Gil Vicente foi o iniciador do teatro português. Altamente
influenciado pelo autor castelhano Juan Del Encima, ele aos poucos desenvolveu
um estilo próprio, com temas e abordagens únicas. Sua carreira começou de forma
inusitada. Quando nasceu o filho de D. Manuel e D. Maria de Castela, reis de
Portugal, ele entrou de surpresa no quarto do casal e recitou um monólogo no
qual um homem simples do campo louvava o nascimento da criança. A corte adorou
e ele foi convidado a repetir a apresentação no Natal. Ao invés disso, ele
escreveu outra peça, Auto pastoril castelhano. O sucesso o levou a escrever
diversas outras peças. Entre as mais famosas está o Auto da barca do inferno.
Auto era como eram chamadas as peças medievais. Inicialmente
essas peças eram milagres e mistérios, peças religiosas, com histórias da
Bíblia, a vida de cristo ou dos santos. Depois surgiram as moralidades, peças
com simbolismo moral, nos quais os pecadores sofriam as mais terríveis
punições. Logo surgiram as farsas, peças satíricas, cujo objetivo era apenas a
diversão.
O auto da barca do inferno é uma mistura de farsa com
moralidade. Nela, as almas das pessoas mortas chegam num porto e devem embarcar
em duas naus: a do inferno, comandada por um demônio, e o paraíso, sob ordens
de um anjo. Todos que ali chegam consideram que têm direito ao paraíso, mas
logo se revelam seus pecados.
Os personagens eram tipos sociais, e representavam os grupos
que Gil Vicente censurava. Há o fidalgo arrogante, que acha que tem direito ao
paraíso por ser nobre; há o onceiro (agiota que emprestava dinheiro a preços
extorcivos); o sapateiro, que representa os comerciantes que roubam seus
clientes; o frade que vem com uma amante; a alcoviteira que conseguia mulheres
para autoridades; o corregedor e o procurador, representando a corrupção da
justiça e o enforcado, um ladrão que acha que vai para o paraíso. E havia o
judeu, que até o diabo se nega a levar na barca, reflexo direto do preconceito
anti-semita da época.
De todos os personagens, só quem se salva é o Parvo, um
camponês idiota e explorado, que fala palavrões, mas não tem malícia.
Um dos momentos mais interessantes é a entrada do corregedor
e do procurador. Os dois se acham dignos do paraíso apenas por serem
autoridades e sua arrogância transparece principalmente nas frases em latim.
Sua forma de falar é satirizada pelo parvo:
“Hou, homens de breviários,
Rapinastis coelhorum
Et pernis perdigotorum
E mijais nos campanairos“
O auto da barca do inferno foi publicado na íntegra, em uma
bela edição da editora Principis, ao preço módico de 10 reais. A edição traz
ainda as peças Farsa de Inês Pereira, auto da alma, auto da feira, auto de
mofina Mendes e O velho da Horta. De negativo a total falta de textos
introdutórios ou mesmo notas explicando a linguagem de Gil Vicente, que
misturava português com castelhano.
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