ícones não
precisam de repertório para serem compreendidos e sua assimilação é imediato.
Exemplos de ícones são desenhos, fotos, filmagens e esculturas.
Os índices são aqueles signos que guardam uma relação de contiguidade
com a coisa representada. Ou seja, ao vermos um índice, percebemos que o objeto
está próximo. Nuvens negras são um indício de que vai chover, pois todo mundo
sabe que essas nuvens costumam ser acompanhadas de chuva. Chão molhado é
indício de que choveu. Fumaça é indício de que há fogo por perto. Os
agricultores conseguem perceber se o tempo vai ser chuvoso ou seco através do
indícios da natureza.
Finalmente, temos o tipo mais complexo de signo: os
símbolos. Estes não guardam qualquer relação de semelhança ou de contiguidade
com a coisa representada. Ou seja, são arbitrários, culturais, convencionais. Convencionou-se
que o objeto mesa seria representado pelo conjunto de sons “mesa”, embora ambos
não tenham qualquer relação entre si.
Signos linguísticos são exemplos de símbolos (embora algumas
palavras tenham caráter icônico, como é o caso das onomatopéias, que imitam o som
das coisas e animais).
Há símbolo não linguísticos. É o caso, por exemplo do
crucifixo. Um desavisado pode achar que a imagem representa um homem sendo torturado,
mas um cristão sabe que se trata do símbolo do cristinismo. Esse é o caso de um
ícone que se tornou símbolo. Há outros semelhan-
tes: os pinguins que representam a Antartica, a foice e o
martelo que representa o comunismo, o urso polar que representa a Coca-cola...
Os signos podem, portanto, mudar de significado. Isso ocorre
através de um processo de contaminação. Essa contaminação pode ser por similaridade
ou contiguidade.
Um exemplo de contaminação por contiguidade: a palavra
loucura ao lado de uma foto de uma mulher faz o leitor interpretar que a mulher
é louca, apenas pelo fato de que os dois signos estão próximos. A palavra
ladrão ao lado de uma foto de um político nos faz imaginar que ele não é
honesto, embora o texto não esteja dizendo isso diretamente.
A novela Pantanal usou um processo de contiguidade para demonstrar
que a personagem Isabel havia se transformado em uma onça.A cena que mostrava a
moça se fundiu com outra que mostrava uma onça. Os espectadores mais espertos
conseguiram ler a metáfora visual: Isabel é uma onça.
O processo de contaminação pode ser por semelhança, ou
analogia.
Dois signos semelhantes contaminam um ao outro. Na palavra
ROODAas letra O lembram rodas. A águia é o símbolo dos EUA e da liberdade americana.
Se mostramos uma foto da águia e de uma avião, o avião passa a significar a
liberdade americana por um processo de semelhança (ambos têm asas) e contiguidade.
Na capa do disco do Tom Zé o autor usou processos de
contaminação por contigudidade e semelhança para driblar a censura. Segundo as informações
que tenho, a capa foi de responsabilidade do poeta concretista Décio Pignatari,
um dos maiores especialistas brasileiros em semiótica e teoria da informação.
Embora todo mundo tenha interpretado a imagem da capa como
um olho, recentemente o próprio compositor admitiu que se tratava de um ânus.
Pretendo aqui mostrar como foi possível que todos confundissem duas partes tão
distintas do ser humano.
As informações que tenho indicam que o autor do truque é o
poeta concretista e semiólogo Décio Pignatari. Ele queria driblar a censura da época
e, para isso, fotografou um ânus em ângulo bastante fechado. Para simular as
pupilas, ele colocou no orifício uma bola de gude. Pignatari sabia que, quando
decodificamos um ícone (uma foto, um desenho), nossa mente procura
identificá-lo com coisas que tenham semelhança com ele. Assim, a bola de gude e
o ângulo fechado da foto providenciaram essa semelhança com um olho.
Além do processo de semelhança, há um outro, igualmente
importante na semiótica, que é a contiguidade. Dois signos, colocados próximos,
contaminam um ao outro. Uma foto de uma cidade encimada pela palavra calor nos
faz pensar que aquele local é quente.
No disco do Tom Zé, a foto é acompanhada do seguinte texto: TOMZÉTODOSOSOLHOS.
Assim mesmo, tudo junto.
A primeira coisa que chama atenção é a presença da palavra
olho. É ela que vai direcionar a leitura da foto, levando o leitor a acreditar
que a imagem se trata de um olho.
Há um outro detalhe importante. Olhe de novo o texto: TOMZÉTODOSOS
OLHOS. Qualquer um percebe que há uma grande quantidade de letras O que, pela
disposição do texto, lembram
pupilas humanas. É como se o próprio texto simulasse olhos,
transformando-se, assim, em ícones.
Tudo isso, a conformação da foto, a palavra olhos e o texto
transformado em ícone de olhos, leva o receptor a pensar que se trata de umaimagem
de um olho.
A segunda leitura, ânus, fica como subliminar. Ela vai
direto para o inconsciente.
Reviravolta: mais recentemente, o fotógrafo responsável pela
foto da capa revelou os bastidores da capa. Pignatari havia pedido que ele
fotografasse a bolinha de gude sobre um ânus e, para cumprir a tarefa, ele
levou a namorada para o motel, junto com uma caixa de bolinhas de gude. Depois
de intermináveis tentativas, ele desistiu: as bolinhas sempre caíam. Foi quando
teve a ideia de fotografar a bolinha sobre os lábios da namorada. Desssa vez
deu certo.
Ou seja, o olho na verdade era um ânus, que na verdade era
um lábio feminino.
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