O escritor inglês George Orwell é a Clarice Linspector das citações políticas. Já vi as mais variadas falas creditadas a ele. Muitas são textos tirados do contextos. Outras são simples invenções. E muitos e muitos são os“especialistas em George Orwell” que nunca leram seus livros, ou quando muito leram os mais famosos, A revolução dos bichos e 1984.
O mais bizarro disso é a apropriação que o fascismo faz de
George Orwell.
O escritor deve estar se revirando na cova. Logo ele, que
lutou, ao lado dos trotskistas e anarquistas na Espanha contra o fascismo, ver
sua obra e seu nome sendo apropriados pelos fascistas, muitas vezes com
estratégias que ele mesmo denunciou no livro 1984, como a mudança do passado.
Para se ter uma ideia, agora que os livros do autor entraram
em domínio público, uma editora fascista lançou 1984 e A revolução dos bichos.
Para divulgar, simplesmente inventou fatos sobre a vida de Orwell. Segundo o
texto de divulgação, 1984 foi recusado pela maioria das editoras inglesas por
causa da aliança entre Inglaterra e a Rússia stalinista.
Em 1948, quando Orwell escreveu 1984, não existia mais essa
aliança – ele ele era um best-seller, razão pela qual as editoras disputaram o
livro. O livro A revolução dos bichos chegou a ser recusado por editoras, mas a
razão era outra: livros com animais normalmente não vendiam bem e os editores
temiam levar prejuízo.
A maioria das pessoas que cita George Orwell nas redes nunca
leu qualquer livro dele além dos dois mais famosos (a maioria na verdade não
leu nem esses dois e falam por “ouvir dizer”). São pessoas que acham que ele
era um lorde inglês conservador que escrevia enquanto o mordomo lhe servia whisky.
O primeiro livro que li de Orwell foi 1984, no início dos
anos 90, numa edição comprada em sebo, ao preço de uma passagem de ônibus (naquele
dia eu voltei andando para casa). No final, eu tinha entrado em uma loja para
comprar algo para minha avó e, quando o vendedor me entregou, fiquei lá,
parado, porque não conseguia parar de ler.
A partir daí fui comprando tudo que encontrava do autor. O
que não conseguia comprar, lia de bibliotecas.
Orwell marcou meu estilo principalmente pela narrativa limpa
e incisiva, sem firulas, pelo texto jornalístico impecável, com descrições
extremamente vivas.
Outra característica de Orwell era a preocupação com temas
sociais.
Essa preocupação o levou a escrever A caminho de Wigan, no
qual ele denunciava a vida miserável dos mineiros de carvão na Inglaterra e
como eles eram explorados.
A inquietação com os oprimidos o levou a se disfarçar para
viver como mendigo – depois ele perderia o emprego e se tornaria de fato um
mendigo, como relatado em Na pior em Paris e Londres.
O medo do fascismo o levou a se engajar na luta contra os
fascistas na Espanha, como relatado no livro Lutando na Espanha. Aliás, foi ali
na Espanha que ele percebeu que o fascismo tinha sua contrapartida esquerdista,
o stalinismo. Quase foi morto pelos fascistas, quase foi morto pelos
stalinistas. Toda a sua obra reverbera uma viva crítica a qualquer tipo de
autoritarismo, seja ele de direita ou de esquerda.
Como critica aos conservadores ele escreveu um livro, A filha
do reverendo, sobre uma professora que é massacrada pelos pais conservadores ao
encenar com as crianças uma peça de Shakespeare, McBeth, que tinha uma referência
ao parto.
Para quem, como eu, leu toda a obra de Orwell, é
absolutamente lamentável ver a obra e o nome do autor serem apropriados por
aqueles que ele mais combateu em vida.
Uma curiosidade é que, por outro lado, há muitos esquerdistas, especialmentes aqueles afeitos ao stalinismo, que chamam Orwell de fascista. Incrível como os extremos se parecem.
Em tempo, quando ainda estava vivo, Orwell escreveu para um amigo explicando a tese principal do romance que ele estava escrevendo. Essa carta pode ser lida aqui.
"Para onde quer que se olhe, todos os movimentos nacionalistas, mesmo os que surgiram como forma de resistência ao domínio alemão, parecem assumir formas não-democráticas, organizando-se em torno a algum tipo de fuhrer sobre-humano (...). Acrescente-se a isto o horror do nacionalismo exacerbado e uma tendência à descrença na existência das verdades objetivas, já que todos os fatos têm que se adequar às palavras e profecias de algum fuhrer infalível. Na verdade, em certo sentido, a história já deixou de existir, não havendo mais uma história contemporânea que possa ser universalmente aceita, e as ciências exatas também estarão ameaçadas tão logo não se precise mais do exército para manter a ordem. Hitler pode dizer que os judeus começaram a guerra, e se ele sobreviver, isso passará a ser a história oficial. Mas ele não pode dizer que dois mais dois são cinco, porque para os objetivos, digamos, da balística é preciso que essa soma continue sendo quatro".
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