quinta-feira, fevereiro 25, 2021

O auto da barca do inferno

 


Gil Vicente foi o iniciador do teatro português. Altamente influenciado pelo autor castelhano Juan Del Encima, ele aos poucos desenvolveu um estilo próprio, com temas e abordagens únicas. Sua carreira começou de forma inusitada. Quando nasceu o filho de D. Manuel e D. Maria de Castela, reis de Portugal, ele entrou de surpresa no quarto do casal e recitou um monólogo no qual um homem simples do campo louvava o nascimento da criança. A corte adorou e ele foi convidado a repetir a apresentação no Natal. Ao invés disso, ele escreveu outra peça, Auto pastoril castelhano. O sucesso o levou a escrever diversas outras peças. Entre as mais famosas está o Auto da barca do inferno.

Auto era como eram chamadas as peças medievais. Inicialmente essas peças eram milagres e mistérios, peças religiosas, com histórias da Bíblia, a vida de cristo ou dos santos. Depois surgiram as moralidades, peças com simbolismo moral, nos quais os pecadores sofriam as mais terríveis punições. Logo surgiram as farsas, peças satíricas, cujo objetivo era apenas a diversão.

O auto da barca do inferno é uma mistura de farsa com moralidade. Nela, as almas das pessoas mortas chegam num porto e devem embarcar em duas naus: a do inferno, comandada por um demônio, e o paraíso, sob ordens de um anjo. Todos que ali chegam consideram que têm direito ao paraíso, mas logo se revelam seus pecados.

Os personagens eram tipos sociais, e representavam os grupos que Gil Vicente censurava. Há o fidalgo arrogante, que acha que tem direito ao paraíso por ser nobre; há o onceiro (agiota que emprestava dinheiro a preços extorcivos); o sapateiro, que representa os comerciantes que roubam seus clientes; o frade que vem com uma amante; a alcoviteira que conseguia mulheres para autoridades; o corregedor e o procurador, representando a corrupção da justiça e o enforcado, um ladrão que acha que vai para o paraíso. E havia o judeu, que até o diabo se nega a levar na barca, reflexo direto do preconceito anti-semita da época.  

De todos os personagens, só quem se salva é o Parvo, um camponês idiota e explorado, que fala palavrões, mas não tem malícia.

Um dos momentos mais interessantes é a entrada do corregedor e do procurador. Os dois se acham dignos do paraíso apenas por serem autoridades e sua arrogância transparece principalmente nas frases em latim. Sua forma de falar é satirizada pelo parvo:

“Hou, homens de breviários,

Rapinastis coelhorum

Et pernis perdigotorum

E mijais nos campanairos“

O auto da barca do inferno foi publicado na íntegra, em uma bela edição da editora Principis, ao preço módico de 10 reais. A edição traz ainda as peças Farsa de Inês Pereira, auto da alma, auto da feira, auto de mofina Mendes e O velho da Horta. De negativo a total falta de textos introdutórios ou mesmo notas explicando a linguagem de Gil Vicente, que misturava português com castelhano.

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