segunda-feira, fevereiro 08, 2021

A semiótica e o disco do Tom Zé

 


Há algum tempo recebi pela internet a capa de um disco do Tom Zé. A imagem mostrava um belo olho humano encimado pelo texto “TOMZÉTODOSOSOLHOS”. Fiquei surpreso ao saber, através do remetente, que a imagem era, na verdade, a foto de um ânus. Procurando no meu arquivo de revistas Caros Amigos, encontrei um trecho da entrevista com Tom Zé (Caros Amigos, 31, p. 34) em que ele confirmava a informação: “Em 1973 fiz o disco chamado Tom Zé Todos os Olhos, que tem um cu na capa”. Como eu e todas as pessoas que tiveram contato com o disco - inclusive os censores - puderam confundir uma parte tão desprestigiada do corpo humano com o olho, o chamado espelho da alma?

A resposta, parece-me, está na semiótica, até porque o autor da capa, o poeta Décio Pignatari, é uma das maiores autoridades sobre o assunto no Brasil.

Semiótica é a ciência que estuda os signos. Signo é tudo aquilo que substitui alguma coisa. Se falo mesa, o signo linguístico mesa está substituindo o objeto mesa.

Há três tipos básicos de signos: ícones, índices e símbolos.

Os ícones são semelhantes à coisa representada. O desenho de uma mesa é semelhante ao objeto mesa e qualquer um pode perceber isso.Poucas pessoas precisam de explicações quando vêm uma foto, por exemplo. Os ícones não precisam de repertório para serem compreendidos e sua assimilação é imediato. Exemplos de ícones são desenhos, fotos, filmagens e esculturas.

Os índices são aqueles signos que guardam uma relação de contiguidade com a coisa representada. Ou seja, ao vermos um índice, percebemos que o objeto está próximo. Nuvens negras são um indício de que vai chover, pois todo mundo sabe que essas nuvens costumam ser acompanhadas de chuva. Chão molhado é indício de que choveu. Fumaça é indício de que há fogo por perto. Os agricultores conseguem perceber se o tempo vai ser chuvoso ou seco através do indícios da natureza.

Finalmente, temos o tipo mais complexo de signo: os símbolos. Estes não guardam qualquer relação de semelhança ou de contiguidade com a coisa representada. Ou seja, são arbitrários, culturais, convencionais. Convencionou-se que o objeto mesa seria representado pelo conjunto de sons “mesa”, embora ambos não tenham qualquer relação entre si.

Signos linguísticos são exemplos de símbolos (embora algumas palavras tenham caráter icônico, como é o caso das onomatopéias, que imitam o som das coisas e animais).

Há símbolo não linguísticos. É o caso, por exemplo do crucifixo. Um desavisado pode achar que a imagem representa um homem sendo torturado, mas um cristão sabe que se trata do símbolo do cristinismo. Esse é o caso de um ícone que se tornou símbolo. Há outros semelhan-

tes: os pinguins que representam a Antartica, a foice e o martelo que representa o comunismo, o urso polar que representa a Coca-cola...

Os signos podem, portanto, mudar de significado. Isso ocorre através de um processo de contaminação. Essa contaminação pode ser por similaridade ou contiguidade.

Um exemplo de contaminação por contiguidade: a palavra loucura ao lado de uma foto de uma mulher faz o leitor interpretar que a mulher é louca, apenas pelo fato de que os dois signos estão próximos. A palavra ladrão ao lado de uma foto de um político nos faz imaginar que ele não é honesto, embora o texto não esteja dizendo isso diretamente.

A novela Pantanal usou um processo de contiguidade para demonstrar que a personagem Isabel havia se transformado em uma onça.A cena que mostrava a moça se fundiu com outra que mostrava uma onça. Os espectadores mais espertos conseguiram ler a metáfora visual: Isabel é uma onça.

O processo de contaminação pode ser por semelhança, ou analogia.

Dois signos semelhantes contaminam um ao outro. Na palavra ROODAas letra O lembram rodas. A águia é o símbolo dos EUA e da liberdade americana. Se mostramos uma foto da águia e de uma avião, o avião passa a significar a liberdade americana por um processo de semelhança (ambos têm asas) e contiguidade.

Na capa do disco do Tom Zé o autor usou processos de contaminação por contigudidade e semelhança para driblar a censura. Segundo as informações que tenho, a capa foi de responsabilidade do poeta concretista Décio Pignatari, um dos maiores especialistas brasileiros em semiótica e teoria da informação.

Embora todo mundo tenha interpretado a imagem da capa como um olho, recentemente o próprio compositor admitiu que se tratava de um ânus. Pretendo aqui mostrar como foi possível que todos confundissem duas partes tão distintas do ser humano.

As informações que tenho indicam que o autor do truque é o poeta concretista e semiólogo Décio Pignatari. Ele queria driblar a censura da época e, para isso, fotografou um ânus em ângulo bastante fechado. Para simular as pupilas, ele colocou no orifício uma bola de gude. Pignatari sabia que, quando decodificamos um ícone (uma foto, um desenho), nossa mente procura identificá-lo com coisas que tenham semelhança com ele. Assim, a bola de gude e o ângulo fechado da foto providenciaram essa semelhança com um olho.

Além do processo de semelhança, há um outro, igualmente importante na semiótica, que é a contiguidade. Dois signos, colocados próximos, contaminam um ao outro. Uma foto de uma cidade encimada pela palavra calor nos faz pensar que aquele local é quente.

No disco do Tom Zé, a foto é acompanhada do seguinte texto: TOMZÉTODOSOSOLHOS. Assim mesmo, tudo junto.

A primeira coisa que chama atenção é a presença da palavra olho. É ela que vai direcionar a leitura da foto, levando o leitor a acreditar que a imagem se trata de um olho.

Há um outro detalhe importante. Olhe de novo o texto: TOMZÉTODOSOS OLHOS. Qualquer um percebe que há uma grande quantidade de letras O que, pela disposição do texto, lembram

pupilas humanas. É como se o próprio texto simulasse olhos, transformando-se, assim, em ícones.

Tudo isso, a conformação da foto, a palavra olhos e o texto transformado em ícone de olhos, leva o receptor a pensar que se trata de umaimagem de um olho.

A segunda leitura, ânus, fica como subliminar. Ela vai direto para o inconsciente.

Reviravolta: mais recentemente, o fotógrafo responsável pela foto da capa revelou os bastidores da capa. Pignatari havia pedido que ele fotografasse a bolinha de gude sobre um ânus e, para cumprir a tarefa, ele levou a namorada para o motel, junto com uma caixa de bolinhas de gude. Depois de intermináveis tentativas, ele desistiu: as bolinhas sempre caíam. Foi quando teve a ideia de fotografar a bolinha sobre os lábios da namorada. Desssa vez deu certo.

Ou seja, o olho na verdade era um ânus, que na verdade era um lábio feminino.

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